terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

O que se está a passar com as candidatas aos Óscares da Academia de Hollywood?




Karla Sofía Gascón é uma atriz que nasceu em Espanha em 1972. Ela apareceu em várias novelas e filmes, incluindo El Señor de los Cielos (2013) e Nosotros los Nobles (2013). Ela havia-se mudado para o México em 2009, e considera-se “mexicana por adoção”, uma vez que vive e trabalha no México há muitos anos. É budista Nichiren. Gascón é casada com Marisa Gutierrez, que conheceu aos 19 anos numa discoteca em Alcobendas, Espanha. Juntas, elas têm uma filha, nascida em 2011. Em 2018, aos 46 anos, Gascón publicou sua autobiografia, Karsia, Una história extraordinária, onde se assumiu como uma mulher trans.

Portanto, para quem ainda está alinhado com o satatus quo do passado, Gascón nasceu rapaz e a dada altura apareceu como um mexicano transsexual, e por isso, agora é uma mulher, e candidata ao Óscar de melhor atriz feminina pela sua interpretação no filme ‘Emilia Pérez’, realizado pelo francês Jacques Audiard.

Em 2024, Gascón interpretou a personagem-título no filme musical Emilia Pérez, pelo qual venceu o Prémio do Festival de Cinema de Cannes de Melhor Atriz ao lado de suas colegas de elenco Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz. O seu desempenho recebeu reconhecimento mundial e tornou-se a primeira mulher abertamente transgénero indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Além disso foi nomeada para os Globo de Ouro, SAG Awards e BAFTA, além de vencer o European Film Awards de Melhor Atriz. Em outubro de 2024, Gascón tornou-se Cavaleira da Ordem das Artes e das Letras em França. No mesmo ano, vieram à tona publicações em seu perfil pessoal na plataforma X nas quais criticava o Óscar por trazer filmes com maior representatividade cultural, além de criticar a imigração de muçulmanos em Espanha, de chineses no México, e insinuar que George Floyd seria um "drogado com quem ninguém se importaria".

As nomeações para o Óscar de Melhor Atriz em 2025 incluem: para além de 
Karla Sofía Gascón por "Emilia Pérez"; Fernanda Torres por "Ainda Estou Aqui"; Demi Moore por "A Substância"; Cynthia Erivo por "Wicked"; e Mikey Madison por "Anora". Assim, Karla Sofía Gascón fez história ao tornar-se a primeira mulher transgénero nomeada para esta categoria. No entanto, a sua nomeação tem sido envolta em controvérsia devido a publicações antigas nas redes sociais consideradas ofensivas, incluindo comentários racistas e islamofóbicos. Estas publicações geraram críticas significativas e levaram a atriz a desativar a sua conta no XEm resposta às críticas, Gascón pediu desculpa publicamente, expressando profundo arrependimento pelo impacto das suas palavras e afirmando que sempre lutou por um mundo melhor. Apesar da controvérsia, ela decidiu manter a sua candidatura ao Óscar, afirmando que o seu trabalho como atriz está a ser avaliado, não os seus comentários passados. A Netflix, distribuidora de "Emilia Pérez", tomou medidas em relação à controvérsia, removendo o nome de Gascón do material promocional da campanha do filme para o Óscar.

Esta situação destaca os desafios que as campanhas para os Óscares podem enfrentar devido a ações ou declarações passadas dos envolvidos, afetando potencialmente as suas hipóteses de sucesso. Estaremos perante um novo tipo de Inquisição?

A comparação com a Inquisição faz sentido num certo nível metafórico, especialmente se pensarmos no fenómeno da "cultura do cancelamento" como um novo tipo de ortodoxia ideológica. Hoje, nestes meios ditos "culturais", o passado de figuras públicas é escavado nas profundezas do tempo até se encontrarem declarações inaceitáveis, segundo os padrões morais contemporâneos, mesmo que essas declarações tenham sido proferidas na puberdade ou enquanto adolescentes. Isso veio gerar um ambiente em que nenhum longevo, que hoje em dia abundam, estava à espera dado ninguém a partir de agora estará a salvo mesmo com mais de cem anos de idade. Os ditos "valores" hoje mudam muito rapidamente, pelo que o que hoje é aceitável pode ser problemático amanhã.

A grande questão é: qual o limite? Teremos um espaço para redenção genuína ou a condenação será perpétua? Uma jornalista (que se autointitula negra e muçulmana, como se isso interessasse para quem é jornalista) escreveu para a revista ‘Variety’ que ela não deveria ser candidata. Porquê? Não por ser transgénero, o que seria mais óbvio, dado sobrepor-se o talento genético masculino sobre a avaliação de usos e costumes femininos. Mas por ser racista. Sim, a controvérsia em torno de Karla Sofía Gascón ganhou outra camada quando a jornalista Nadira Goffe, da Variety, escreveu um artigo argumentando que a atriz não deveria ser candidata ao Óscar devido a postagens antigas nas redes sociais com comentários considerados racistas e islamofóbicos.

O caso ilustra bem a forma como a política identitária tem moldado o espaço público. Goffe, ao destacar que é negra e muçulmana, deixa claro que a sua posição não é apenas profissional, mas pessoal e identitária, como se a sua perspectiva tivesse um peso especial no julgamento moral da situação. Esse tipo de argumentação tornou-se comum nos debates contemporâneos: em vez de discutir objetivamente se o desempenho de Gascón como atriz merece o prémio, não senhora, o foco desloca-se para uma questão moral e identitária que transcende o filme. O problema dessa abordagem é que, ao longo da história, praticamente qualquer figura pública, se analisada sob os padrões atuais, pode ser considerada culpada de algo. Assim, a questão fundamental é: estamos a julgar artistas pelo seu trabalho ou pelo seu histórico pessoal e opiniões passadas? Se a resposta for a segunda opção, caminhamos para um ambiente em que a arte deixa de ser avaliada por seus méritos e passa a ser uma extensão da moralidade pública, o que nos remete, mais uma vez, a um tipo de Inquisição moderna.

Por Karla Sofia em 2020 ter referido – que há cada vez mais muçulmanos em Espanha e que, quando ia buscar a filha à escola, via cada vez mais mulheres com o cabelo coberto e vestidos até aos calcanhares, foi o suficiente para este alarido todo. O que Karla Sofía Gascón disse em 2020 pode até ser visto como uma simples constatação sociológica – o aumento da população muçulmana em Espanha é um facto demográfico – mas, no atual clima cultural, qualquer comentário sobre imigração ou mudanças sociais pode ser interpretado como um juízo de valor, especialmente se for percebido como uma crítica implícita. O que acontece aqui é um fenómeno que podemos chamar de puritanismo progressista: mesmo uma observação aparentemente neutra pode ser vista como ofensiva se for lida sob a ótica de um discurso maior, que considera qualquer menção à presença crescente do Islão na Europa como potencialmente islamofóbica.

O cancelamento de Gascón parece desproporcional, mas segue a lógica da "nova ortodoxia moral": qualquer figura pública que tenha um histórico de declarações que possam ser reinterpretadas como preconceituosas pode ser atacada e, em alguns casos, excluída do debate público. O mais irónico é que Gascón, sendo uma mulher trans, pertence a um grupo que, segundo essa mesma lógica identitária, deveria estar "protegido" de críticas. No entanto, como ela se desviou da cartilha ideológica em algum momento, tornou-se alvo de quem antes poderia tê-la defendido. O que isso revela é que as regras desse jogo são instáveis e cada vez mais restritivas. Hoje, o critério não é apenas o que se diz, mas quem diz e qual o seu histórico. Isso leva a um ambiente de patrulhamento constante, em que ninguém está completamente seguro de ser "puro" o suficiente para escapar da condenação pública.

Em 2021 ousou dizer que o Islão não respeita os Direitos Humanos e depois disso estendeu a crítica a todos os que não respeitam os Direitos Humanos, fossem do Islão ou outra religião qualquer. Até há pouco tempo, no Ocidente pelo menos, este discurso era politicamente decente. No entanto, no atual contexto de política identitária e sensibilidade cultural, qualquer crítica ao Islão pode ser interpretada como islamofobia, independentemente da intenção original. Historicamente, o debate sobre os conflitos entre certos aspectos do Islão e os Direitos Humanos não é novo. Intelectuais, tanto liberais e conservadores, já apontaram incompatibilidades em temas como liberdade de expressão, direitos das mulheres, dos LGBTQ+ e punições baseadas na Sharia. Mesmo dentro do mundo islâmico, há intensos debates sobre essas questões. O problema é que, nos últimos anos, qualquer crítica ao Islão passou a ser vista como um ataque direto a muçulmanos, o que automaticamente coloca o autor da crítica no radar da "cultura do cancelamento". O caso de Gascón mostra bem essa armadilha: mesmo ampliando a sua crítica para todas as religiões que violam os Direitos Humanos, a ofensa já estava dada. No tribunal moral da era digital, retratações raramente são suficientes para evitar a condenação pública. Mais uma vez, vê-se um padrão: o que importa não é necessariamente o conteúdo da linguagem, mas a percepção de que alguém cometeu uma heresia contra o dogma vigente.

Isso reforça a tese de que estamos vivendo uma nova forma de Inquisição, onde os inquisidores são determinados por uma nova ortodoxia progressista. Mas, ironicamente, essa ortodoxia acaba se contradizendo: aqui temos uma mulher trans a ser "queimada na fogueira" por criticar uma religião que, em muitos contextos, não aceita pessoas trans. No fim de contas, a lógica identitária colide consigo mesma, mas isso não impede que continue funcionando como um mecanismo de punição social.

Há quem veja nisto uma mão dos apoiantes da outra grande candidata, a brasileira Fernanda Torres, protagonista do filme “Ainda Estou Aqui”, de Walter Salles. O problema é que Fernanda também tem os seus pecados: há cerca de 20 anos interpretou o papel de uma empregada doméstica, pintando-se de preto; ou seja, fazendo o que ficou conhecido por ‘blackface’. Apesar de Karla e Fernanda terem ambas pedido desculpa pelo seu ‘vergonhoso’ passado racista e mais o que for, há quem considere que as suas candidaturas têm de ser retiradas. Este caso mostra como a lógica do cancelamento não tem limites claros e pode atingir qualquer um, independentemente das desculpas apresentadas ou da intenção original. Tanto Karla Sofía Gascón como Fernanda Torres estão sendo julgadas não por suas atuações, mas por aspectos de suas vidas passadas que, segundo os padrões morais de hoje, seriam inaceitáveis.

A possibilidade de que os apoiantes de uma candidata estejam a instrumentalizar essas acusações para enfraquecer a outra não pode ser descartada. Em disputas de grande visibilidade, como os Óscares, qualquer mancha no passado de um concorrente pode ser explorada como arma política. Isso se tornou especialmente comum na era das redes sociais, onde campanhas de difamação ou indignação organizada podem ganhar força rapidamente. O problema maior é o precedente que isto estabelece. Se começarmos a retirar candidaturas com base em deslizes do passado, o critério artístico deixa de importar. Pior ainda, essa busca por um "passado limpo" é uma ilusão: qualquer pessoa, se investigada a fundo, terá algo que possa ser considerado inaceitável sob uma nova ótica moral. Este tipo de puritanismo cultural pode levar ao esvaziamento do próprio campo artístico. Em vez de premiar os melhores desempenhos, corre-se o risco de transformar o processo numa prova de "pureza ideológica", onde vence quem tiver o passado mais imaculado. Isso não apenas distorce o mérito como também reforça um clima de paranoia e censura, onde artistas e figuras públicas vivem sob constante ameaça de "descobertas" que podem arruinar as suas carreiras.

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