segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Da Certeza: em filosofia e ciência



René Descartes, Edmund Husserl, assim como Ludwig Wittgenstein - dedicaram-se intensa e profundamente à questão da certeza, cada um em seu contexto e abordagem filosófica particular. 
Descartes, com o seu “cogito, ergo sum” (penso, logo existo), tentou estabelecer uma base absolutamente certa para o conhecimento, partindo da dúvida metódica, ia ao encontro de algo que fosse inquestionável. Essa busca pela certeza absoluta levou à ideia de que a existência do sujeito pensante era a primeira verdade inabalável. Husserl buscou na Fenomenologia um fundamento sólido para o conhecimento. Assim, desenvolveu um método cujo nome o foi buscar aos gregos anrigos -  epoché. Significava a redução fenomenológica, ou seja, a suspensão do julgamento sobre a existência do mundo exterior. Devia corresponder apenas à experiência consciente pura e simples. E com isso ele almejava alcançar a ciência rigorosa baseada na análise daquilo que era evidente dado à consciência. 
Wittgenstein, em obras como “Sobre a Certeza”, tratou da natureza das proposições que consideramos certas sem questionamento no seio da linguagem prática. Como tal, a sua abordagem era mais linguística, questionando os fundamentos do que consideramos "conhecimento" dentro do uso da linguagem. 

Portanto, embora cada um tenha seguido caminhos e métodos diferentes, eles estavam enredados em terem a certeza do conhecimento. Para todos os efeitos era uma forma de lidarem com a verdade e com a realidade. Husserl, apesar de ter alguma afinidade com Wilhelm Dilthey, focados na experiência humana, afastou-se, contudo, da filosofia cosmovisional que Dilthey defendia. Dilthey buscava uma compreensão do mundo a partir de uma abordagem que integrava a historicidade e a vida concreta da humanidade (Geisteswissenschaften). Era a interconexão entre a experiência vivida e a interpretação histórica da realidade. Husserl, por sua vez, procurou uma fundamentação mais rigorosa e universal por meio da fenomenologia transcendental. Este termo significava o alcance das essências e verdades universais por meio da análise da consciência numa relação de intencionalidade, termo que ele foi buscar ao seu mestre Brentano

O conceito de intencionalidade foi recuperado por Franz Brentano da Escolástica, uma subcategoria dentro da filosofia medieval para definir o estatuto da consciência, qualificada por estar dirigida para algo, ou de ser acerca de algo, possuída pela maior parte dos nossos estados conscientes. Este termo queria dizer que a consciência é consciência sempre de alguma coisa. Enquanto Dilthey mantinha uma visão mais histórica e contextualizada do conhecimento, argumentando que a experiência humana é inseparável das circunstâncias históricas e culturais, Husserl via a fenomenologia como um estratagema para suspender esses contextos (epoché) e alcançar uma descrição "pura" das estruturas da consciência.

Essa divergência marca uma diferença fundamental: Husserl buscava a certeza por meio de uma análise que transcendesse as limitações históricas e culturais, enquanto Dilthey acreditava que o conhecimento humano e a compreensão do mundo eram inseparáveis do fluxo da vida e da história. Por isso, Husserl se afastou da abordagem cosmovisional e historicamente enraizada de Dilthey para criar uma base mais atemporal e universal do conhecimento. Husserl, para se livrar da mundividência de cada época, e tentar apenas um tipo de mundividência perene, inventou o método fenomenológico com o termo já conhecido de "epoché". Husserl desenvolveu o método fenomenológico e introduziu o conceito de epoché precisamente para lidar com as limitações impostas pelas visões de mundo particulares de cada época e contexto histórico. A epoché é um procedimento de suspensão do juízo, onde se coloca em parênteses todas as suposições e crenças pré-concebidas sobre o mundo exterior. Com isso, Husserl pretendia libertar a consciência de todas as influências externas e históricas que pudessem distorcer a análise filosófica.

O objetivo da epoché era permitir que o filósofo alcançasse uma perspectiva puramente descritiva da experiência consciente, investigando as essências dos fenómenos tal como se manifestam diretamente à consciência. Husserl acreditava que essa "redução fenomenológica" poderia oferecer um caminho para uma compreensão perene e universal da experiência humana, livre das contingências e variações de diferentes mundividências ou épocas históricas. Dessa forma, ao isolar a consciência das influências culturais e históricas, Husserl buscava alcançar uma base epistemológica sólida e atemporal, que pudesse servir de fundamento para todas as ciências e todo o conhecimento. A fenomenologia transcendental era, assim, uma tentativa de encontrar uma estrutura universal subjacente à experiência humana, uma resposta à busca por uma mundividência que transcendesse as particularidades e pudesse ser perene.

Assim, a consciência é a provedora do momento do mundo enquanto fenómeno, e não enquanto essência ontológica. Na fenomenologia de Husserl, a consciência não é determinadora da natureza ontológica do "ser" em si. A intencionalidade da consciência é sempre dirigida a algo – ou seja, a consciência é sempre "consciência de" um objeto ou fenómeno. Isso significa que a consciência tem a função de revelar ou apresentar os fenómenos tal como eles lhe aparecem, mas não determina a existência ontológica independente desses fenómenos. Husserl distingue, por assim dizer dois mundos: o mundo do fenómeno; e o mundo do "ser". Um investigador, enquanto fenomenólogo, investiga como os fenómenos se apresentam no campo da consciência. Ao passo que um investigador enquanto cientista ontológico vai ao encontro da essência do "ser", ultrapassando o campo da percepção subjetiva. Mas estes caem num engodo, porque os da mecânica quântica postularam que o observador altera o objeto da observação com a própria observação. 

Assim, o fenomenólogo acaba por não se comprometer com esse engodo, na medida em que o interesse está em como os objetos se manifestam na consciência humana. Husserl acreditava que era uma uma base sólida, uma vez que era nessa base os seres vivos perseveram e providenciam pela manutenção da vida. Por conseguinte, Husserl não se comprometia com as questões metafísicas sobre a existência e essência do mundo. Na fenomenologia, a consciência é o meio pelo qual o mundo fenomenal se revela. Mas Husserl não afirma que a consciência cria ou determina a realidade ontológica em si. A redução fenomenológica e o método da epoché são ferramentas para descrever a experiência pura sem fazer reivindicações sobre a realidade independente. Em resumo, a fenomenologia busca descrever "o que aparece" na consciência, não determinando "o que é" em termos ontológicos. 

António Damásio e Francisco Varela, cada qual à sua maneira, mergulharam nos problemas da consciência. António Damásio e Francisco Varela trouxeram contribuições significativas para o estudo da consciência, cada um com abordagens distintas, mas que dialogam de certa forma com questões fenomenológicas e científicas.

António Damásio, um neurocientista português, avançou na compreensão da consciência ao integrá-la com as bases biológicas e emocionais do cérebro. Em obras como O Erro de Descartes, Damásio desafia a dualidade cartesiana entre mente e corpo, propondo que a consciência não é uma entidade separada, mas algo que emerge da interação entre o cérebro e o corpo. Ele desenvolve a ideia de que emoções e sentimentos desempenham um papel crucial na construção da mente consciente. A "consciência de ordem superior", que ele descreve, inclui um processo contínuo de acompanhamento do corpo e do mundo exterior, destacando que o "eu" surge como resultado desse processo integrado.

Francisco Varela, por sua vez, foi um biólogo, filósofo e neurocientista que trouxe uma abordagem mais interdisciplinar ao estudo da mente e da consciência. Trabalhando com conceitos como autopoiese e cognição da mente corpórea, Varela enfatizou a ideia de que a mente é uma emergência do mundo físico, ou seja, a mente não é uma entidade isolada, mas algo que emerge da interação constante com o ambiente. Ele foi influenciado pela fenomenologia, especialmente por Husserl e Merleau-Ponty, e tentou unir a ciência cognitiva com a prática meditativa budista e a experiência subjetiva. No livro The Embodied Mind, que escreveu em coautoria com Evan Thompson e Eleanor Rosch, Varela propôs que a consciência fosse estudada tendo em consideração os dois lados da moeda cognitiva: objetividade e subjetividade, ambas mais viradas para a experiência e não tanto para a teoria.

Damásio e Varela, ao irem mais longe no aprofundamento da consciência contribuíram para uma melhor compreensão do que está em causa quando falamos de consciência. Tentaram quebrar com a persistente concepção do conceito dualista mente/corpo que remontava ao tempo de Descartes. Embora não seguindo propriamente os conceitos anteriores de monismo e holismo. Damásio trabalhou a relação mente/corpo a partir das emoções segundo a abordagem da da neurociência. Varela enveredou por uma perspectiva integradora da biologia com a fenomenologia no âmbito da experiência vivida. A consciência como um fenómeno enativo, ou seja, proveniente da ação corpórea. Esses esforços complexificaram ainda mais a questão da consciência, mas mostraram que é do domínio do fenómeno relacional que a consciência emerge de forma espontânea sem nenhuma vontade ou propósito. Nada de metafísico. Nada separado do mundo físico, aqui e agora.

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