segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Um contrato de casamento em Cabul: ela pashtun ele tajique




Entre a retirada soviética em 1989, e até1992, altura em que o regime comunista sob o líder do Partido Democrata do Povo, Mohammad Naijibullah, colapsou – a rapariga andava apaixonada por um colega professor, mais velho que ela 10 anos, e já com três filhos. Era uma vergonha estar apaixonada por um homem que não poderia ter. Veio então a guerra civil, as escolas foram fechadas e ela fugiu com o irmão para o Paquistão.

As lutas e rivalidades sobre Cabul começaram a 25 de abril de 1992, envolvendo seis exércitos. E em 26 de setembro de 1996, com os Talibans atacando Cabul, o ministro interino da Defesa Ahmad Shah Massoud em sua sede no norte de Cabul concluiu que as forças provisórias dele e do presidente Rabbani haviam sido cercadas. Decidiram evacuar rapidamente retirando as forças ao norte para evitar a destruição. Ao anoitecer ou no dia seguinte, os Talibans haviam conquistado Cabul. O líder taliban Muhammad Umar nomeou o seu vice Mullah Muhammad Rabbani como chefe de um conselho nacional que foi chamado de Emirado Islâmico do Afeganistão. Depois de quatro anos de guerra tinham chegado então ao poder os Talibans.

A paz havia voltado a Cabul, mas a escola onde a rapariga tralhava nunca mais foi aberta. As escolas para meninas continuavam fechadas e, da noite para o dia, ela perdeu a possibilidade de procurar outro emprego, como todas as outras mulheres de Cabul. Como ela, haviam desaparecido dois terços dos professores da cidade. Várias escolas para meninos também tiveram de fechar porque não havia professores homens. Não havia professores homens adequadamente qualificados para mantê-las abertas.

Os anos passaram. Os poucos sinais de vida do professor cessaram de vez. Passou a ser obrigada a ficar em casa como as outras mulheres. Não podia trabalhar, não podia sair sozinha, tinha que se cobrir. Fazia muito tempo que a vida tinha perdido as cores. Quando completou trinta anos, os pretendentes deixaram de aparecer.

Um dia, após quatro anos cativa em casa com a mãe, um parente distante foi lá pedir à mãe a sua mão para um fulano cuja mulher havia morrido de repente. As crianças precisavam de uma mãe. Ele é gentil e tem um pouco de dinheiro. Ele nunca foi soldado, nunca fez nada ilegal, é honesto e tem boa saúde. A esposa ficou louca de repente e morreu, deixando-lhe dez filhos. Havia pressa para encontrar uma nova esposa para o pai de dez filhos. Os mais velhos cuidavam dos mais novos, mas não estavam dando conta da casa.

A mãe matriarca disse que iria pensar e informar-se com amigos e parentes sobre o homem. Bem, acabou por chegar à conclusão de que o pretendente à filha era trabalhador e honesto. Além do mais, havia pressa também para a filha, caso ela algum dia viesse a querer ter os seus próprios filhos. Estava escrito que a filha precisava sair de casa, e ela contava isso a todos os que a quisessem ouvir. Já que os Talibans não deixavam as mulheres trabalhar, ela não perguntou se ele deixaria. Normalmente, o casamento é feito com o consentimento dos pais, mas o homem estava nos cinquenta. Ele era motorista de camião e fazia longas viagens. Ele mandou sua irmã de novo, depois o irmão, de novo a irmã, mas nunca encontrou tempo para vir ele mesmo.

Ora bem, o noivado andava a arrastar-se de modo que ninguém estava contente até que, eis de repente, dá-se o ataque às torres gémeas em nova Iorque, 11 de setembro de 2001. Dois meses depois de os Talibans terem desaparecido de Cabul, aparece o pretendente. Dão-se então início as conversações tendo em vista o casamento. Do canto atrás do forno a noiva fica atenta às decisões sobre o seu destino e à data do seu casamento. As quatro pessoas nas almofadas tomam todas as decisões, sem que os noivos tenham trocado sequer um olhar. Ela passa o tempo a olhar para as paredes, para o vazio. Ela parece não se importar, e coloca mais algumas lascas de madeira na lareira.

Ninguém a importuna com perguntas, ela apenas está presente, como sempre, antes de se arrastar para fora da sala, para lavar a louça, que é uma das suas tarefas. Ela reclama, apesar de o tecido para o vestido de noiva já estar escolhido e só faltar entregá-lo ao costureiro. Mas resta ainda o enxoval, roupas de cama, louças. O viúvo já tem a maior parte, mas de qualquer maneira é preciso que a noiva leve algumas coisas novas com ela. Ele é baixinho, ela gosta de homens altos. É calvo, e poderia ter alguns anos a menos. Já pensaram se ele se mostrar um tirano, se não for gentil, se não a deixar sair? Não, diz a mãe resoluta, ele será um bom marido . . .

Dois dias depois do acordo, uma irmã da noiva manda convites para a festa de noivado, tem 29 anos e é casada pela segunda vez. O seu primeiro marido morreu durante a guerra civil. Agora está grávida, esperando seu quinto filho.

Quando os velhos da família estão por perto, os noivos não devem ter contacto físico. Mas agora, estes noivos falam em voz baixa, mal prestando atenção aos outros, que, curiosos, tentam ouvir partes da conversa. Não é uma conversa muito afetuosa. Ela fala mais para o vazio. De acordo com os costumes, não deve olhar o noivo nos olhos, antes do casamento. Mas ele olha-a o tempo todo. Mal pode esperar que passem esses 15 dias até que seja sua, diz ele. Ela cora, mas continua com o olhar fixo no vazio. Ele nem conseguiu dormir a noite toda, a pensar nela. E continua a dizer coisas soltas, e ela nada. Até que tomou coragem e perguntou: “Vai permitir que eu trabalhe?”. Ele diz que sim, mas ela não confia nele. Ele pode mudar de ideias assim que casarem. Mas ele assegura que se trabalhar a deixa feliz, tudo bem, além de cuidar dos seus filhos e da casa.

Ele tira o chapéu castanho, igual ao dos Ahmad Massoud, na foto exibida acima na abertura deste artigo, e que é típico da etnia tajique, o segundo maior grupo étnico no país, e usado pelos seguidores da Aliança do Norte. O maior grupo étnico é o pashtun

E ela não resiste e diz que ficou feio sem o chapéu, porque é careca. Ele não responde à ofensa da futura esposa e leva a conversa para terrenos mais seguros, como as compras que ela fez. Ela passou o dia no mercado de Cabul comprando coisas de que precisará para o casamento. E comprou presentes para todos os parentes, os dela e os dele. É ele quem entregará os presentes, como um gesto para a família que a está dando em casamento. Ele paga e ela faz as compras: chávenas, travessas, talheres, lençóis, toalhas de banho e tecidos para túnicas. Ele acende um cigarro e ela reclama, dizendo que não gosta de cigarros. Se ele fumar, então não gostará dele. Ele repreende-a, dizendo que devia ser mais educada. E de seguida diz em tom ameaçador: “Você deve usar o véu, é obrigação da mulher usar. A burca não, mas o lenço. Pode fazer como quiser, mas se não usar o lenço vou ficar triste. Você quer ver-me infeliz?”


 
Nilofar Ibraimi - afegã-tajique

Shukira Barakzai - afegã-pashtun

Agora estou triste. Estou arrependida. Estou triste porque vou deixar a minha família. Já pensaram se ele não me deixar visitar a minha família? Se ele nem me deixar trabalhar? Agora que posso? E se ele me trancar em casa?

A matriarca teve 12 filhos, e assistiu a três guerras e a cinco golpes de estado. Agora viúva, prepara-se, finalmente, para se libertar da última filha. Ela já a havia segurado por muito tempo, passava dos trinta e já não era tão atraente para o mercado de casamento. Aquele que esta noite acabou de sair pela porta como noivo é um viúvo, cinquenta de idade e dez filhos. A lâmpada de parafina no chão estala. Os pensamentos sombrios assolam também as irmãs. Melhor encarar o homem de antemão.

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