sábado, 8 de fevereiro de 2025

A Geografia Humana e Suas Ironias



A Europa, berço da Revolução Industrial e do capitalismo moderno, construiu a sua riqueza e estabilidade muito à custa dos recursos naturais de suas antigas colónias. Hoje, porém, essa mesma Europa depende demograficamente dos descendentes das populações que outrora explorou. Sem eles a economia e o  modelo social europeu é insustentável. A ironia é ainda mais cruel quando percebemos que a riqueza acumulada no Norte global resultou de uma atividade humana que agora as alterações climáticas estão a cobrar os seus custos. Mas ainda mais irónico é que é o Sul global que está a pagar a fatura.

O fluxo de bens naturais e manufatura tecnológica corre através dos mares, o capital corre através dos cabos submarinas e dos satélites. Com abundância, quase sem barreiras. E os fluxos migratórios não podiam ser excepção. Então, e as pessoas? Agora Aqui-d'El-Rei que os migrantes estão a entrar através das nossas fronteiras. Ora, essa atitude contrasta com a necessidade de trabalhadores para setores que os próprios europeus não querem trabalhar, como a construção civil, a agricultura e o cuidado de idosos. A contradição aqui é clara: o fechamento das fronteiras responde a pressões políticas internas, mas enfraquece as dinâmicas que sustentam a própria sociedade europeia.

Séculos atrás, europeus colonizaram e impuseram os seus sistemas nas regiões hoje marcadas pela emigração. Ironia maior não poderia haver: os descendentes dessas populações buscam agora refúgio nos antigos centros coloniais, não como invasores, mas como trabalhadores dispostos a revitalizar economias envelhecidas. A migração atual é um eco invertido das caravanas coloniais que levaram "civilização" às colónias, mas desta vez é o Sul que leva vitalidade ao Norte.

A Europa, altamente mecanizada e dependente de tecnologia, vê a sua população envelhecida incapaz de preencher as lacunas do mercado de trabalho. Enquanto isso, regiões como a Guiné, ricas em juventude, carecem de acesso à educação e tecnologia para reter o seu próprio capital humano. Esse desequilíbrio é uma chamada de atenção irónica de como o progresso tecnológico pode tanto aproximar como ao mesmo tempo aprofundar as desigualdades.

É assim que a relação entre o Norte e o Sul se faz por uma espécie de pragmatismo cínico. Enquanto as elites políticas e económicas europeias defendem o controlo migratório para agradar a seus eleitores, silenciosamente dependem da força de trabalho imigrante para sustentar os seus modelos de bem-estar social. O cinismo é ainda mais evidente na narrativa política: imigrantes são retratados ora como uma ameaça cultural, ora como uma necessidade económica, dependendo do contexto. Por conseguinte, os valores universais europeus proclamam liberdade, igualdade e fraternidade, mas os europeus aplicam esses princípios seletivamente. Na prática, a liberdade europeia convive com muros fronteiriços; a igualdade é uma abstração distante para os imigrantes; e a fraternidade se dissolve no discurso nacionalista. Este paradoxo revela que, apesar das divisões, somos profundamente interdependentes. A juventude africana sustenta a velhice europeia; o capital europeu molda o destino africano. Essa relação, porém, não é de cooperação, mas de exploração disfarçada.

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