quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Radicalismo. Nacionalismo. Populismo. E o viés mediático


Radicalismo é o que estamos a ver nos partidos laterais aos chamados partidos moderados do centro na grelha classificativa do espetro político, que adotam posições extremas em relação a questões políticas e sociais. Geralmente rejeitam compromissos procurando romper com o status quo, opondo-se às visões mais moderadas ou progressistas da sociedade. Esse radicalismo é sistematicamente direcionado contra as políticas de imigração, multiculturalismo e globalização, que são vistas como ameaças à identidade nacional e cultural.

O Nacionalismo é uma pedra angular de vários movimentos que estão hoje a atravessar toda a Europa de Este para Oeste e de Norte para Sul. Enfatizam a importância da identidade nacional e cultural, promovendo a ideia de que cada nação ou povo tem um direito inalienável de preservar e proteger as suas tradições, valores e território contra influências externas. Esse nacionalismo é muitas vezes etnocêntrico, focando-se numa ideia de pureza cultural e na proteção dos interesses do nativismo (povo nativo) contra a imigração e a integração cultural.

O Populismo é caracterizado por uma retórica que contrapõe "o povo"  - "a elite" e "os outros" (frequentemente imigrantes ou minorias). Procura mobilizar o descontentamento popular contra as elites políticas, mediáticas e intelectuais, acusando-as de serem cúmplices na destruição das tradições nacionais e na imposição de valores cosmopolitas. O populismo serve como uma ferramenta para ampliar o apelo ao patriotismo utilizando uma linguagem simples e direta para sensibilizar o sentimento de frustração e exclusão de muitos cidadãos.

Há percepções em relação ao viés de inclinação política nos órgãos de comunicação. Isso varia, se falarmos das direções, a inclinação pende para a direita; se falarmos da classe dos jornalistas a maioria pende para a esquerda. As direções dos meios de comunicação são frequentemente vistas como mais conservadoras ou alinhadas aos interesses económicos dos proprietários e investidores. Isto reflete-se, muitas vezes, em pressões por uma cobertura mais centrada ou moderada, especialmente em questões económicas e políticas que possam afetar grandes interesses financeiros. Os jornalistas, por outro lado, tendem a ser percebidos como mais inclinados à esquerda, particularmente em questões sociais e culturais. Pesquisas em vários países têm mostrado que muitos jornalistas pessoalmente se identificam com causas progressistas, especialmente em temas como direitos civis, igualdade de género e proteção ambiental. No entanto, essa inclinação pessoal nem sempre se reflete diretamente na cobertura, que pode ser filtrada pelas direções e linhas editoriais dos meios de comunicação. Em muitos casos, há uma tensão visível entre os jornalistas de base e os editores seniores ou executivos. A direção de grandes conglomerados mediáticos pode pressionar por coberturas que não prejudiquem os seus patrocinadores ou interesses comerciais. Isso pode levar os jornalistas a sentir que o seu trabalho é restringido ou modificado para se alinhar com uma narrativa mais "segura" ou favorável aos interesses corporativos.

O público muitas vezes percebe que a imprensa tem um viés, mas essa percepção varia conforme a afiliação política do observador. Leitores e espectadores de direita tendem a ver os grandes consórcios mediáticos como inclinados para a esquerda, especialmente em questões sociais e culturais. Por outro lado, muitos na esquerda sentem que a imprensa serve aos interesses das elites económicas e tende a ser complacente ou alinhada com o status quo capitalista. A ascensão de plataformas digitais também contribuiu para a polarização dessa percepção. Muitos desses meios alternativos posicionam-se explicitamente contra o mainstream, alegando que serve aos interesses do poder estabelecido. A propriedade dos meios de comunicação é outro fator nessa percepção. Grandes conglomerados controlam uma parte significativa da imprensa, levando a críticas de que esses meios refletem os interesses de seus acionistas e proprietários. A concentração em poucas mãos é, para muitos críticos, uma das razões pelas quais há uma percepção de viés alinhado com o poder económico.

As redes sociais criaram "bolhas" onde diferentes segmentos da população consomem conteúdos que reforçam as suas próprias visões políticas, contribuindo para uma percepção de que os média do sistema são parciais ou insuficientes na cobertura de certos tópicos. Em Portugal, o panorama da percepção entre as direções dos órgãos de comunicação e os jornalistas segue algumas tendências observadas internacionalmente, mas também apresenta especificidades próprias ao contexto político e mediático do país.

A percepção de viés político na imprensa portuguesa é amplamente polarizada. Como em muitos outros países, leitores de direita tendem a acusar a imprensa de inclinação para a esquerda, especialmente nas questões sociais e culturais. Já os setores de esquerda, por sua vez, frequentemente criticam a complacência perante os interesses capitalistas com a sua linha editorial pró-establishment. Por exemplo, há uma percepção de que determinados meios têm uma relação mais próxima com o Partido Socialista (PS) ou, em menor grau, com o Bloco de Esquerda (BE), enquanto outros são vistos como mais próximos do Partido Social Democrata (PSD) ou até do Partido Comunista Português (PCP).

As direções dos principais meios de comunicação tendem a ser vistas como mais conservadoras e pragmáticas, especialmente em relação a questões que envolvem interesses económicos. Empresas de comunicação em Portugal como a Impresa (proprietária do Expresso e SIC) entram em competição com a Cofina (Correio da Manhã e CMTV), dado interesses financeiros divergentes. Os jornalistas, por outro lado, tendem a ser vistos como mais inclinados à esquerda, sobretudo em questões sociais, como igualdade de género, direitos LGBT e justiça social. Alguns estudos sugerem que há uma maior identificação pessoal dos jornalistas com valores progressistas, embora essa inclinação seja muitas vezes limitada pelas direções e políticas editoriais.

Títulos como o Público e o Expresso são, por vezes, acusados de terem uma cobertura mais inclinada à esquerda em temas culturais e sociais, especialmente pelos críticos à direita. O Público, em particular, é frequentemente acusado de dar voz a intelectuais progressistas e ativistas. Por outro lado, estes mesmos meios são criticados pela esquerda mais radical, que os considera excessivamente centristas e alinhados aos interesses económicos dominantes. O Correio da Manhã, que é um dos jornais mais vendidos em Portugal, é frequentemente visto como populista e conservador, tanto nas suas reportagens sensacionalistas como na sua linha editorial, sendo amplamente criticado pela esquerda por fomentar um discurso punitivo e anti-imigração.

A RTP, sendo uma televisão estatal, enfrenta críticas de ambos os lados do espectro político. A direita muitas vezes acusa a RTP de ser inclinada ao PS, enquanto setores mais à esquerda veem a emissora como excessivamente alinhada ao poder económico e ao status quo político. As televisões privadas, como a SIC e a TVI, também são objeto de críticas regulares. A SIC, por exemplo, é frequentemente vista como mais próxima de uma linha centrista ou moderada, enquanto a TVI, dependendo da fase de direção, é vista como mais populista em determinados programas e debates. A CMTV é criticada pela sua abordagem sensacionalista e, tal como o seu jornal irmão, o Correio da Manhã, é vista como uma plataforma de direita populista.

O surgimento de plataformas digitais, como o Observador, trouxe novos atores ao cenário mediático. O Observador é frequentemente descrito como um meio de comunicação com uma clara inclinação liberal, referência para muitos leitores de direita. Por outro lado, meios como o Esquerda.net, ligado ao Bloco de Esquerda, dão voz à perspectiva da esquerda radical. Alguns meios independentes como o Setenta e Quatro ou o Fumaça são percebidos como mais inclinados à esquerda, com uma abordagem crítica e ativista em relação ao governo, à desigualdade e às questões ambientais.

Os sonhos


Os sonhos têm sido objeto de muitos estudos interdisciplinares, envolvendo áreas como a neurociência, a psicologia, e até mesmo os estudos das disciplinas das humanidades, os designados estudos culturais. As investigações mais recentes têm avançado bastante na compreensão de como e porque sonhamos, com teorias que tentam conciliar processos neurológicos e aspectos subjetivos da experiência pessoal.

O que sabemos atualmente sobre os sonhos baseia-se principalmente nas descobertas feitas a partir de estudos de neuroimagem e da observação do sono REM (Rapid Eye Movement). Durante o sono REM, a atividade cerebral aproxima-se da que ocorre quando estamos acordados, e é nesse estádio que os sonhos mais marcantes geralmente acontecem. Alguns investigadores sugerem que os sonhos são o resultado de uma "atividade neural aleatória", conhecida como teoria da ativação sintética. Nessa visão, os neurónios disparam aleatoriamente durante o sono, e o cérebro tenta dar sentido a esses impulsos, criando as tais narrativas que designamos por sonhos.

Teorias sobre o significado dos sonhos começaram com Sigmund Freud, no início do século XX. Freud propôs que os sonhos são uma forma de manifestação de desejos reprimidos ou inconscientes. Já Carl Jung sugeriu que os sonhos podem ser expressões simbólicas do inconsciente coletivo, conectando-nos a arquétipos universais. Essas teorias continuam a influenciar algumas abordagens psicológicas, mas os estudos mais produtivos realizados mais recentemente têm-se focado mais na compreensão biológica e neuropsicológica do fenómeno. Os sonhos podem desempenhar uma função adaptativa importante, ajudando na regulação emocional e no processamento de experiências do dia a dia. Os sonhos podem estar relacionados com o processamento de memórias ligadas às emoções, integrando as experiências vividas. Uma espécie de "ensaio mental" para nos prepararmos para as situações sociais envolvidas em maiores conflitos.

Uma ideia muito controversa é a dos "sonhos lúcidos". Os sonhos lúcidos são um fenómeno controverso, pois tocam em questões filosóficas, psicológicas e até neurocientíficas sobre a consciência e a natureza da realidade. Basicamente, um sonho lúcido ocorre quando o sonhador se torna consciente de que está sonhando e, em alguns casos, consegue exercer certo controlo sobre os eventos do sonho. Porque são controversos? Isso começa logo com a questão do consciente e o inconsciente. Tradicionalmente, o estado de sonho é visto como um domínio do inconsciente, onde a racionalidade está suspensa. A ideia de que a mente pode "acordar" dentro do próprio sonho desafia essa noção, levantando questões sobre até que ponto a consciência pode operar nesses estados.

Ora, o que provavelmente está em causa é a questão dos “estados alterados de consciência”. Alguns pesquisadores e místicos associam os sonhos lúcidos a experiências fora do corpo, projeção astral ou até mesmo viagens espirituais. Isso está fora do limiar da ciência, entrando mais no domínio do esoterismo. Há debates sobre os efeitos dos sonhos lúcidos. Alguns estudiosos sugerem que eles podem melhorar a criatividade e o autoconhecimento, enquanto outros alertam que um excesso de sonhos lúcidos pode prejudicar a qualidade do sono e até mesmo confundir a percepção entre realidade e sonho em pessoas mais sugestionáveis.

Estudos experimentais com eletroencefalografia e ressonância magnética em alegados sonhos lúcidos o que mostram é as áreas do córtex pré-frontal mais ativadas. Isso levanta a questão: se podemos "despertar" no sonho e decidir ações, isso significa que temos livre-arbítrio até mesmo dentro do sono? Ou será apenas uma ilusão de controlo? Se a mente pode criar experiências tão vívidas no sonho, como podemos ter a certeza de que não estamos sonhando agora?

A mente humana ainda é um terreno fértil para especulações, e sempre haverá aqueles que tentam explorar a complexidade desse tema para lucrar com pseudociência ou promessas vazias. O fenómeno dos sonhos lúcidos, como muitos outros dentro da neurociência e da psicologia, atrai tanto pesquisadores sérios como charlatões que vendem métodos milagrosos para "controlar a realidade" acedendo a outras dimensões para expandir a consciência sem qualquer base científica. A grande questão é que, apesar do avanço das ciências cognitivas, ainda sabemos surpreendentemente pouco sobre o funcionamento profundo da mente, especialmente sobre a consciência e seus estados alterados. Isso abre espaço para todo o tipo de interpretações, desde explicações rigorosamente científicas até teorias místicas ou conspiratórias.

Estamos a falar de uma área onde muitos incautos caem. O desejo de entender e dominar a própria mente é poderoso, e muita gente busca respostas fáceis para questões que a ciência ainda investiga com cautela. No caso dos sonhos lúcidos, há quem venda a ideia de que é possível viver uma "segunda vida" perfeita dentro dos sonhos, sem consequências, o que é, no mínimo, duvidoso. No fim de contas, estudar a mente exige um olhar crítico e rigoroso, uma coisa que é para poucos, ou algo que poucos estão dispostos a ter. A verdade é que, mesmo com todo o conhecimento que acumulamos, o cérebro continua a ser um dos maiores mistérios da ciência.

António Damásio, bem como outros investigadores, relacionam os sonhos ao processamento emocional e à construção do "eu" consciente. De acordo com essa perspectiva, os sonhos seriam uma forma de o cérebro organizar e integrar os estados emocionais vivenciados, ajudando a fortalecer a sensação do "eu" ao refletir sobre esses estados internos. Também Francisco Varela, o pensador da cognição incorporada, também assegurou que a experiência onírica está ligada a um processo mais geral de construção da experiência do "eu", que vai além da vigília e da experiência externa, incluindo as emoções através do corpo.

Considerando esses investigadores, podemos afirmar, acerca da natureza do fenómeno onírico, que os sonhos são um fenómeno multifacetado: uma mistura de processos biológicos, cognitivos e emocionais que tentam lidar com as experiências vividas. Daí resulta a construção de narrativas internas que o cérebro tenta processar com todas as imprecisões que isso acarreta. Seja como for, mesmo com as explicações neurológicas, não conseguimos explicar totalmente porque sonhamos ou qual é o significado exato de cada sonho. Os estudos mais recentes sugerem que os sonhos não são apenas uma atividade neural aleatória ou sem propósito, mas estão intimamente ligados ao processamento emocional, à organização de memórias e à construção do "eu". Por conseguinte, a natureza dos sonhos ainda é um campo aberto, onde as teorias de diferentes áreas se cruzam, incluindo a neurociência, a psicologia, e até mesmo a filosofia da mente.

Se há, de facto, uma base existencial do "eu", não se percebe de onde vem a inventividade surreal num pandemónio de estados de passividade híbrida. A questão da inventividade surreal nos sonhos e estados de passividade híbrida é um aspecto fascinante e paradoxal da experiência humana, especialmente quando se considera que, de acordo com muitos estudos, o "eu" e a consciência são sustentados por processos neurológicos ligados às emoções. No entanto, os sonhos e a criatividade, especialmente nas formas mais surreais ou fragmentadas, muitas vezes desafiam toda a racionalidade. Imagens e narrativas que parecem não ter lógica ou coesão com a realidade quotidiana.

Aqui estão algumas perspectivas que podem ajudar a compreender essa inventividade surreal e a aparente desconexão com o "eu". Uma explicação clássica, como a teoria da ativação sintética, sugere que os sonhos são o resultado de atividade neural aleatória durante o sono REM. O cérebro tenta dar sentido a esses impulsos nervosos, e como eles não são necessariamente organizados por uma narrativa ou lógica consciente, a mente cria imagens desconexas, surreais e muitas vezes inesperadas. Essa inventividade pode ser vista como uma espécie de "jogo" mental que o cérebro faz com a informação disponível, sem estar restrito pela lógica ou pela necessidade de coerência do mundo real. Muitos teóricos, como Freud e Jung, atribuíram a inventividade nos sonhos à expressão do inconsciente. O inconsciente, por sua natureza, é visto como livre das restrições da lógica racional e da moralidade consciente. A "criatividade" onírica pode ser uma forma do inconsciente explorar, sem limites, imagens, símbolos e desejos reprimidos, ou ainda não reconhecidos. Nesse sentido, a inventividade nos sonhos não vem do "eu" consciente, mas de uma dimensão mais profunda da psique, que se expressa de maneira livre e não linear.

Quando sonhamos, ou estamos num estado de passividade híbrida (como em estados alterados de consciência), as estruturas do "eu" podem ser momentaneamente desreguladas. No cérebro, regiões ligadas à autoconsciência, como o córtex pré-frontal, podem ser menos ativas durante o sono REM, enquanto outras áreas responsáveis pela emoção, imaginação e memória estão mais ativadas. Isso resulta na desconexão entre a percepção do "eu" e os processos criativos, permitindo que a mente se expanda sem os limites impostos pela lógica e pela coesão do mundo real. A passividade híbrida pode, assim, ser vista como um estado em que o "eu" consciente deixa de ser a força organizadora, dando espaço para o processamento livre e inventivo das experiências.

A teoria da cognição corpórea (o nosso corpo sabe de mais coisas que a própria consciência desconhece), como a que nos trouxeram Francisco Varela e outros, sugere que a mente não é apenas uma "máquina", o cérebro, que processa sozinho a informação - como se estivesse isolado numa cuba -mas uma rede complexa que está intimamente embebida e conectada com corpo, por sua vez conectado com o ambiente que o envolve. E esse ambiente é não apenas local, mas também global, cósmico, se assim o quisermos chamar. Nesse contexto, os sonhos podem ser uma forma de "ensaio" para situações ou possibilidades que envolvem mais do que apenas uma narrativa linear ou uma necessidade de "sentido". A inventividade surreal nos sonhos pode refletir a mente tentando criar um mapa mais flexível, menos restritivo da realidade, onde diferentes aspectos da experiência, incluindo o corpo, emoções e pensamentos, podem ser combinados de forma inesperada.

Assim, a inventividade surreal dos sonhos também pode ser compreendida sob a perspectiva de que a criação muitas vezes ocorre sem a intenção consciente do "eu". Em um estado de passividade, como no sonho, ou em certos estados alterados de consciência, a criatividade pode emergir sem a estrutura que impõe o controlo racional. Em outras palavras, a libertação da mente das amarras da consciência vigil pode resultar na criação de imagens e histórias que são criativas, mas sem um propósito ou intenção racional. Isso não significa que essas imagens sejam arbitrárias ou sem valor, mas sim que podem surgir como expressões espontâneas de uma mente que opera de um modo não linear e menos controlado.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Da Certeza: em filosofia e ciência



René Descartes, Edmund Husserl, assim como Ludwig Wittgenstein - dedicaram-se intensa e profundamente à questão da certeza, cada um em seu contexto e abordagem filosófica particular. 
Descartes, com o seu “cogito, ergo sum” (penso, logo existo), tentou estabelecer uma base absolutamente certa para o conhecimento, partindo da dúvida metódica, ia ao encontro de algo que fosse inquestionável. Essa busca pela certeza absoluta levou à ideia de que a existência do sujeito pensante era a primeira verdade inabalável. Husserl buscou na Fenomenologia um fundamento sólido para o conhecimento. Assim, desenvolveu um método cujo nome o foi buscar aos gregos anrigos -  epoché. Significava a redução fenomenológica, ou seja, a suspensão do julgamento sobre a existência do mundo exterior. Devia corresponder apenas à experiência consciente pura e simples. E com isso ele almejava alcançar a ciência rigorosa baseada na análise daquilo que era evidente dado à consciência. 
Wittgenstein, em obras como “Sobre a Certeza”, tratou da natureza das proposições que consideramos certas sem questionamento no seio da linguagem prática. Como tal, a sua abordagem era mais linguística, questionando os fundamentos do que consideramos "conhecimento" dentro do uso da linguagem. 

Portanto, embora cada um tenha seguido caminhos e métodos diferentes, eles estavam enredados em terem a certeza do conhecimento. Para todos os efeitos era uma forma de lidarem com a verdade e com a realidade. Husserl, apesar de ter alguma afinidade com Wilhelm Dilthey, focados na experiência humana, afastou-se, contudo, da filosofia cosmovisional que Dilthey defendia. Dilthey buscava uma compreensão do mundo a partir de uma abordagem que integrava a historicidade e a vida concreta da humanidade (Geisteswissenschaften). Era a interconexão entre a experiência vivida e a interpretação histórica da realidade. Husserl, por sua vez, procurou uma fundamentação mais rigorosa e universal por meio da fenomenologia transcendental. Este termo significava o alcance das essências e verdades universais por meio da análise da consciência numa relação de intencionalidade, termo que ele foi buscar ao seu mestre Brentano

O conceito de intencionalidade foi recuperado por Franz Brentano da Escolástica, uma subcategoria dentro da filosofia medieval para definir o estatuto da consciência, qualificada por estar dirigida para algo, ou de ser acerca de algo, possuída pela maior parte dos nossos estados conscientes. Este termo queria dizer que a consciência é consciência sempre de alguma coisa. Enquanto Dilthey mantinha uma visão mais histórica e contextualizada do conhecimento, argumentando que a experiência humana é inseparável das circunstâncias históricas e culturais, Husserl via a fenomenologia como um estratagema para suspender esses contextos (epoché) e alcançar uma descrição "pura" das estruturas da consciência.

Essa divergência marca uma diferença fundamental: Husserl buscava a certeza por meio de uma análise que transcendesse as limitações históricas e culturais, enquanto Dilthey acreditava que o conhecimento humano e a compreensão do mundo eram inseparáveis do fluxo da vida e da história. Por isso, Husserl se afastou da abordagem cosmovisional e historicamente enraizada de Dilthey para criar uma base mais atemporal e universal do conhecimento. Husserl, para se livrar da mundividência de cada época, e tentar apenas um tipo de mundividência perene, inventou o método fenomenológico com o termo já conhecido de "epoché". Husserl desenvolveu o método fenomenológico e introduziu o conceito de epoché precisamente para lidar com as limitações impostas pelas visões de mundo particulares de cada época e contexto histórico. A epoché é um procedimento de suspensão do juízo, onde se coloca em parênteses todas as suposições e crenças pré-concebidas sobre o mundo exterior. Com isso, Husserl pretendia libertar a consciência de todas as influências externas e históricas que pudessem distorcer a análise filosófica.

O objetivo da epoché era permitir que o filósofo alcançasse uma perspectiva puramente descritiva da experiência consciente, investigando as essências dos fenómenos tal como se manifestam diretamente à consciência. Husserl acreditava que essa "redução fenomenológica" poderia oferecer um caminho para uma compreensão perene e universal da experiência humana, livre das contingências e variações de diferentes mundividências ou épocas históricas. Dessa forma, ao isolar a consciência das influências culturais e históricas, Husserl buscava alcançar uma base epistemológica sólida e atemporal, que pudesse servir de fundamento para todas as ciências e todo o conhecimento. A fenomenologia transcendental era, assim, uma tentativa de encontrar uma estrutura universal subjacente à experiência humana, uma resposta à busca por uma mundividência que transcendesse as particularidades e pudesse ser perene.

Assim, a consciência é a provedora do momento do mundo enquanto fenómeno, e não enquanto essência ontológica. Na fenomenologia de Husserl, a consciência não é determinadora da natureza ontológica do "ser" em si. A intencionalidade da consciência é sempre dirigida a algo – ou seja, a consciência é sempre "consciência de" um objeto ou fenómeno. Isso significa que a consciência tem a função de revelar ou apresentar os fenómenos tal como eles lhe aparecem, mas não determina a existência ontológica independente desses fenómenos. Husserl distingue, por assim dizer dois mundos: o mundo do fenómeno; e o mundo do "ser". Um investigador, enquanto fenomenólogo, investiga como os fenómenos se apresentam no campo da consciência. Ao passo que um investigador enquanto cientista ontológico vai ao encontro da essência do "ser", ultrapassando o campo da percepção subjetiva. Mas estes caem num engodo, porque os da mecânica quântica postularam que o observador altera o objeto da observação com a própria observação. 

Assim, o fenomenólogo acaba por não se comprometer com esse engodo, na medida em que o interesse está em como os objetos se manifestam na consciência humana. Husserl acreditava que era uma uma base sólida, uma vez que era nessa base os seres vivos perseveram e providenciam pela manutenção da vida. Por conseguinte, Husserl não se comprometia com as questões metafísicas sobre a existência e essência do mundo. Na fenomenologia, a consciência é o meio pelo qual o mundo fenomenal se revela. Mas Husserl não afirma que a consciência cria ou determina a realidade ontológica em si. A redução fenomenológica e o método da epoché são ferramentas para descrever a experiência pura sem fazer reivindicações sobre a realidade independente. Em resumo, a fenomenologia busca descrever "o que aparece" na consciência, não determinando "o que é" em termos ontológicos. 

António Damásio e Francisco Varela, cada qual à sua maneira, mergulharam nos problemas da consciência. António Damásio e Francisco Varela trouxeram contribuições significativas para o estudo da consciência, cada um com abordagens distintas, mas que dialogam de certa forma com questões fenomenológicas e científicas.

António Damásio, um neurocientista português, avançou na compreensão da consciência ao integrá-la com as bases biológicas e emocionais do cérebro. Em obras como O Erro de Descartes, Damásio desafia a dualidade cartesiana entre mente e corpo, propondo que a consciência não é uma entidade separada, mas algo que emerge da interação entre o cérebro e o corpo. Ele desenvolve a ideia de que emoções e sentimentos desempenham um papel crucial na construção da mente consciente. A "consciência de ordem superior", que ele descreve, inclui um processo contínuo de acompanhamento do corpo e do mundo exterior, destacando que o "eu" surge como resultado desse processo integrado.

Francisco Varela, por sua vez, foi um biólogo, filósofo e neurocientista que trouxe uma abordagem mais interdisciplinar ao estudo da mente e da consciência. Trabalhando com conceitos como autopoiese e cognição da mente corpórea, Varela enfatizou a ideia de que a mente é uma emergência do mundo físico, ou seja, a mente não é uma entidade isolada, mas algo que emerge da interação constante com o ambiente. Ele foi influenciado pela fenomenologia, especialmente por Husserl e Merleau-Ponty, e tentou unir a ciência cognitiva com a prática meditativa budista e a experiência subjetiva. No livro The Embodied Mind, que escreveu em coautoria com Evan Thompson e Eleanor Rosch, Varela propôs que a consciência fosse estudada tendo em consideração os dois lados da moeda cognitiva: objetividade e subjetividade, ambas mais viradas para a experiência e não tanto para a teoria.

Damásio e Varela, ao irem mais longe no aprofundamento da consciência contribuíram para uma melhor compreensão do que está em causa quando falamos de consciência. Tentaram quebrar com a persistente concepção do conceito dualista mente/corpo que remontava ao tempo de Descartes. Embora não seguindo propriamente os conceitos anteriores de monismo e holismo. Damásio trabalhou a relação mente/corpo a partir das emoções segundo a abordagem da da neurociência. Varela enveredou por uma perspectiva integradora da biologia com a fenomenologia no âmbito da experiência vivida. A consciência como um fenómeno enativo, ou seja, proveniente da ação corpórea. Esses esforços complexificaram ainda mais a questão da consciência, mas mostraram que é do domínio do fenómeno relacional que a consciência emerge de forma espontânea sem nenhuma vontade ou propósito. Nada de metafísico. Nada separado do mundo físico, aqui e agora.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

A epoché em Edmund Husserl


Na fenomenologia de Edmund Husserl, a epoché é um método filosófico que envolve a suspensão ou a "colocação entre parênteses" de todas as crenças e pressuposições sobre o mundo. O objetivo dessa suspensão é permitir que o filósofo examine a essência das experiências e dos fenómenos como eles se apresentam à consciência, sem as influências das interpretações quotidianas e científicas que normalmente as acompanham. A epoché é, assim, um meio de separar ou suspender o pensamento do "mundo da vida" (Lebenswelt), que é a esfera das experiências quotidianas pré-reflexivas. O mundo da vida é o campo de onde emergem todas as nossas experiências e onde operamos de forma natural, aceitando a realidade sem questioná-la criticamente. No entanto, para Husserl, compreender as estruturas subjacentes dessa experiência requer uma abordagem que transcenda essas suposições não examinadas.

O processo de epoché implica que o sujeito ponha de lado a sua atitude habitual e aceite a realidade que se lhe oferece tal como é percebida. É a essa adoção que Husserl chama posição fenomenológica. Isso não significa negar a existência do mundo, mas sim deixar de lado a sua "validade" ontológica, ditada pelo conhecimento científico prévio, para apreciar a forma como o mundo aparece na consciência. Em outras palavras, Husserl busca compreender como o mundo é experienciado antes de qualquer interpretação ou julgamento sobre a sua existência objetiva. Dessa forma, a epoché permite ao sujeito explorar a consciência pura e as estruturas intencionais que formam a base de toda a experiência. Por exemplo, quando olhamos para um objeto, como uma árvore, a epoché nos permite investigar o "como" dessa experiência — como a árvore é dada à nossa consciência — sem assumir automaticamente que ela existe lá fora independente da nossa consciência que percepciona.

Husserl acredita que é por meio da epoché que alcançamos a nossa “folha em branco”, limpa de preconceitos e experiências prévias, o tal ponto de partida absoluto sobre o qual edificamos o nosso primeiro conhecimento do mundo. Ou melhor, a partir do qual podemos compreender a essência dos fenómenos. É apenas o conteúdo que a consciência tem através apenas da mera experiência reflexiva. A dificuldade da epoché, que é desafiante, está na sua realização prática. Suspender todas as crenças e suposições sobre o mundo requer uma atitude extremamente rigorosa e reflexiva. No entanto, para Husserl, essa prática é essencial para separar a análise filosófica pura das interpretações do "mundo da vida", permitindo uma investigação mais profunda sobre a natureza da experiência e da subjetividade. Portanto, o método proposto por Husserl consiste apenas no exame da experiência vivida de forma mais direta. O que não significa que se trate de uma rutura ou de uma separação entre pensamento e experiência vivida, mas sem as premissas e julgamentos habituais que vêm com ele, permitindo uma análise que revela as estruturas fundamentais da consciência e da experiência.

Há uma certa semelhança entre o método da epoché de Husserl e a abordagem dos ascetas, embora as finalidades e os contextos sejam bastante diferentes. Tanto a epoché como as práticas ascéticas envolvem um afastamento de certas crenças, hábitos e envolvimentos com o mundo exterior, buscando um estado de maior pureza e introspecção. No entanto, enquanto a prática ascética busca, muitas vezes, um desprendimento espiritual e uma elevação moral ou religiosa que transcende a vida terrena e material, a epoché de Husserl tem um objetivo filosófico e cognitivo: a suspensão dos juízos para investigar a essência da experiência consciente.

Os ascetas se esforçam para dominar os desejos e alcançar uma vida de disciplina e contemplação, muitas vezes visando a comunhão com uma verdade ou divindade superior. Essa separação do mundo sensorial é entendida como uma forma de purificar a alma e alcançar um estado de iluminação ou salvação. Eles veem o mundo sensorial e material como uma fonte de distrações e tentações que devem ser superadas para atingir uma verdade mais profunda.

Já Husserl, na epoché, não busca rejeitar ou transcender o mundo em favor de uma verdade espiritual, mas sim suspender temporariamente os julgamentos sobre ele para investigar como ele aparece à consciência. A epoché não implica uma renúncia definitiva ao mundo da vida, mas uma pausa metodológica para que a experiência possa ser compreendida de forma mais pura e direta. É um esforço para retornar ao "ser das coisas" como elas se apresentam à nossa consciência, sem as construções interpretativas que geralmente as acompanham.

Portanto, enquanto o mundo dos ascetas envolve uma retirada para buscar uma experiência espiritual transcendente, a epoché é um exercício de distanciamento fenomenológico para alcançar uma análise mais rigorosa da consciência e da experiência humana. A semelhança está no movimento de suspensão e afastamento de uma perspectiva mundana imediata. Dito isso, ambos os métodos podem ser vistos como formas de tentar alcançar uma verdade ou compreensão mais profunda da realidade, embora cada um tenha sua própria abordagem e motivação. Husserl busca esclarecer como o mundo é estruturado na experiência subjetiva, enquanto os ascetas buscam transcender a realidade quotidiana em direção a uma realização espiritual.

A escolha da palavra epoché por Husserl não é acidental e remete diretamente à tradição dos céticos gregos. No ceticismo antigo, a epoché significava a suspensão do juízo, uma atitude de abstenção de afirmar ou negar qualquer crença acerca da realidade. Os céticos gregos, como Pirro de Élis e seus seguidores, usavam a epoché como uma prática filosófica para alcançar a ataraxia, um estado de paz e imperturbabilidade da mente, ao se abster de fazer julgamentos definitivos sobre o que é verdadeiro ou falso. Essa conexão histórica é importante porque sugere uma atitude comum de suspensão de julgamentos e de distanciamento crítico em relação às certezas imediatas. No entanto, a aplicação que Husserl faz da epoché difere da dos céticos gregos. Enquanto os céticos gregos praticavam a epoché como uma forma de viver em equilíbrio e evitar o sofrimento causado pela dúvida, Husserl a emprega como um método filosófico rigoroso para explorar a consciência e revelar as essências dos fenómenos.

Para Husserl, a epoché é uma etapa fundamental na redução fenomenológica, que permite aos filósofos examinar as experiências tal como elas aparecem, sem se comprometer com a existência objetiva do mundo exterior. Diferentemente dos céticos, Husserl não está interessado em questionar se a realidade externa existe ou não, mas em entender como ela é ao nível da consciência, uma vez que a consciência é a condição sine qua non da própria existência. Sem a consciência nós nem sequer saberíamos que existíamos. Assim, enquanto os céticos buscavam a suspensão do juízo para escapar das inquietações associadas à busca pela verdade, Husserl usava a epoché como uma ferramenta para alcançar uma compreensão mais profunda da estrutura da experiência subjetiva.

Querer


O querer na vita ativa tem de ser preservado, mesmo sabendo quão problemática é a noção de vontade e ação espontânea. Na obra de Hannah Arendt, a noção de querer na vita ativa é fundamental e deve ser preservada, mesmo que a ideia de vontade livre e de ação espontânea apresente desafios. A vita ativa é um dos conceitos centrais na filosofia de Arendt, e engloba três atividades humanas principais: labor, trabalho e ação. Entre essas, a ação é a mais elevada porque é onde a verdadeira liberdade e o poder de iniciar algo novo se manifestam.

A vontade, o querer, tem um papel crucial, pois é a faculdade que o ser humano tem para agir. Para Arendt, a ação é essencialmente espontânea e se distingue por sua imprevisibilidade e capacidade de criar algo inédito. No entanto, a noção de "vontade livre" é, de facto, problemática. Ela reconhece as dificuldades filosóficas em torno da ideia de liberdade e de vontade, especialmente diante das forças sociais, históricas e internas que influenciam as decisões humanas. Esse dilema remonta a pensadores como Santo Agostinho, que identificava a vontade como um aspeto da alma humana em conflito. Nietzsche questionou o próprio conceito de livre-arbítrio.

Ainda assim, para Arendt, é vital preservar a vontade e a capacidade de ação espontânea, pois é por meio delas que se mantém a dignidade e a responsabilidade da vida pública e política. A espontaneidade da ação é a essência da liberdade humana e, sem ela, os indivíduos se tornam sujeitos à repetição automática de normas e estruturas, incapazes de mudança ou inovação. A vontade e a ação permitem que as pessoas rompam com o ciclo de necessidades e circunstâncias preestabelecidas, conferindo-lhes o poder de começar algo novo, uma das características mais importantes da condição humana.

Arendt reconhece que a liberdade é difícil de definir e alcançar de forma plena, especialmente em sociedades complexas onde normas, costumes e sistemas de poder limitam a ação individual. No entanto, para ela, essa dificuldade não anula a importância de aspirar à liberdade e ao querer que a acompanha. A preservação da vontade na vita ativa é, portanto, uma resistência à passividade e à conformidade, um esforço para manter viva a capacidade humana de julgamento, iniciativa e renovação. Assim, mesmo que a vontade livre e a ação espontânea sejam conceptualmente desafiadoras e sujeitas a múltiplas interpretações, elas são elementos fundamentais na visão de Arendt para que a ação política e a liberdade não se percam. Sem a preservação do "querer" e da ação, a vita ativa se reduziria ao trabalho e ao labor, perdendo sua dimensão mais humana e política, que é a de participar na criação do mundo comum e na construção de novas realidades.

O juízo para o discernimento entre o bem e o mal


Hannah Arendt coloca o "juízo" como uma capacidade essencial do pensamento humano, especialmente em contextos que envolvem discernimento moral e político. Em sua análise, Arendt entende o juízo como a faculdade de avaliar e discernir entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, mas não apenas de forma abstrata e universal, mas também em situações concretas. Arendt é especialmente influenciada por Kant, mas em vez de adotar a noção kantiana do juízo estético, ela transpõe essa ideia para a esfera política e ética. Para ela, o juízo é um ato de cognição que não se baseia em regras ou normas previamente estabelecidas, mas na capacidade de refletir e considerar o ponto de vista dos outros. Esse tipo de juízo se manifesta, por exemplo, no que ela chamou de "pensamento representativo", que envolve a tentativa de pensar a partir da perspectiva de outras pessoas, de modo a formar uma opinião mais abrangente e sensata sobre uma questão.

Em obras como Eichmann em Jerusalém, Arendt examina como o fracasso do juízo moral pode levar a um comportamento que, na superfície, parece obedecer às regras e ao dever, mas na verdade reflete uma ausência de pensamento crítico sobre as consequências e a ética das ações. Ela conclui que figuras como Adolf Eichmann não eram necessariamente motivadas por uma ideologia maligna consciente, mas pela incapacidade de fazer um juízo verdadeiro sobre o bem e o mal — uma espécie de "banalidade do mal". Portanto, para Arendt, o juízo é um exercício de discernimento que vai além da aplicação mecânica de normas e envolve uma reflexão ativa e profunda sobre o que é certo em situações específicas. Ela vê esse tipo de juízo como um antídoto contra a conformidade e a obediência cega, fundamentais para a manutenção de valores morais e para a responsabilidade individual em um mundo plural.

Arendt encontra na faculdade de julgar de Kant a melhor representação da nossa faculdade quando se trata de calçar os sapatos do Outro. Em sua interpretação, Arendt se apropria da ideia kantiana de "juízo reflexivo", que, ao contrário do "juízo determinante" (no qual as regras preexistentes são aplicadas a casos particulares), exige que cada situação seja julgada em sua singularidade, sem normas universais previamente dadas. Para Kant, o juízo reflexivo é a capacidade de julgar o particular sem recorrer a uma regra geral, especialmente no campo estético, onde cada obra de arte é única e precisa ser apreciada em seu próprio contexto. Arendt toma esse conceito e o leva para a esfera ética e política. Ela vê o juízo reflexivo como uma habilidade que permite aos indivíduos avaliar as situações concretas e formar opiniões considerando a pluralidade humana. A partir disso, ela enfatiza o "pensamento representativo", uma expressão que significa imaginar-se no lugar do outro, entendendo a realidade por meio das perspectivas alheias.

Essa capacidade de julgar "calçando os sapatos do outro" é central para Arendt porque exige que o indivíduo ultrapasse os seus interesses e preconceitos pessoais para avaliar o mundo de maneira mais ampla e inclusiva. Em contextos políticos e éticos, como os julgamentos morais durante e após o Holocausto, Arendt percebeu que muitos dos responsáveis por crimes contra a humanidade agiram sem verdadeira reflexão sobre o impacto de suas ações. A ausência dessa faculdade de juízo, para Arendt, é o que permite o "mal banal" — atos que não são cometidos por ódio ativo, mas por uma falha em pensar e julgar com base na experiência e no sofrimento alheios.

Assim, a faculdade de julgar, inspirada na ideia kantiana, não se trata apenas de aplicar leis ou códigos morais, mas de uma prática contínua de reflexão que considera a pluralidade das experiências humanas. Esse juízo, segundo Arendt, é a base para uma responsabilidade moral verdadeira em um mundo onde as normas podem ser insuficientes ou até destrutivas, sendo necessário que cada indivíduo desenvolva a capacidade de "calçar os sapatos do outro" para promover uma convivência humana justa e ética.

Edmund Burke e a Revolução Francesa

 

Por mais respeitável que um ativista de esquerda tributário dos ideais da Revolução de 1789 seja, Edmund Burke nunca se impressionaria. Ele sempre afirmou que a monarquia britânica pedia meças à República Francesa. Burke foi um dos primeiros críticos da Revolução, argumentando que mudanças radicais e abruptas levam sempre a uma desordem social. O que ele dava importância era à Tradição, e à prudência que providenciava por uma evolução gradual do processo político. Ele via a Revolução Francesa como um afastamento perigoso dos valores que sustentavam a ordem social e política, acreditando que a busca por uma igualdade absoluta só resultaria em tirania e caos. Em contraste, a monarquia britânica, segundo Burke, exemplificava uma estabilidade construída sobre a continuidade das instituições e das tradições, evitando os excessos que ele associava à Revolução.

Essa perspectiva é relevante quando se considera o legado das duas nações. A monarquia britânica manteve uma certa estabilidade e evolução política ao longo dos séculos, enquanto a França passou por várias mudanças radicais e tumultuosas após a revolução. Burke argumentaria que essa estabilidade é uma prova de que a evolução lenta e cuidadosa, em vez de uma revolução abrupta, é mais sustentável para o desenvolvimento social e político. A preferência pelas ideias de Burke, que valorizam a continuidade e a prudência, em oposição aos ideais revolucionários mais radicais, revela uma preferência por um caminho mais equilibrado e menos disruptivo na busca por justiça e progresso social. Essa é a preferência das pessoas que se classificam como moderadas. Daí que seja duvidosa a afirmação de que Rousseau e toda a comandita do Terror da Revolução Francesa, afinal os inventores dos Direitos Humanos, sejam pura e simplesmente exemplos a seguir.

Associar Rousseau e outros pensadores que influenciaram a Revolução Francesa, como os jacobinos, aos melhores exemplos da moderação progressista, pode ser uma simplificação. Embora eles tenham sido fundamentais para o desenvolvimento de conceitos como liberdade, igualdade e direitos humanos, há uma complexidade em suas ideias que não se encaixa perfeitamente nas categorias políticas que utilizamos hoje. Jean-Jacques Rousseau, por exemplo, embora tenha influenciado profundamente os ideais revolucionários, também defendia uma forma de retorno a uma ordem mais natural e comunal, o que não necessariamente se alinha com as ideias progressistas e revolucionárias da esquerda contemporânea. Seus pensamentos sobre a "vontade geral" e a necessidade de um governo forte para garantir a liberdade coletiva têm um caráter que pode ser interpretado como autoritário, mas também emancipatório, dependendo do contexto. A Revolução Francesa, especialmente durante o período do Terror, liderado por figuras como Robespierre, assumiu um caráter violento e radical que, para muitos, traiu os princípios de liberdade e direitos humanos que originalmente motivaram a revolução. As medidas autoritárias e a repressão daqueles que eram vistos como inimigos da revolução contradizem diretamente os ideais de direitos humanos universais que também surgiram desse movimento.

É interessante notar que, embora os ideais da Revolução Francesa sejam frequentemente associados à esquerda política, os próprios líderes do movimento não se viam necessariamente como "esquerdistas" no sentido moderno do termo. Eles estavam mais preocupados com o derrube do Ancien Régime e com a construção de uma nova ordem social que, em sua visão, corrigisse as injustiças e desigualdades daquela época. Assim, a associação simples e direta de Rousseau e dos líderes do Terror com a esquerda política é, de facto, problemática. Eles eram mais uma síntese de ideias que buscavam uma nova ordem social, e essa busca envolvia ao mesmo tempo elementos igualitários e métodos autoritários que não se encaixam facilmente na dicotomia categórica: esquerda_direita.

Os impulsos egoístas e a indiferença em relação às condições dos outros destacam-se na história, o que pode levar à conclusão de que, em essência, a humanidade carece de uma bondade inerente. A expressão "a exceção confirma a regra" é frequentemente usada para destacar que a bondade ou o altruísmo são raras. Esta é a visão do pessimista antropológico, onde a natureza humana é vista predominantemente como negativa, em que os atos de bondade são apenas desvios pontuais de um comportamento que não tem nada a ver com a bondade. Apesar de gestos individuais de generosidade, a estrutura subjacente da sociedade e da história está marcada por exploração, violência e uma busca incessante pelo poder. Diz-se de forma desassombrada que, a igualdade jacobina apregoada com tanto alarido, é gente a mangar com gente. 

Os céticos são assim, para com movimentos que proclamam ideais de igualdade. Cultivam uma desconfiança profunda em relação às motivações que os impulsionam. De facto, muitos críticos argumentam que, por trás do discurso sobre igualdade e justiça social, muitas vezes se escondem interesses próprios e uma tentativa de obter vantagens à custa do esforço dos outros. Edmund Burke era o que fazia, de certo modo para com o movimento revolucionário francês, vendo nele não uma busca genuína por justiça, mas uma destruição da ordem social em nome de um poder centralizado e tirânico. Para Burke, os revolucionários, ao prometerem liberdade e igualdade, acabavam por concentrar o poder nas mãos de uma nova elite, usando a retórica igualitária como uma fachada para camuflar as suas próprias ambições e tendência para explorar a sociedade de uma maneira diferente.

É legítimo pensar que ninguém dá nada a ninguém, especialmente se considerarmos o contexto histórico e as motivações políticas que influenciaram os autores da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. Muitos dos redactores e líderes da Revolução Francesa eram profundamente ressentidos com a nobreza e o sistema de privilégios do Antigo Regime, que mantinha uma rígida hierarquia social e uma distribuição desigual de poder e recursos. O ódio à nobreza e ao clero, que eram vistos como os pilares de uma sociedade injusta e opressiva, foi um motor poderoso para a mobilização revolucionária. É possível que, mais do que um compromisso autêntico com a igualdade para todos, o que movia muitos desses revolucionários fosse um desejo de derrubar essa elite e redistribuir o poder. A retórica igualitária pode ter sido, em parte, um instrumento para justificar essa mudança radical, canalizando o ressentimento e a frustração das classes menos privilegiadas contra aqueles que simbolizavam o antigo regime.

Burke via nos revolucionários um desejo de destruição e vingança contra as classes dominantes, mais do que um amor genuíno pela liberdade e igualdade. De certa forma, isso sugere que o impulso igualitário estava, ao menos parcialmente, envenenado pelo ressentimento e pela sede de poder, mais do que fundamentado em uma convicção sincera nos valores que pregavam. Dessa perspectiva, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão poderia ser vista não apenas como um marco do progresso humano, mas também como uma arma ideológica contra uma ordem que precisava ser destruída, movida mais pelo ódio ao privilégio do que por um amor autêntico pela igualdade universal.

Durante a Revolução Francesa a escassez de alimentos e a especulação sobre os preços dos bens de consumo eram problemas graves, especialmente nas cidades como Paris, onde a população enfrentava a fome enquanto os comerciantes e proprietários se beneficiavam da crise. Muitos desses comerciantes e proprietários viam na instabilidade política e económica uma oportunidade para acumular riqueza, armazenando produtos essenciais e vendendo-os a preços exorbitantes. Esse comportamento exacerbava a miséria do povo, que já sofria com a inflação e a desvalorização da moeda. O açambarcamento era uma das principais causas de revolta entre as classes mais baixas, que viam nisso uma traição ao espírito de igualdade e fraternidade proclamado pela Revolução. Essa realidade contribuiu para o radicalismo da revolução e a ascensão de líderes como Robespierre, que defendiam medidas drásticas contra os "inimigos do povo" internos e externos. A Lei do Máximo Geral, por exemplo, foi uma tentativa de controlar os preços dos alimentos e outros bens essenciais para evitar essa especulação, mas a sua implementação foi difícil e muitas vezes ineficaz.

 Esses eventos revelam uma contradição entre os ideais revolucionários de igualdade e a prática económica daqueles que ainda se agarravam a seus interesses pessoais. Enquanto a Revolução pregava liberdade e justiça para todos, muitos que tinham meios económicos exploravam a situação para seu próprio ganho, o que alimentava a desconfiança e o ódio populares. Isso mostra como, muitas vezes, os interesses materiais podem prevalecer sobre os princípios ideológicos, mesmo em tempos de mudanças radicais.

Tanta insatisfação também cansa

 

Parece que estamos num novo ciclo de efervescência social, em que manifestações se tornam quase um reflexo automático diante de qualquer questão política, económica ou social. Isso pode ser visto como um sintoma de insatisfação difusa, mas também como um sinal de que as sociedades estão fragmentadas e polarizadas, sem canais institucionais eficazes para a resolução de conflitos.

Já houve momentos assim na História – o Maio de 68 na França, as grandes manifestações nos EUA contra a Guerra do Vietname, ou até mais recentemente, os protestos de 2011 (Primavera Árabe, Indignados na Espanha, Occupy Wall Street). O problema é que muitos desses movimentos, apesar da mobilização intensa, não conseguiram produzir mudanças estruturais duradouras, porque lhes faltava um projeto claro ou porque foram cooptados pelo sistema.

Muitas vezes, agitar águas pantanosas apenas espalha o lodo sem purificá-las. A sensação de constante agitação pode criar a ilusão de mudança, quando, na verdade, só amplia o caos e a desorientação coletiva. O problema é que essas manifestações, muitas vezes sem liderança clara ou objetivos realistas, acabam em terreno fértil para oportunistas, ou populistas, sejam políticos ou grupos que se aproveitam da confusão para ganhar influência. Além disso, o desgaste provocado por protestos contínuos pode levar à banalização do próprio ato de manifestação, tornando-o inócuo, esvaziado de qualquer impacto significativo. E no fundo, há um efeito colateral preocupante: em vez de canalizar as energias para soluções construtivas, o excesso de manifestações pode contribuir para um cansaço generalizado e uma descrença na possibilidade de qualquer transformação real. 

Pode haver muitas razões legítimas para protestar, mas, quando a estrutura social já está corroída, gritar não muda nada — apenas dá mais ruído ao colapso. Lembra o fim de outras civilizações que chegaram a um ponto em que a contestação se tornou permanente, mas sem força para evitar o desmoronamento. No fim do Império Romano do Ocidente, por exemplo, havia revoltas, protestos e disputas internas constantes, mas nada disso reverteu a decadência. O mesmo aconteceu na União Soviética nos anos 80: o povo podia estar insatisfeito, mas já não havia energia coletiva para salvar o sistema.

Ao cidadão comum, eu diria de bom senso, o melhor é abrigar-se e deixar os foguetes passar por cima até os ânimos acalmarem. Quando a irracionalidade toma conta das ruas e das instituições, muitas vezes o melhor é ter a prudência do velho camponês: cuidar da própria casa, manter-se discreto e esperar que a poeira assente. Os grandes ciclos históricos mostram que momentos de agitação raramente trazem benefícios imediatos para o cidadão comum. São tempos perigosos, onde quem grita mais alto nem sempre tem razão, e onde a violência e a destruição muitas vezes substituem qualquer possibilidade de reforma real.

A História mostra que nova ordem virá, e aqueles que conseguirem adaptar-se têm mais probabilidade de encontrar um lugar nela. O darwinismo filosófico faz todo o sentido: a sobrevivência, mais do que a resistência cega, depende da capacidade de ler os sinais da mudança e ajustar-se ao inevitável. E há algo libertador no reconhecimento da nossa própria insignificância no meio das colossais forças da História. Se o nosso impacto é do tamanho de um nanómetro, talvez o melhor seja agir como tal: discreto, eficiente e resiliente. A poeira das grandes transições pode ser sufocante para quem se expõe demais, mas para quem sabe esperar, ela eventualmente assenta.

A História ensina que nenhuma nova ordem mundial nasce do nada ou apenas da vontade popular — ela é sempre o resultado de confrontos a que a correção chama negociações entre as grandes potências. O equilíbrio de forças é o que define o rumo do mundo, seja pela diplomacia, seja pela guerra. O curioso é que, apesar das mudanças tecnológicas e sociais, o mecanismo continua o mesmo desde a Paz de Vestfália. Depois veio o Congresso de Viena; Versalhes; Yalta; Potsdam. Agora, com o declínio da hegemonia ocidental e a ascensão de novos polos de poder, especialmente a China e os BRICS, a tendência é que essa nova ordem seja moldada mais por interesses multipolares do que por uma única potência dominante.

É claro que não será pacífica, a avaliar pelos protagonistas ainda existentes. Mandela aparece um de cem em cem anos. Os protagonistas atuais não têm nem a grandeza de um Mandela nem a visão de um Metternich ou um Roosevelt. O que vemos são líderes movidos por interesses imediatistas, nacionalismos exacerbados e uma obsessão pelo curto prazo. Isso torna quase impossível uma transição pacífica. Quando olhamos para o grande esquema das coisas, tudo isso é apenas uma dança efémera antes da entropia final. No longo prazo, nem impérios, nem ideologias, nem civilizações escapam ao destino comum da matéria e da vida. E nós, enquanto estamos por aqui, só podemos observar, adaptar-nos e, quem sabe, deixar um ou outro vestígio insignificante antes do silêncio absoluto.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

A ligação entre a França e a Síria desde as Cruzadas



É interessante lermos Ibn al-Qalanisi para percebermos que os franceses (os Franj como eram conhecidos no Levante) têm ligação à Síria desde os tempos das Cruzadas. Ibn al-Qalanisi (1071–1160) foi um historiador e escritor de Damasco. Morreu em Damasco e foi sepultado ao pé do Monte Qasioun. A leitura de autores como Ibn al-Qalanisi é essencial para compreendermos as dinâmicas históricas e culturais entre o Ocidente e o Médio Oriente. Em "História de Damasco" (Dhail Ta’rikh Dimashq), ele oferece uma visão valiosa sobre a interação entre os sírios e os Cruzados, conhecidos como Franj (ou Francos) no mundo islâmico. O relato de Ibn al-Qalanisi revela a complexidade dessas relações, que iam além do simples antagonismo, incluindo alianças estratégicas, trocas culturais e momentos de convivência.

Os francos, como parte das várias forças que formavam os Cruzados, estabeleceram estados latinos na região durante o período das Cruzadas (1096–1291), como o Condado de Edessa, o Principado de Antioquia e o Reino de Jerusalém. Essas ligações permaneceram na memória histórica, e posteriormente, durante o período do Mandato Francês na Síria e no Líbano (1920–1946), as relações franco-sírias reemergiram sob uma nova configuração de poder colonial. O estudo de Ibn al-Qalanisi também nos permite entender como os povos da região percebiam os Cruzados, não apenas como invasores religiosos, mas também como atores políticos que interagiam com as dinâmicas locais, negociando com emirados islâmicos e se inserindo nos conflitos internos da região. Essa continuidade histórica, que vai das Cruzadas ao período colonial, reforça a longa e complexa relação entre a França e a Síria, marcada por momentos de confronto, dominação e intercâmbio.

Nureddin (Nur ad-Din Mahmud Zangi) foi uma figura central durante o período das Cruzadas e desempenhou um papel crucial na resistência islâmica contra os Franj. Como governante de Alepo e, posteriormente, de Damasco, foi fundamental na unificação das forças islâmicas na Síria e na preparação do terreno para o sucesso de Saladino (Salah ad-Din al-Ayyubi), seu sucessor político e militar. Nureddin destacou-se na consolidação do controlo sobre as principais cidades sírias, como Alepo e Damasco, reduzindo as divisões internas entre os muçulmanos que frequentemente enfraqueciam a resistência contra os Cruzados. Nureddin não era apenas um líder militar, era também um reformador religioso. Ele promoveu o conceito de jihad como um esforço coletivo para expulsar os Cruzados e proteger o Islão. Além disso, foi um governante justo, promovendo reformas administrativas que garantiram estabilidade nos territórios que governava.

Nureddin obteve várias vitórias importantes contra os Cruzados, enfraquecendo significativamente os estados latinos na região. A sua vitória em Edessa (1144) foi um marco importante, pois resultou na reconquista do primeiro estado franco. Nureddin nomeou Saladino como seu representante no Egito, o que permitiu a união das forças sírias e egípcias contra os franceses. Embora Saladino se tornasse independente após a morte de Nureddin, é inegável que a base de poder foi construída sobre os alicerces criados por Nureddin. Ele construiu hospitais, escolas e mesquitas, incluindo a Madrasa Nuriyya em Damasco, que simbolizava o compromisso com o fortalecimento do Islão. Nureddin foi, sem dúvida, um dos grandes líderes da resistência islâmica contra os cristãos, combinando habilidades militares, políticas e religiosas. Sua visão de unificar o mundo islâmico frente à ameaça estrangeira moldou a história da época e pavimentou o caminho para as conquistas de Saladino.

Luís VII (1120–1180), rei da França de 1137 a 1180, também desempenhou um papel importante na época das Cruzadas, especialmente como um dos líderes da Segunda Cruzada (1147–1149). Seu envolvimento marcou um dos momentos em que a França reforçou a ligação histórica com o Levante, mas a campanha foi amplamente considerada um fracasso estratégico e militar. A Segunda Cruzada foi convocada em resposta à queda do Condado de Edessa para as forças de Nureddin em 1144, o que chocou a cristandade ocidental. Sob a influência de Bernardo de Claraval, Luís VII decidiu participar na Cruzada, tanto por devoção religiosa como por desejo de consolidar o seu papel como defensor da cristandade.

Luís VII liderou um exército ao lado de Conrado III, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Contudo, a cruzada foi marcada por dificuldades logísticas, confrontos com os bizantinos, e pesadas derrotas, especialmente na travessia da Anatólia, onde as forças dos Cruzados foram dizimadas pelas tropas muçulmanas. Ao chegar a Jerusalém, Luís participou de uma campanha para atacar Damasco (1148), mas a expedição foi mal organizada e fracassou em tomar a cidade, que era então um aliado potencial contra Nureddin. Esse insucesso marcou o fim da Segunda Cruzada, enfraquecendo ainda mais a posição dos estados francos na região. O fracasso da cruzada minou o prestígio de Luís VII, como líder militar, embora ele tenha mantido a sua imagem de monarca piedoso.

No contexto da oposição a figuras como Nureddin, o reinado de Luís VII destaca a luta desigual entre um mundo islâmico em processo de unificação e os Cristãos ocidentais fragmentados e mal preparados para sustentar os domínios a Oriente. Embora Luís VII não tenha alcançado grandes feitos militares, a cruzada reforçou os laços históricos e simbólicos da França com a Síria e a Terra Santa. Os cruzados franceses, conhecidos como Franj, desempenharam um papel predominante nos estados latinos, e a influência cultural, económica e religiosa dos franceses nessa região perdurou. A relação com a esposa, Leonor de Aquitânia, também se deteriorou durante a Cruzada. O casamento foi anulado pouco depois, em 1152, indo Leonor casar com Henrique II da Inglaterra, desencadeando rivalidades que moldariam um conflito entre a França e a Inglaterra por várias gerações.

Conrado III (1093–1152), rei dos Alemães e primeiro monarca da dinastia Hohenstaufen, foi um dos líderes da Segunda Cruzada ao lado de Luís VII da França. A participação nessa cruzada, embora bem-intencionada, foi marcada por dificuldades militares e políticas que acabaram prejudicando tanto o esforço cruzado quanto a reputação das lideranças cristãs na época. A queda do Condado de Edessa  havia convocado Bernardo de Claraval, e Conrado era profundamente religioso. Daí tre decidido também juntar-se com forças germânicas para libertar a Terra Santa. Conrado III liderou um grande exército pela rota terrestre, atravessando o Império Bizantino. Contudo, as relações com os bizantinos eram tensas, com desconfianças mútuas. O imperador bizantino Manuel I Comneno chegou a guiar os cruzados alemães por rotas perigosas, com o argumento que era para os proteger do inimigo islâmico, mas o fito era para minimizar o impacto da barbárie no seu território. Na Anatólia, as forças de Conrado tiveram uma logística muito desastrosa, o que os fez cair  numa série de ataques dos turcos seljúcidas que foram devastadores. Na batalha perto de Dorylaeum (1147), o exército alemão foi praticamente todo dizimado. Conrado teve de voltar para trás e refugiar-se em Constantinopla.

Depois de perder grande parte de seu exército, Conrado uniu forças com Luís VII para entrarem em Jerusalém. Mas a campanha também primou na desorganização. Ambos os reis participaram do malfadado cerco de Damasco em 1148, que terminou num fracasso total. Conrado bem tentou, mas fracassou completamente no seu desejo de fortalecer o Sacro Império Romano-Germânico. Sua relação com Luís VII, inicialmente cordial, acabou em profundas divergências estratégicas. Fracassou militarmente, mas salvou a Cristandade numa Europa unida à volta do Papa. O que inspirou gerações posteriores. Ele também preparou o caminho para que o seu sobrinho - Frederico Barba Ruiva - lhe sucedesse. 

Muinuddin (Mu'in ad-Din Unur), emir de Damasco entre 1140 e 1149, foi uma figura política e militar crucial durante o período das Cruzadas, especialmente na interação entre as potências muçulmanas e os estados cruzados. Ele é lembrado principalmente por sua habilidade diplomática, que permitiu a Damasco sobreviver a várias ameaças, incluindo a pressão de Nureddin e os ataques dos cruzados liderados por Luís VII e Conrado III na Segunda Cruzada. Mu'in ad-Din adotou uma política pragmática em relação aos Cruzados. Durante o seu governo, Damasco estava sob ameaça tanto dos Cruzados como de Nureddin, que tentava consolidar o controlo muçulmano na Síria. Para evitar ser esmagado por ambos os lados, o emir manteve uma relação de cooperação ocasional com os Cruzados, pagando tributos e estabelecendo alianças temporárias para garantir a sobrevivência de seu emirado.

Muinuddin mobilizou as defesas da cidade de forma exemplar, utilizando o apoio das fortificações e do terreno. Ele também pediu ajuda a Nureddin, que enviou tropas para pressionar os Cruzados. O cerco, que durou apenas alguns dias, terminou em fracasso devido à desorganização dos Cruzados e à resistência bem-sucedida das forças de Damasco. Como se disse, esse evento marcou o colapso da Segunda Cruzada. Muinuddin foi um mestre da realpolitik. Ele soube equilibrar a relação com Nureddin e os Cruzados, garantindo que Damasco permanecesse independente durante a sua administração. Nureddin só conquistou a cidade em 1154, após a morte de Muinuddin.


O estado do esclarecimento da opinião pública


O estado de uma opinião pública esclarecida, com ciclos de ganhos e perdas, faz lembrar a fadiga dos metais. Vive-se atualmente o momento de fadiga, em que a opinião pública parece mais estúpida. Veja-se na América, o país vanguarda do mundo científico, em que há um número crescente de negacionistas das vacinas; os crentes da terra plana; criacionistas ... Assim como os metais, que passam por ciclos de tensão e relaxamento até atingirem um estado de fadiga, a opinião pública também parece passar por ciclos de esclarecimento e regressão.

Nos períodos de "fadiga” há uma espécie de esgotamento ou desgaste da racionalidade coletiva, onde crenças irracionais e teorias conspiratórias encontram terreno fértil para se espalhar. O caso dos Estados Unidos é ilustrativo: apesar de ser a vanguarda do avanço científico e tecnológico, também experimenta, paradoxalmente, um aumento de movimentos que rejeitam o conhecimento científico estabelecido. A democratização do acesso à informação trouxe consigo o paradoxo de maior acesso ao conhecimento e, ao mesmo tempo, à desinformação. As redes sociais e os algoritmos amplificam ideias radicais e polémicas. E a própria crise de confiança nas instituições e nos especialistas, acentuou-se nas últimas décadas devido a erros das elites entrando na polarização política. O resultado é uma opinião pública que, em certos momentos, parece mais fragmentada e menos disposta a adotar consensos baseados em evidências. Isso contribui para um ambiente onde ideias anticientíficas ganham força e minam a capacidade de uma sociedade manter-se informada de forma crítica e racional.

E é assim que metade dos americanos (mais um) ao elegerem Trump novamente, acolitado por Elon Musk, mandaram às urtigas a democracia para terem mais tirania e plutocracia. A eleição de Donald Trump em 2016, e agora em 2024, demonstra um desejo de uma parte significativa da população por mudanças que desafiem o establishment político tradicional. Essa tendência pode ser vista como uma resposta às percepções de descontentamento com a elite política, desigualdades económicas crescentes e a sensação de que as instituições não estão atendendo às necessidades do cidadão comum. O apoio de figuras como Elon Musk a ideias que minam a confiança na democracia também é revelador. Musk, com a sua influência e presença nas redes sociais, pode desempenhar um papel significativo ao amplificar narrativas que favorecem políticas autoritárias e uma abordagem de governação mais orientada para interesses privados e empresariais, que comportam elementos de uma plutocracia.

Por mais perturbador que seja, isso indica uma fadiga e um desencanto com a democracia tradicional, onde muitos veem a tirania e a plutocracia como alternativas, acreditando erradamente que isso trará soluções mais rápidas e eficientes para os problemas que enfrentam. Isso levanta questões fundamentais sobre como proteger e revitalizar a democracia em tempos de polarização e desinformação crescentes.

O retorno de Trump ao poder e o apoio de figuras como Musk levantam preocupações sobre a saúde da democracia americana e a concentração de poder económico em mãos de poucos. Especialistas em política cibernética destacam que Musk, com a propriedade de empresas cruciais como a SpaceX e a plataforma social X (ex-Twitter), possui uma influência desproporcional sobre a infraestrutura digital, o que pode ter implicações significativas nas democracias e na política global.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O viés social dos algoritmos das redes sociais


Alguns analistas dizem que os algoritmos das redes sociais têm um viés a favor do feedback negativo. E é por isso que o discurso ódio e discursos mais acalorados estão à frente de outros discursos mais positivos, suaves ou neutros. Significa promover o que mais provoca emoções fortes, incluindo raiva, indignação e medo. Esse viés a favor do feedback negativo ocorre porque essas emoções tendem a gerar mais cliques, partilhas e comentários, do que outros conteúdos. O bom senso, que geralmente envolve discussões mais racionais e equilibradas, não é apanágio das ditas plataformas.

Essa vinculação ao mundo virtual altera o sentido da realidade à pessoas mais descuidadas, levando-as a acreditar que o mundo real é mais hostil do que realmente é. Essa situação tem gerado uma corrente de opinião que responsabiliza os detentores dessas plataformas incentivando-os a fazer qualquer coisa nos algoritmos a modo de moderar e civilizar os avatares. Embora o resultado dos algoritmos seja muitas vezes negativo para a qualidade do discurso público e para a saúde mental dos frequentadores, isso não significa que os criadores e detentores dessas plataformas sejam intrinsecamente perversos. Na maioria dos casos, essas plataformas foram criadas com objetivos comerciais: aumentar o tempo de uso, atrair mais presenças, mais “likes” e, consequentemente, maximizar o lucro por meio de anúncios e dados. O problema é que as implicações éticas e sociais desses algoritmos nem sempre foram consideradas com a profundidade que deveriam ter sido. A busca por crescimento rápido e lucros levou a decisões perversas. Agora, muitos especialistas e críticos veem isso como um problema sistémico, no qual as consequências imprevistas da tecnologia têm sido mais prejudiciais do que o esperado.

O desafio real é à cultura das corporações e dos setores da tecnologia, que para buscarem o lucro da noite para o dia, desenvolvem o rápido e o fácil em detrimento da reflexão ponderada e amadurecida. No entanto, isso é um problema mais amplo que vai além da personalidade ou características dos indivíduos envolvidos. Reconhecer o problema não é suficiente; ações concretas são necessárias. Há muito farisaísmo. Como na narrativa bíblica, os fariseus eram conhecidos por pregar uma moralidade rígida e pública, mas muitas vezes não seguiam os próprios ensinamentos. Da mesma forma, em muitos setores da tecnologia, há uma desconexão entre o discurso de ética e as práticas reais. Muitas empresas de tecnologia falam em ética e responsabilidade, mas continuam priorizando estratégias que aumentam o engajamento, mesmo que isso tenha impactos negativos nas pessoas e na sociedade. Resolver isso exige mais do que declarações públicas ou códigos de ética; é preciso implementar políticas que equilibrem a inovação com a responsabilidade social e desenvolver algoritmos que considerem o bem-estar do utilizador, mesmo que isso possa reduzir lucros a curto prazo. Iniciativas que tragam regulamentos mais rigorosos, auditorias independentes dos algoritmos e maior transparência nas práticas empresariais são passos que podem ajudar a mudar essa cultura de "falar sem fazer". É um desafio grande, mas necessário para que as palavras se traduzam em ações.

Como em tudo, os adolescentes são os maiores. Há muito se sabe que o radicalismo é próprio da adolescência, idade alvo dos ideólogos, tanto de extrema-direita como de extrema-esquerda. A adolescência é uma fase da vida marcada por uma busca identitária intensa, pertença e propósito. Nessa idade, as emoções são frequentemente mais intensas e a capacidade de julgamento crítico ainda está em desenvolvimento. Isso pode tornar os adolescentes mais propensos a abraçar ideias e movimentos que oferecem respostas simples, corretas e retilíneas para questões circulares e complexas. Esse fenómeno pode ajudar a explicar porque é que os jovens são mais radicais, atraídos por ideologias que tanto podem ser de extrema-direita como de extrema-esquerda, dependendo do ciclo histórico que atravessam no momento. 

As plataformas na Internet não podiam estar mais a jeito para amplificarem esta particularidade do ser humano. Os algoritmos foram construídos de modo a amplificar polarizações, empurrando as pessoas  para bolhas de informação que reforcem as suas crenças. Essa combinação de fatores cria um ambiente propício para que adolescentes, em sua fase natural de questionamento e rebeldia, sejam mais vulneráveis à influência de ideologias radicais. Por isso, é importante que haja educação para o pensamento crítico e a promoção de ambientes que incentivem o debate saudável e o entendimento de múltiplas perspectivas. Isso pode ajudar a mitigar os riscos associados a uma adesão precoce e irrefletida a posições extremas.

É em momentos como os que se estão a atravessar neste fim de primeiro quartel do primeiro século do terceiro milénio depois de Cristo, que as mundividências se voltam a polarizar em maniqueísta.
Filosoficamente falando, o maniqueísmo simplifica o mundo em preto e branco, enquanto a realidade se desdobra em incontáveis nuances. A história, a política, a mora, tudo está nos tons de cinzento. Quem vê apenas extremos perde a riqueza do real. Tecnicamente falando, num espectro digital de 8 bits, há 256 tons de cinzento (do preto absoluto ao branco puro). Se considerarmos um espectro de 10 bits, como em algumas tecnologias avançadas de imagem, temos 1024 tons de cinzento. E se formos ao limite da visão humana e da física da luz, o número de variações pode ser praticamente infinito.

Essa tendência para o pensamento dicotómico é parte do desenvolvimento psicológico, à medida que os adolescentes vão construindo as suas identidades e tentando entender o mundo ao seu redor. Por isso, ideias radicais e simplificadas são atraentes, pois oferecem um sentido de clareza. Com a idade e a experiência, as pessoas tendem a desenvolver uma visão mais matizada do mundo. Os "cinzentos" da sabedoria adquirida com o tempo ensina que as questões humanas são complexas, multifacetadas em que as respostas simples são raras. O que é raro é raro, o que é frequente é frequente, já dizia Hannah Arendt, que era inteligente. Este tipo de entendimento permite um maior grau de empatia, tolerância e a capacidade de ver além das polarizações que muitas vezes dominam o discurso juvenil e os debates acalorados das redes sociais.

Hannah Arendt com a denúncia das aporias e reducionismos inerentes à racionalidade; e Merleau-Ponty com o visível e invisível da ontologia - pensaram bem sobre o assunto. Ambos ofereceram reflexões profundas que dialogam com a complexidade da natureza humana e as limitações do pensamento dicotómico. Arendt, em sua análise da racionalidade moderna e dos perigos do pensamento instrumental, abordou as aporias e os reducionismos que surgem quando a racionalidade se descola da realidade vivida e da pluralidade humana. Sua obra As Origens do Totalitarismo, por exemplo, é um exemplo claro de como ela desvenda as simplificações perigosas que permitem que ideologias radicais se instalem. Arendt enfatiza a importância do pensamento, não como uma simples aplicação de regras racionais, mas como um diálogo interno que permite a reflexão ética e a busca pela compreensão da complexidade humana.

Merleau-Ponty, por sua vez, em obras como O Visível e o Invisível, explorou a ontologia da percepção e as nuances entre o que é evidente e o que escapa à compreensão imediata. Ele nos lembra que a realidade é composta de camadas que não são capturadas apenas pelo racionalismo lógico, mas também pelo vivido, pelo experienciado e pelo que está implícito nas interações humanas. A ideia do “invisível” em sua filosofia aponta para tudo o que está além do nosso campo de percepção direto, o que se aplica bem à compreensão de que o mundo não é apenas preto e branco, mas contém uma vasta gama de significados entre os extremos.

Ambos os pensadores, cada um à sua maneira, desafiaram os modos simplistas de pensar e nos convidaram a considerar a riqueza da experiência humana, com suas contradições, incertezas e complexidades. Eles ofereceram ferramentas filosóficas para que possamos questionar os reducionismos e perceber as "zonas cinzentas". A sabedoria dos mais velhos, com a capacidade de compreender as nuances e reconhecer as limitações tanto das certezas absolutas como das ideologias extremas, é fundamental para enriquecer as discussões e proporcionar um contrapeso às tendências radicais que podem surgir em períodos de maior instabilidade social e pessoal.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

O que diria Maquiavel se voltasse


O termo "Ocidente" tem origem na Europa, especialmente na tradição greco-romana e depois cristã Mas foi-se expandindo para incluir sociedades que herdaram essa matriz cultural, como os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. O que une esses países sob o rótulo de "Ocidente" não é a posição geográfica, mas sim valores e estruturas institucionais, como democracia representativa, economia de mercado, ciência como fundamento do progresso e um certo individualismo que contrasta com sociedades mais comunitárias. Mas esse conceito de "Ocidental" também se transformou em alvo ideológico. Muitos dos que falam da "dívida histórica" tratam o Ocidente como uma entidade homogénea, responsável por todos os males do mundo, como se a história fosse apenas um jogo de opressores e oprimidos. E, ironicamente, essa culpa é sempre direcionada a países de tradição europeia, ignorando impérios não ocidentais que também dominaram, escravizaram e exploraram. E a Austrália e a Nova Zelândia, mesmo estando no Pacífico, acabam "pagando o preço" por terem essa matriz cultural europeia.

Há razoabilidade na crítica que se faz a certas correntes ideológicas contemporâneas, especialmente aquelas que se deixam levar por uma visão moralista e idealista da política, sem levar em conta as duras realidades do poder. Há uma tendência, em certos círculos progressistas, de acreditar que a política pode ser conduzida apenas pelo imperativo moral, ignorando as estruturas de poder, os interesses estratégicos e as limitações inerentes à natureza humana e às sociedades. Maquiavel já alertava para a diferença entre o que deveria ser e o que realmente é. Ele argumentava que um governante eficaz deve entender a natureza instável e muitas vezes cruel do mundo político, sabendo equilibrar a moral com a necessidade. O erro de alguns bem-pensantes é acreditar que basta estar do lado "certo" da História para que as coisas funcionem, como se o simples apelo à justiça social fosse suficiente para ter razão.

Essa mentalidade, de certa forma, reflete a formação de muitos intelectuais, que se intitulam de esquerda, que passaram por instituições de elite e, muitas vezes, veem o mundo como uma extensão do meio académico e burguês no qual cresceram. Como consequência, tendem a subestimar a importância do realismo político, da negociação dura e da própria ambiguidade moral que permeia o jogo do poder. Isso ilustra bem o abismo entre a visão idealista de certos setores do espectro político e realidade concreta do mundo. 
Maquiavel diria que a ordem vem antes da justiça, porque sem ordem não há justiça possível. Que a política não pode ser movida apenas por ideais abstratos. Se não houver um controlo racional, o próprio sistema pode colapsar, alimentando reações xenófobas e fortalecendo políticos populistas, que depois serão os mesmos que esses bem-pensantes tanto temem. 

O efeito boomerang está aí para quem quiser ver. Essa é a grande questão. Se aceitarmos o argumento da "dívida histórica" como justificação para políticas migratórias irrestritas, então nunca haverá um momento em que essa dívida estará quitada. Pelo contrário, quanto mais concessões são feitas, mais se reforça a ideia de que o Ocidente tem uma culpa infinita a expiar. Uma culpa que nunca poderá ser completamente redimida. O mais curioso é que essa lógica parece ignorar que a História não é um tribunal com sentenças eternas. As potências ocidentais cometeram abusos no passado? Sim. Mas também foram responsáveis por avanços científicos, tecnológicos e sociais que beneficiaram o mundo inteiro. Além disso, muitas das nações que hoje enviam emigrantes também tiveram histórias de conquistas, escravidão e dominação sobre outros povos. Para não ir mais longe temos o caso do Império Otomano, que foi quem dominou antes a Palestina. Então, porque é que só o Ocidente deve carregar esse fardo perpétuo?

Pensamentos como esse nunca chegam a resolver problema nenhum. Em vez de resolver, perpetuam o problema e o sentimento de culpa. E quanto mais essa narrativa se espalha, mais ela alimenta ressentimentos. Os ocidentais começam a se cansar de carregar um peso que não pediram. Se essa "dívida" nunca pode ser quitada, então talvez seja hora de questionar se ela faz sentido nos termos em que é apresentada. Afinal, sociedades saudáveis não vivem de autoflagelação, mas sim de projetos de futuro baseados na realidade e não em penitências simbólicas. Essa narrativa que demoniza exclusivamente os europeus ignora o facto de que todos os povos, em algum momento da História, conquistaram, escravizaram e cometeram atrocidades. O Império Otomano, os mongóis, os árabes, os chineses, os astecas, os zulus — todos tiveram períodos de expansão violenta e dominação sobre outros povos. Mas, curiosamente, a culpa histórica parece ser um fardo reservado apenas aos europeus e seus descendentes. Além disso, essa visão seletiva esquece ou minimiza as enormes contribuições europeias para a humanidade: a ciência moderna, os direitos humanos, a filosofia iluminista, a Revolução Industrial, a medicina, a democracia representativa. É como se o Ocidente fosse julgado apenas pelos seus erros e nunca pelos seus acertos.

Tudo isto tem muito a ver com o próprio sucesso do Ocidente. Como dominou o mundo por séculos, ele se tornou o alvo preferencial de críticas. E, paradoxalmente, foi o próprio pensamento crítico ocidental, vindo de sua tradição filosófica e humanista, que deu origem a essa autoconsciência hipercrítica que hoje o coloca na berlinda. Nenhuma outra civilização produziu uma crítica tão feroz contra si mesma. No fundo, essa autoflagelação não tem fim porque, para alguns, admitir que o Ocidente também teve méritos significaria abandonar uma narrativa conveniente, que dá à culpa um valor político e ideológico. Mas a História não é um tribunal moral. Ela é complexa, cheia de zonas cinzentas, e reduzir tudo a um esquema simplista de "vilões e vítimas" é um erro que impede um entendimento mais profundo do mundo.

O Ocidente está doente com uma doença que Ele próprio criou. Vítima de um excesso de consciência histórica, em vez de servir de ensinamento, tornou-se um fardo paralisante. Essa necessidade de expiação, levada ao extremo, faz lembrar as fraquezas que levaram grandes civilizações à decadência. O peso da culpa enfraquece a confiança em si, degradando a coesão social. Essa autoflagelação não é natural nem universal. Outras civilizações, mesmo tendo cometido atrocidades, não vivem com amarguras dessas. Os turcos não pedem desculpa dia sim dia não pelo Império Otomano. Os árabes não batem no peito pelo tráfico de escravos que dominaram por séculos. E a China não se angustia pelos massacres e repressões de seu passado imperial. Apenas o Ocidente parece viver nessa eterna penitência.

Essa doença, para além dos sintomas de cansaço, é suicidária. Porque uma sociedade que se vê como culpada por existir acaba abrindo mão da sua própria defesa, de seus valores e até de sua continuidade. Já bastando ser atacado pelos seus inimigos externos, ainda agrava as suas fraquezas com autoflagelações. Maquiavel diria que uma civilização que deixa de acreditar em si encaminha-se inexoravelmente para o precipício. A autoflagelação tem os seus fautores: os paladinos ativos de uma contracultura gerada nos ‘campus’ universitários e outros areópagos culturais que se derramaram nos relvados dos centros das melhores capitais. É a contracultura das ‘novas identidades’, novas categorias de pertencimento, muitas vezes elevadas a um estatuto quase sagrado. Ora, isso despertou o demónio que estava adormecido: o nacionalismo identitário. Se o nacionalismo, que em sua forma saudável representa um sentimento de continuidade histórica e pertencimento a uma cultura comum, também tem a sua forma doentia, que se demoniza pela opressão.

O curioso é que as novas identidades estão a começar a deixar de ser enaltecidas. Isso gerou um paradoxo: as mesmas sociedades que promoveram essa nova mentalidade são as que, ironicamente, estão agora mais vulneráveis às forças que querem manter as antigas identidades de pertença. Essa fragmentação não seria um problema em si, se não fosse acompanhada de ataques de parte a parte. Os identitários nacionalistas europeus rebelaram-se contra a destruição deliberada dos alicerces culturais que sustentaram as sociedades ocidentais por séculos. Porque acreditam que, no longo prazo, uma sociedade que não acredita em si mesma se torna incapaz de se defender, tanto cultural como geopoliticamente. Quando uma civilização passa a negar os seus próprios fundamentos e troca um sentido de identidade coletiva por uma fragmentação constante, ela se enfraquece e se torna presa fácil de forças mais determinadas e coesas. O destino do Ocidente dependerá de sua capacidade de reencontrar um equilíbrio entre abertura e preservação do essencial. Essa postura é um exemplo claro de um tipo de ativismo ideológico que, muitas vezes, parece não ser guiado por uma lógica de coerência ou autenticidade intelectual, mas sim por uma agenda política que, paradoxalmente, pode mostrar-se contraditória.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

Ter reações equilibradas perante certos factos da atualidade


Vários autores, profundamente comprometidos com a causa palestiniana, deram ordens para que os seus livros, depois do ataque terrorista a Israel em 7 de outubro de 2023, fossem traduzidos para o hebraico. Por outro lado, fizeram questão, numa espécie de atitude provocatória, de colocar os seus livros disponíveis para tradução na China. Esses autores estão, no fundo, rejeitando o diálogo direto com o público de Israel, o que pode ser interpretado como uma forma de censura ou uma atitude de "silenciamento" do outro lado. Isso é problemático porque, se realmente acreditam num debate construtivo sobre a questão palestina, deveriam estar dispostos a atingir um público mais amplo, incluindo aqueles que possuem um papel central no conflito. A China, para além de ser no mínimo uma ameaça permanente à Europa e à América, não é um modelo democrático ou humanista. Muitos desses ativistas, ao adotarem essa postura, estão a favorecer potências autoritárias em nome de uma luta ideológica simplificada. A simpatia por regimes autoritários, que impõem censura interna e controlo sobre a liberdade intelectual, demonstra uma desconexão com os valores da liberdade e dos direitos humanos, que foi uma criação Europa-América.

Abusos policiais devem ser condenados. Mas a ideia de que uma simples revista de rotina, realizada num contexto de alto risco, seja um trauma intolerável mostra uma desconexão com o mundo real. A polícia não está ali para agradar sensibilidades, mas para garantir a ordem, muitas vezes lidando com situações imprevisíveis e potencialmente perigosas. Esse tipo de discurso vem de pessoas que, em geral, nunca enfrentaram uma situação de perigo real e que enxergam o mundo por uma lente teórica, mais preocupadas com narrativas ideológicas do que com a eficácia prática das instituições. Como se a criminalidade pudesse ser combatida apenas com boas intenções e diálogo. Mas para alguns, parece que a polícia deveria comportar-se como assistentes sociais até mesmo nas situações mais delicadas, ignorando completamente as dinâmicas do crime e da violência. A sociedade atual, especialmente no Ocidente, tornou-se intolerante a qualquer deslize, por menor que seja, transformando gestos impulsivos em batalhas morais.

O beijo de Rubiales foi um ato inadequado? Sem dúvida. Mas a reação desproporcional, com a exigência de sua "execução pública" e a politização extrema do episódio, revela um traço preocupante dos tempos modernos: a ausência de proporcionalidade e de um sentido de perspectiva. Antigamente, situações como essa eram resolvidas com uma chamada de atenção, um pedido de desculpa, e seguia-se em frente. Hoje, porém, há uma necessidade quase ritual de expiação pública, como se cada erro exigisse uma purga simbólica. É o triunfo do moralismo sem nuances, que não distingue entre um gesto inconveniente e uma verdadeira agressão.


Certos grupos se apropriam desses episódios para reforçar suas agendas, mobilizando a opinião pública com base numa indignação fabricada. O resultado? Uma sociedade mais ansiosa, com medo do erro, e uma política cada vez mais guiada pelo tribunal da opinião pública do que por qualquer sentido de equilíbrio e racionalidade. A reação de ofensa a certas verdades inconvenientes, que até podem ser infelizes, devia-nos fazer pensar. Países do Sul da Europa, como Portugal, Espanha, Itália e Grécia, tinham (e em alguns casos ainda têm) problemas estruturais de gestão financeira, desperdício de recursos e falta de disciplina orçamental. O mais racional teria sido encarar essa crítica com maturidade quando pela terceira vez desde o 25 de abril de 1974 Portugal foi sujeito a intervenção de austeridade para não entrar em falência económica e financeira. 

Esse tipo de sensibilidade excessiva bloqueia debates importantes e impede que sociedades enfrentem os seus próprios problemas, não da forma como eles são, mas da forma como eles queriam que fosse. No fundo, é um reflexo do nosso tempo: prevalece a emoção sobre a razão, e qualquer desconforto transforma-se num pretexto para vitimização, em vez de ser um ponto de partida para a melhoria. Abrir as fronteiras de braços abertos baseando-se numa espécie de culpa histórica do Ocidente, ignora completamente a realidade da integração e os riscos de um efeito boomerang social e político. A imigração descontrolada, sem critérios ou planeamento, pode gerar bolsas de exclusão, tensões culturais e até radicalização.

O argumento da "dívida histórica" também é problemático. Se formos segui-lo até às últimas consequências, teríamos de reescrever toda a História e redistribuir populações pelo mundo com base em injustiças do passado. Mas o mundo não funciona assim. A responsabilidade de um país é, antes de tudo, com seus próprios cidadãos e com a preservação da ordem social. Isso não significa rejeitar a imigração, mas sim geri-la com critério e sem ilusões.

Essa hipocrisia é uma característica de muitos movimentos ideológicos ocidentais que se autoflagelam. Paradoxalmente, aligeiram impunemente aqueles que são mais repressivos em nome de uma causa política, que muitas vezes acabam sacrificando os próprios princípios. O que falta aqui é uma reflexão honesta sobre as contradições internas de tais posicionamentos, que acabam por ser mais prejudiciais à causa que dizem apoiar do que à posição que criticam. Essa obsessão com questões ideológicas, muitas vezes distantes da realidade concreta, acaba por desvirtuar o empenhamento que importa manter para o bem-estar social e político das pessoas. Fica-se tão preso à "luta simbólica" por causas, como pelo ativismo em torno de uma Palestina que não está isenta das culpas dos seus líderes. Em vez de atenderem às necessidades concretas das pessoas canalizam a energia em batalhas ideológicas que, em muitos casos, não trazem resultados concretos ou melhorias para a vida das pessoas.

Esse distanciamento da realidade é uma característica de boa parte da "esquerda" ideológica atual, que muitas vezes prefere concentrar-se em questões identitárias ou virtuais, em vez de se envolver com o que realmente afeta a maioria das pessoas no dia a dia. Isso, por sua vez, alimenta a sensação de que a política se tornou uma arena de teatro e disputas ideológicas, em vez de um espaço para resolução prática de problemas sociais reais. Além disso, a retórica política baseada em ideologias muitas vezes cria uma espécie de blindagem que impede uma avaliação crítica e objetiva das consequências das políticas que essas pessoas defendem. Quando as propostas ideológicas falham em trazer melhorias reais para a sociedade, esses mesmos indivíduos preferem culpar fatores externos (como a "opressão sistémica" ou uma suposta "conspiração") em vez de reconhecer a sua própria ineficácia. O problema é que isso mina a credibilidade e a eficácia dos movimentos progressistas como um todo, afastando-os daqueles que mais precisariam de soluções pragmáticas e eficazes.

Esta abordagem ideológica, em vez de ajudar, acaba alimentando uma desconexão cada vez maior entre a política e a vida concreta das pessoas, deixando de lado aquilo que realmente poderia mudar as condições de vida de uma forma significativa. Muitas vezes a luta ideológica acaba por ser usada para desviar a atenção de problemas muito mais urgentes, como a corrupção e a má gestão pública. Quando a corrupção não é adequadamente enfrentada e punida, e quando as pessoas condenadas por atos de corrupção são tratadas como exceções ou casos isolados, a sensação de impunidade cresce. Isso cria um círculo vicioso: as instituições enfraquecem, a confiança do público diminui, e o país vai-se desclassificando nos rankings internacionais, refletindo uma degradação no funcionamento da sua democracia e da sua economia. 

No entanto, muitos desses mesmos ativistas que se concentram em questões ideológicas ou causas externas, como a Palestina ou a luta contra o "neocolonialismo", frequentemente ignoram ou minimizam problemas internos como a corrupção, a falta de accountability e a ineficiência nas políticas públicas. A retórica ideológica torna-se numa forma de distração, que desvia o sentido de responsabilidade para enfrentar as questões mais prementes da política doméstica. O impacto disso não é pequeno. A falta de ação efetiva contra a corrupção, combinada com o desinteresse em resolver problemas reais, prejudica a estabilidade política e social de um país. 

Em vez de fortalecer a democracia e os valores progressistas, essa abordagem ideológica superficial acaba criando uma atmosfera de impunidade e incompetência, onde as reformas necessárias não se concretizam. Quando a gestão política não consegue resolver os problemas concretos da sociedade, a própria credibilidade do sistema entra em colapso, o que prejudica a confiança dos cidadãos e a reputação internacional do país. Esse tipo de contradição é realmente notável, e não deixa de ser um exemplo clássico da hipocrisia que muitas vezes permeia debates ideológicos. A crítica ao uso de botas de pele que têm uma durabilidade impressionante e um impacto ambiental muito menor do que os produtos descartáveis da indústria da moda, ilustra a incoerência de uma visão que se foca em questões superficiais, enquanto ignora a realidade das suas próprias escolhas de consumo.

A ironia é que muitas dessas pessoas, ao se opor a produtos como as botas de pele por motivos éticos, frequentemente compram produtos de grandes corporações, como a Nike, que têm uma história de exploração da mão de obra em países com condições de trabalho extremamente precárias. As suas escolhas de consumo contribuem para sistemas de produção que não só são prejudiciais aos trabalhadores, mas também têm impactos ambientais significativos devido à produção em massa e descarte rápido de produtos. No entanto, essas mesmas pessoas não estão dispostas a enfrentar a complexidade dessa realidade, preferindo se concentrar em símbolos mais visíveis, como o uso de determinados materiais.

É esse tipo de "purismo ideológico" que muitas vezes enfraquece qualquer tipo de movimento progressista. Em vez de encarar a complexidade do mundo e reconhecer que as escolhas de consumo e produção estão interligadas de maneira muito mais profunda e complicada do que se imagina, essas pessoas preferem condenar escolhas individuais que, na prática, têm um impacto muito menor do que as suas próprias decisões de consumo em escala global. A verdadeira mudança exige uma reflexão profunda e uma ação que vá além de atitudes superficiais ou gestos simbólicos. O que fica evidente é que, ao invés de realmente abordar os problemas sistémicos de uma forma prática, essas críticas muitas vezes se tornam uma forma de "purificação moral" que ignora as implicações mais amplas e complexas das escolhas que todos fazemos, incluindo os próprios críticos.