quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025

Os sonhos


Os sonhos têm sido objeto de muitos estudos interdisciplinares, envolvendo áreas como a neurociência, a psicologia, e até mesmo os estudos das disciplinas das humanidades, os designados estudos culturais. As investigações mais recentes têm avançado bastante na compreensão de como e porque sonhamos, com teorias que tentam conciliar processos neurológicos e aspectos subjetivos da experiência pessoal.

O que sabemos atualmente sobre os sonhos baseia-se principalmente nas descobertas feitas a partir de estudos de neuroimagem e da observação do sono REM (Rapid Eye Movement). Durante o sono REM, a atividade cerebral aproxima-se da que ocorre quando estamos acordados, e é nesse estádio que os sonhos mais marcantes geralmente acontecem. Alguns investigadores sugerem que os sonhos são o resultado de uma "atividade neural aleatória", conhecida como teoria da ativação sintética. Nessa visão, os neurónios disparam aleatoriamente durante o sono, e o cérebro tenta dar sentido a esses impulsos, criando as tais narrativas que designamos por sonhos.

Teorias sobre o significado dos sonhos começaram com Sigmund Freud, no início do século XX. Freud propôs que os sonhos são uma forma de manifestação de desejos reprimidos ou inconscientes. Já Carl Jung sugeriu que os sonhos podem ser expressões simbólicas do inconsciente coletivo, conectando-nos a arquétipos universais. Essas teorias continuam a influenciar algumas abordagens psicológicas, mas os estudos mais produtivos realizados mais recentemente têm-se focado mais na compreensão biológica e neuropsicológica do fenómeno. Os sonhos podem desempenhar uma função adaptativa importante, ajudando na regulação emocional e no processamento de experiências do dia a dia. Os sonhos podem estar relacionados com o processamento de memórias ligadas às emoções, integrando as experiências vividas. Uma espécie de "ensaio mental" para nos prepararmos para as situações sociais envolvidas em maiores conflitos.

Uma ideia muito controversa é a dos "sonhos lúcidos". Os sonhos lúcidos são um fenómeno controverso, pois tocam em questões filosóficas, psicológicas e até neurocientíficas sobre a consciência e a natureza da realidade. Basicamente, um sonho lúcido ocorre quando o sonhador se torna consciente de que está sonhando e, em alguns casos, consegue exercer certo controlo sobre os eventos do sonho. Porque são controversos? Isso começa logo com a questão do consciente e o inconsciente. Tradicionalmente, o estado de sonho é visto como um domínio do inconsciente, onde a racionalidade está suspensa. A ideia de que a mente pode "acordar" dentro do próprio sonho desafia essa noção, levantando questões sobre até que ponto a consciência pode operar nesses estados.

Ora, o que provavelmente está em causa é a questão dos “estados alterados de consciência”. Alguns pesquisadores e místicos associam os sonhos lúcidos a experiências fora do corpo, projeção astral ou até mesmo viagens espirituais. Isso está fora do limiar da ciência, entrando mais no domínio do esoterismo. Há debates sobre os efeitos dos sonhos lúcidos. Alguns estudiosos sugerem que eles podem melhorar a criatividade e o autoconhecimento, enquanto outros alertam que um excesso de sonhos lúcidos pode prejudicar a qualidade do sono e até mesmo confundir a percepção entre realidade e sonho em pessoas mais sugestionáveis.

Estudos experimentais com eletroencefalografia e ressonância magnética em alegados sonhos lúcidos o que mostram é as áreas do córtex pré-frontal mais ativadas. Isso levanta a questão: se podemos "despertar" no sonho e decidir ações, isso significa que temos livre-arbítrio até mesmo dentro do sono? Ou será apenas uma ilusão de controlo? Se a mente pode criar experiências tão vívidas no sonho, como podemos ter a certeza de que não estamos sonhando agora?

A mente humana ainda é um terreno fértil para especulações, e sempre haverá aqueles que tentam explorar a complexidade desse tema para lucrar com pseudociência ou promessas vazias. O fenómeno dos sonhos lúcidos, como muitos outros dentro da neurociência e da psicologia, atrai tanto pesquisadores sérios como charlatões que vendem métodos milagrosos para "controlar a realidade" acedendo a outras dimensões para expandir a consciência sem qualquer base científica. A grande questão é que, apesar do avanço das ciências cognitivas, ainda sabemos surpreendentemente pouco sobre o funcionamento profundo da mente, especialmente sobre a consciência e seus estados alterados. Isso abre espaço para todo o tipo de interpretações, desde explicações rigorosamente científicas até teorias místicas ou conspiratórias.

Estamos a falar de uma área onde muitos incautos caem. O desejo de entender e dominar a própria mente é poderoso, e muita gente busca respostas fáceis para questões que a ciência ainda investiga com cautela. No caso dos sonhos lúcidos, há quem venda a ideia de que é possível viver uma "segunda vida" perfeita dentro dos sonhos, sem consequências, o que é, no mínimo, duvidoso. No fim de contas, estudar a mente exige um olhar crítico e rigoroso, uma coisa que é para poucos, ou algo que poucos estão dispostos a ter. A verdade é que, mesmo com todo o conhecimento que acumulamos, o cérebro continua a ser um dos maiores mistérios da ciência.

António Damásio, bem como outros investigadores, relacionam os sonhos ao processamento emocional e à construção do "eu" consciente. De acordo com essa perspectiva, os sonhos seriam uma forma de o cérebro organizar e integrar os estados emocionais vivenciados, ajudando a fortalecer a sensação do "eu" ao refletir sobre esses estados internos. Também Francisco Varela, o pensador da cognição incorporada, também assegurou que a experiência onírica está ligada a um processo mais geral de construção da experiência do "eu", que vai além da vigília e da experiência externa, incluindo as emoções através do corpo.

Considerando esses investigadores, podemos afirmar, acerca da natureza do fenómeno onírico, que os sonhos são um fenómeno multifacetado: uma mistura de processos biológicos, cognitivos e emocionais que tentam lidar com as experiências vividas. Daí resulta a construção de narrativas internas que o cérebro tenta processar com todas as imprecisões que isso acarreta. Seja como for, mesmo com as explicações neurológicas, não conseguimos explicar totalmente porque sonhamos ou qual é o significado exato de cada sonho. Os estudos mais recentes sugerem que os sonhos não são apenas uma atividade neural aleatória ou sem propósito, mas estão intimamente ligados ao processamento emocional, à organização de memórias e à construção do "eu". Por conseguinte, a natureza dos sonhos ainda é um campo aberto, onde as teorias de diferentes áreas se cruzam, incluindo a neurociência, a psicologia, e até mesmo a filosofia da mente.

Se há, de facto, uma base existencial do "eu", não se percebe de onde vem a inventividade surreal num pandemónio de estados de passividade híbrida. A questão da inventividade surreal nos sonhos e estados de passividade híbrida é um aspecto fascinante e paradoxal da experiência humana, especialmente quando se considera que, de acordo com muitos estudos, o "eu" e a consciência são sustentados por processos neurológicos ligados às emoções. No entanto, os sonhos e a criatividade, especialmente nas formas mais surreais ou fragmentadas, muitas vezes desafiam toda a racionalidade. Imagens e narrativas que parecem não ter lógica ou coesão com a realidade quotidiana.

Aqui estão algumas perspectivas que podem ajudar a compreender essa inventividade surreal e a aparente desconexão com o "eu". Uma explicação clássica, como a teoria da ativação sintética, sugere que os sonhos são o resultado de atividade neural aleatória durante o sono REM. O cérebro tenta dar sentido a esses impulsos nervosos, e como eles não são necessariamente organizados por uma narrativa ou lógica consciente, a mente cria imagens desconexas, surreais e muitas vezes inesperadas. Essa inventividade pode ser vista como uma espécie de "jogo" mental que o cérebro faz com a informação disponível, sem estar restrito pela lógica ou pela necessidade de coerência do mundo real. Muitos teóricos, como Freud e Jung, atribuíram a inventividade nos sonhos à expressão do inconsciente. O inconsciente, por sua natureza, é visto como livre das restrições da lógica racional e da moralidade consciente. A "criatividade" onírica pode ser uma forma do inconsciente explorar, sem limites, imagens, símbolos e desejos reprimidos, ou ainda não reconhecidos. Nesse sentido, a inventividade nos sonhos não vem do "eu" consciente, mas de uma dimensão mais profunda da psique, que se expressa de maneira livre e não linear.

Quando sonhamos, ou estamos num estado de passividade híbrida (como em estados alterados de consciência), as estruturas do "eu" podem ser momentaneamente desreguladas. No cérebro, regiões ligadas à autoconsciência, como o córtex pré-frontal, podem ser menos ativas durante o sono REM, enquanto outras áreas responsáveis pela emoção, imaginação e memória estão mais ativadas. Isso resulta na desconexão entre a percepção do "eu" e os processos criativos, permitindo que a mente se expanda sem os limites impostos pela lógica e pela coesão do mundo real. A passividade híbrida pode, assim, ser vista como um estado em que o "eu" consciente deixa de ser a força organizadora, dando espaço para o processamento livre e inventivo das experiências.

A teoria da cognição corpórea (o nosso corpo sabe de mais coisas que a própria consciência desconhece), como a que nos trouxeram Francisco Varela e outros, sugere que a mente não é apenas uma "máquina", o cérebro, que processa sozinho a informação - como se estivesse isolado numa cuba -mas uma rede complexa que está intimamente embebida e conectada com corpo, por sua vez conectado com o ambiente que o envolve. E esse ambiente é não apenas local, mas também global, cósmico, se assim o quisermos chamar. Nesse contexto, os sonhos podem ser uma forma de "ensaio" para situações ou possibilidades que envolvem mais do que apenas uma narrativa linear ou uma necessidade de "sentido". A inventividade surreal nos sonhos pode refletir a mente tentando criar um mapa mais flexível, menos restritivo da realidade, onde diferentes aspectos da experiência, incluindo o corpo, emoções e pensamentos, podem ser combinados de forma inesperada.

Assim, a inventividade surreal dos sonhos também pode ser compreendida sob a perspectiva de que a criação muitas vezes ocorre sem a intenção consciente do "eu". Em um estado de passividade, como no sonho, ou em certos estados alterados de consciência, a criatividade pode emergir sem a estrutura que impõe o controlo racional. Em outras palavras, a libertação da mente das amarras da consciência vigil pode resultar na criação de imagens e histórias que são criativas, mas sem um propósito ou intenção racional. Isso não significa que essas imagens sejam arbitrárias ou sem valor, mas sim que podem surgir como expressões espontâneas de uma mente que opera de um modo não linear e menos controlado.

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