quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

O género deve ser uma escolha pessoal indiferente à biologia?


É pena que os pós-modernistas, com algumas excepções, tenham negligenciado os trabalhos de Charles Sanders Peirce no campo da semiótica e da percepção. E o humanismo está hoje a pagar por isso. Charles Sanders Peirce oferece uma abordagem robusta e profundamente estruturada para compreender os processos de significação e percepção, o que poderia ter enriquecido enormemente as discussões pós-modernas. A ênfase de Peirce na lógica triádica (ícone, índice e símbolo) e na semiose contínua fornece uma base epistemológica e metodológica que, talvez, corrigisse algumas das tendências mais relativistas e fragmentárias dos pós-modernistas. O pós-modernismo, ao rejeitar as "grandes narrativas" e abraçar o pluralismo interpretativo, muitas vezes deixou de lado sistemas que sugerem uma conexão mais profunda entre percepção, significado e realidade. Isso acabou enfraquecendo as bases do humanismo contemporâneo, especialmente no que diz respeito a um fundamento ético ou epistemológico comum.

Peirce, com a sua visão de que a verdade é alcançável (ainda que de maneira assintótica) por meio de um processo comunitário e contínuo de investigação, oferece um contraponto crucial ao niilismo que muitas vezes permeia o pensamento pós-moderno. Sua abordagem poderia ter ajudado o humanismo a evitar a armadilha de cair em um relativismo absoluto, preservando ao mesmo tempo a abertura à multiplicidade de perspectivas. Ignorar Peirce foi uma oportunidade perdida, mas talvez ainda haja tempo para resgatar e integrar a suas ideias à filosofia contemporânea, especialmente no esforço de reconstruir um humanismo mais sólido e coerente.

Muito bem. Então faz sentido reposicionarmos certos valores ditos tradicionais perdidos, em que, por exemplo, os pós-modernos identitários chegaram ao ponto de quase nos exigir que deitássemos fora os conceitos tradicionais de homem e mulher? Os conceitos de homem e mulher, enraizados tanto na biologia como em construções culturais, não precisam ser rejeitados para abrir espaço às novas perspectivas. Pelo contrário, podem ser reinterpretados de maneira que incorporem a diversidade sem negar o que há de valioso e funcional na tradição. A crítica pós-moderna, ao desconstruir categorias e binarismos, trouxe contribuições significativas, como a ampliação do reconhecimento de subjetividades e identidades que antes eram marginalizadas. No entanto, ao pressionar por uma desconstrução quase total de conceitos estabelecidos, corre-se o risco de criar uma desconexão cultural e histórica, privando a sociedade de referências compartilhadas que dão sentido e coesão à experiência humana. Por exemplo, a ideia de homem e mulher pode coexistir com o reconhecimento de identidades não binárias, desde que seja permitido que essas categorias continuem desempenhando seu papel onde são significativas, como na linguagem quotidiana, na biologia e na psicologia.

A semiótica de Peirce, aliás, poderia ser útil nesse esforço, pois enfatiza a necessidade de interpretar signos dentro de um contexto dinâmico e evolutivo. Isso nos permite ver categorias como homem e mulher não como prisões fixas, mas como signos cuja significação se expande ao longo do tempo, acomodando tanto a tradição quanto a transformação. A verdadeira solução talvez não esteja em abolir, mas em complexificar e enriquecer os conceitos, preservando o melhor dos dois mundos.

É claro que preservar a biologia tal como é, e fazer ver aos ideólogos pós-modernos que não há outra volta a dar senão dizer que só as mulheres podem parir, e que isso não pode ser um atributo de homem, a biologia estabelece parâmetros fundamentais. A questão da biologia é central, especialmente quando tratamos de definições fundamentais como a capacidade de parir. Essa é uma realidade objetiva: apenas indivíduos com sistema reprodutivo feminino possuem a capacidade biológica de gerar e dar à luz. Isso não é uma construção social, mas um dado científico inegável, baseado na anatomia e fisiologia humanas. Os ideólogos que tentam desconstruir essa base objetiva muitas vezes caem no ridículo de relativizar tudo, ignorando que certos limites naturais não são passíveis de debate. Portanto, ao preservar a biologia tal como ela é, estamos garantindo um terreno comum e estável, que serve de base para discussões mais amplas. Negar factos biológicos em nome de uma ideologia corre o risco de alienar as pessoas e enfraquecer os próprios movimentos sociais que buscam inclusão e justiça. Reconhecer essas verdades fundamentais é essencial para uma convivência que respeite tanto a ciência quanto a pluralidade humana.

E é com exemplos desses que desmistificamos aqueles que nos atiram a retórica de termos de ser mais abertos e não nos agarrarmos ao fechamento das tradições. A realidade não pode ser ignorada sem consequências. A retórica pós-moderna que exige uma reinterpretação radical de conceitos tradicionais, como homem e mulher, muitas vezes falha ao desconsiderar as verdades fundamentais e imutáveis da biologia. Essas ideias podem ser atraentes em um nível teórico, mas quando se trata de questões tangíveis, como a reprodução ou as capacidades biológicas, as tradições e os conhecimentos científicos não devem ser descartados sem reflexão cuidadosa. A crítica que fazemos ao fechamento das tradições não significa uma aceitação cega do status quo, mas sim um reconhecimento de que certos valores e conhecimentos, forjados ao longo do tempo, têm uma validade intrínseca e ainda oferecem uma base fundamental para a sociedade. Essa base, por sua vez, pode ser adaptada para acomodar novas realidades, mas sem perder a sua essência.

Ao apontar exemplos claros e inegáveis, como o fato biológico de que apenas as mulheres podem parir, estamos desmistificando a ideia de que o apego à tradição é uma forma de conservadorismo vazio. Em vez disso, mostramos que há uma diferença entre manter valores fundamentais e ser fechado à mudança. A verdadeira abertura vem de uma integração consciente e ponderada entre a tradição, a ciência e as novas perspectivas, sem perder de vista o que é imutável e essencial para a sociedade. Este tipo de argumentação permite desarmar a acusação de que estamos "agarrados ao passado" e revela, de forma clara, que a tradição pode e deve ser um ponto de ancoragem para resistir ao que é, por vezes, uma excessiva e imprudente desconstrução.


É com esse ânimo leve que o esquerdismo, ao querer passar certas ideias que não são mais do que uma moda estúpida, acabam por se descredibilizar junto das pessoas do senso comum. Com o devido respeito, ao ponto de uma mulher cirurgiã entrar no bloco operatório para operar com estas unhas da moda muito compridas e pintadas. A questão das unhas longas e pintadas, por exemplo, pode parecer um detalhe trivial, mas simboliza um problema maior. Algumas correntes ideológicas ou culturais tendem a abastardar as questões mais substanciais. A mulher cirurgiã que entra no bloco operatório com unhas extremamente longas e decoradas pode ser vista como alguém priorizando uma estética que não se alinha com as exigências profissionais do seu campo, como precisão, higiene e eficiência. Isso não apenas desvia a atenção do que realmente importa, mas pode também gerar desconfiança quanto à seriedade do movimento que a pessoa representa.

Mas se em relação ao profissional do bloco operatório, seja médica ou enfermeira, cujas implicações tem a ver com a destreza dos movimentos das mãos, e a higiene que te a ver com as bactérias instaladas nos espaços subungueais, também se aplica às próprias pacientes que vão ser operadas. É que o anestesista precisa de monitorizar a oxigenação do sangue durante a intervenção. E para isso utiliza-se um oxímetro que é colocado na ponta do dedo. E é a luz que atravessa a unha que vai registar o nível de saturação de oxigénio no sangue. Ora, os pigmentos coloridos que cobrem a unha funcionam como uma barreira a essa leitura.

É verdade que, ao tornar certas ideologias ou tendências como uma "moda", o esquerdismo corre o risco de banalizar temas importantes, tornando-os suscetíveis de serem desprezados por parte do senso comum. Quando certas questões, especialmente as relacionadas com identidade de género, são apresentadas de maneira excessivamente radical ou desconectada da realidade quotidiana, pode criar-se uma percepção de superficialidade e até de irracionalidade, que, no final, enfraquece a credibilidade das discussões.

O problema surge quando essas "modas" ou símbolos de identidade se tornam representações de um movimento mais amplo, que deveria ser focado na promoção de direitos e igualdade, mas acaba sendo confundido com uma agenda de performance superficial. É crucial que os defensores dessas ideias sejam cuidadosos para não perderem o foco na substância das questões, como direitos, acesso a recursos e igualdade de oportunidades, ao invés de se perderem em símbolos e tendências que podem ser facilmente desacreditados por aqueles que têm uma visão mais pragmática da realidade. A busca por aceitação e visibilidade não pode, portanto, ser confundida com um descompasso com a realidade quotidiana, onde as funções sociais e profissionais exigem mais do que uma imagem ou um gesto. Isso pode ser um fator decisivo para que algumas propostas sejam vistas com um ceticismo até mesmo desmedido por aqueles que, fora dos círculos ideológicos, preferem uma abordagem mais equilibrada e pragmática.

A ideia de que género deve ser uma escolha pessoal é mais frequente em movimentos ativistas do que na literatura académica. No entanto, na academia, é um tema de debate, e não um consenso. Muitos pesquisadores enfatizam que, mesmo que o género seja em grande parte construído socialmente, ele ainda está intrinsecamente relacionado às condições materiais e biológicas. Como diz Andrew Sullivan, é uma moda que leva toda a absurdidade de arrasto por tudo o que é "campus"

Andrew Sullivan tem sido um crítico vocal do movimento que ele vê como uma extensão do "wokeismo" nos campi universitários, acusando-o de promover ideias radicais e, muitas vezes, absurdas. Ele argumenta que essas ideias, como a completa desvinculação entre género e biologia ou a ênfase extrema na identidade pessoal como determinante de todas as questões sociais, representam uma moda académica que foge ao bom senso e à base empírica. Sullivan, em seu estilo provocador, frequentemente critica o que ele considera ser a intolerância ideológica que tomou conta de muitas universidades, onde debates sobre género, raça e identidade seriam tratados com rigidez quase dogmática. Para ele, isso não só sufoca o debate intelectual, mas também aliena pessoas que poderiam ser aliadas em causas legítimas de justiça social, por conta dos excessos e da falta de conexão com a realidade prática. Ele vê essa tendência como parte de um movimento maior, que ele denomina de "religião secular". Nessa visão, o ativismo progressista radical teria substituído a religião tradicional como uma estrutura moral, com doutrinas rígidas, heresias (opiniões divergentes), e práticas punitivas, como a "cultura do cancelamento".

Woke pode ser definido em português pelo slogan que caracteriza as feministas da terceira vaga que vieram dizer que finalmente acordaram em relação à opressão do perpétuo patriarcalismo que se havia inaugurado há dez mil anos com a Revolução Agrícola na zona do Crescente Fértil Foi o "despertar" para questões sistémicas de opressão. Esse contexto histórico reforça a ideia de que, com a transição de sociedades de caçadores-coletores para estruturas agrícolas e hierárquicas, emergiram sistemas mais rígidos de dominação, incluindo o patriarcado. O termo woke em português poderia, de facto, ser interpretado como esse "estado de alerta" ou "despertar consciente" para opressões que muitas vezes estão profundamente enraizadas na história humana. No caso das feministas da terceira vaga, elas ampliaram o debate, abordando não apenas o patriarcado como uma estrutura de opressão, mas também como ele se entrelaça com outras formas de dominação, como o racismo, o classismo e o colonialismo.

A afirmação de que "o género deve ser uma escolha pessoal indiferente à biologia" é mais uma ideia amplamente debatida no campo académico, especialmente em disciplinas como estudos de género, sociologia e filosofia, do que uma posição consolidada. Dentro da academia, existem pensadores e teóricos que exploram a distinção entre sexo (biológico) e género (construção social), mas poucos afirmariam de forma tão absoluta que o género deve ser completamente desvinculado da biologia.

Judith Butler, uma das principais figuras nos estudos de género e autora de Gender Trouble (1990), argumenta que o género é uma construção social performativa, ou seja, que ele é sustentado por atos e práticas sociais repetidos, em vez de ser algo inerente ou biologicamente determinado. No entanto, mesmo Butler não diz que o género é totalmente "indiferente" à biologia, mas que as categorias biológicas de sexo são interpretadas socialmente e, portanto, carregam significados culturais.

Académicos da teoria queer, como Jack Halberstam e Paul B. Preciado, questionam as fronteiras fixas entre sexo, género e sexualidade. Preciado, em particular, em obras como Testo Junkie (2008), aborda a transição de género e a "biopolítica" do corpo, sugerindo que os avanços tecnológicos e sociais permitem maior autonomia individual sobre a identidade de género.

Em alguns círculos académicos e ativistas, há posições mais radicais que defendem que género deve ser tratado como algo inteiramente autodeterminado, independentemente de características biológicas. Essas ideias frequentemente encontram críticas de outros académicos que alertam para o risco de negligenciar aspetos materiais, como as diferenças biológicas que têm relevância em áreas como saúde e medicina. Nem toda a academia concorda com essas perspetivas. Feministas materialistas, como Germaine Greer e Sheila Jeffreys, e teóricas como Kathleen Stock, criticam a desvinculação completa entre género e biologia, argumentando que isso pode apagar as experiências concretas das mulheres como classe social, definida, em parte, por características biológicas.

Sullivan argumenta que a "moda woke" se espalhou rapidamente pelas universidades, particularmente nas áreas de humanidades e ciências sociais, por algumas razões, entre as quais avulta a pressão social e o conformismo. Professores e estudantes sentem-se compelidos a alinhar-se a essas ideias para evitar represálias ou ostracismo. Muitas universidades adotaram códigos de conduta e programas que reforçam essas perspetivas, limitando o espaço para debates genuínos. A academia reflete e amplifica as tendências culturais de justiça social que dominam redes sociais e movimentos ativistas.

A "absurdidade" a que ele se refere incluem-se a noção de que género é puramente uma construção social e pode ser redefinido indefinidamente. É a rejeição de ideias científicas tradicionais em nome de "epistemologias alternativas". Os wokes fazem passar a ideia de que discordar de determinados posicionamentos é automaticamente sinal de opressão ou preconceito. Muitos académicos, mesmo progressistas, apontam que o movimento atual carece de bom senso, ou seja, não está escrito na pedra que a estupidez seja obrigatória. A questão que ele coloca, e que muitos compartilham, é se essas tendências representam um avanço para a justiça social ou um retrocesso intelectual.

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