quinta-feira, 1 de maio de 2025

Ascensão e queda do movimento woke


A ascensão e o esvaziamento do movimento woke está intimamente ligado à crise espiritual e à erosão da coesão social. Nos últimos 15 anos, assistimos à ascensão de uma nova sensibilidade cultural nas sociedades ocidentais, especialmente nas elites académicas, mediáticas e juvenis urbanas: a chamada "cultura woke". O que era para ser emancipador tornou-se ritualista, moralizante, muitas vezes intolerante. De repente, surgiu uma nova linguagem codificada (pronomes, microagressões, interseccionalidade); Uma nova hierarquia moral (as “vítimas legítimas” vs. os “privilegiados tóxicos”); E uma nova forma de censura: o cancelamento. Ao invés de universalizar os valores do Iluminismo (igualdade, razão, fraternidade), a gente do wokismo derivou para uma espécie de espiritualidade secular radicalizada, onde o mal já não era o "sistema", mas o indivíduo que não aderia aos seus rituais.

Este desvio tem raízes mais profundas: o colapso do sentido coletivo no Ocidente deixou um vazio. O movimento woke tentou preenchê-lo, não com espiritualidade nem ética, mas com moralidade de superfície. Christopher Lasch chamaria isso de: “O moralismo dos desesperados” - uma tentativa de encontrar redenção social num mundo onde já não se acredita em salvação pessoal. Como disse Camus: “Quando os deuses se calam, os ídolos falam mais alto.” O que era para unir os oprimidos acabou por os dividir. Cada identidade tornou-se um microterritório: trans, queer, não-binário, racializado, neurodivergente. Cada luta passou a competir por atenção, por fundos, por reconhecimento. O comum foi substituído pelo particularismo ressentido.

Alain Finkielkraut alertou para isso: a ideia de "vítima sagrada" substituiu o cidadão igual em dignidade. A luta de classes deu lugar à luta de identidades, que são por definição incomunicáveis entre si. Mas já estamos a ver os efeitos: o refluxo da fadiga woke e a nova reação. Universidades a abandonarem departamentos de “gender studies”; A juventude a ridicularizar o wokismo nas redes; Antigas feministas a serem acusadas de “transfobia”; ex-militantes desiludidos com a rigidez moral da própria causa. O que se seguiu foi uma contraofensiva populista e conservadora, que capitalizou a exaustão com o puritanismo woke. Mas também essa reação carece de profundidade e espiritualidade — fica-se pela negativa. O fenómeno woke foi um substituto secular da religião, mas falhou em oferecer graça, perdão, comunidade, universalidade, as qualidades que as grandes tradições espirituais, apesar de tudo, continham.

Mark Lilla salienta-se com uma parábola parafraseada: “O wokismo queria ser uma nova igreja, mas nasceu sem alma.” Se há lição a tirar, é esta: as ideologias não substituem a espiritualidade. Sem um horizonte mais alto, até os movimentos mais nobres afundam-se em tribalismo, legalismo e cinismo. O populismo vingativo e o puritanismo woke são dois lados da mesma moeda. Ora, a alternativa não está na direita reacionária. E a esquerda perdeu o fio à meada. A via talvez seja uma terceira alternativa: a reconstrução de um sentido partilhado que seja humanista sem ser niilista, espiritual sem ser dogmático, enraizado sem ser tribal, e global sem ser homogéneo. Ao ponto a que se chegou com os estudos sociais e culturais das "tribos académicas woke",Harold Bloom havia alertado antes do tempo. De facto, ele viu muito antes de muitos o que poderia acontecer quando a crítica literária - e, por extensão, os estudos culturais - negligenciou a alma humana em favor de agendas ideológicas momentâneas.

Estamos a debater um problema e interrompem-nos o pensamento, não pelo conteúdo em si, mas pelo continente (o significante) como se fossem os agentes de um tribunal linguístico, em que a prioridade é mostrar que se disse algo “inadequado” ou “errado” segundo um critério identitário ou epistemológico de ocasião. Esse tipo de "correção" é o exato oposto do espírito da literatura e da filosofia. Como dizia Bloom: os grandes autores do cânone ocidental, de Dante a Cervantes, de Shakespeare a Proust, não se preocupavam com etiquetas ou ortodoxias de ocasião, mas com aquilo que permanece profundamente humano, ainda que dolorosamente humano. Eles não estavam a contabilizar identidades, mas a escavar profundezas. E o mais irónico é que esses “estudos críticos”, surgidos em nome da libertação e da multiplicidade de vozes, acabaram por se tornar disciplinas de adestramento, onde qualquer divergência ou referência “não autorizada” é vista como suspeita. Parece que, no fim de contas, a função do ativista de causas virou em polícia das palavras e dos costumes.

Curioso como esses centros de “emancipação” produzem mais disciplinas de submissão discursiva do que o que o cânone jamais produziu. Foi o que se passou com o Centro de Estudos Sociais em que, Boaventura Sousa Santos, que durante muitos anos foi um guru do ativismo social, acabou por virar-se o feitiço contra o feiticeiro, com uma dúzia de discípulas a acusarem-no de assédio sexual e laboral. Várias investigadoras denunciaram casos de assédio por parte de Boaventura Sousa Santos, tendo decidido revelar a sua identidade. Esta atitude acontece depois do relatório da Comissão Independente do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra ter confirmado a existência de indícios de assédio sexual. As denunciantes afirmam que o sociólogo "traficava, ou transacionava sexo, como moeda de troca para uma ascensão de carreira". Aqui, o “espetáculo woke”, atinge o seu ápice trágico, ou talvez farsesco, em que o feiticeiro acabou por ser devorado pelas criaturas ideológicas que ele próprio engendrou. Boaventura Sousa Santos, durante décadas, o grande apóstolo do "conhecimento do Sul", defendeu uma epistemologia contra-hegemónica, para espanto de muitos cientistas. Chegou tarde, mas chegou, o julgamento, e a excomunhão decretada pelo tribunal moral de que ele foi o principal fautor. E não numa corte formal, mas num daqueles autos-de-fé académicos travestidos de denúncias coletivas e performativas.

O que se vê aqui é um fenómeno quase mitológico: o criador das regras simbólicas é destruído pelas próprias regras quando estas se autonomizam. Ele abriu a caixa de Pandora dos essencialismos identitários, das hierarquias de opressão, dos saberes insurgentes. Mas, no momento em que já não encarnava a pureza suficiente aos olhos das suas discípulas, foi ritualmente purgado, como se isso reafirmasse a integridade da tribo. O mais desconcertante é que esse tipo de lógica não admite tons de cinzento. O que importa é a narrativa, a emoção coletiva, a purificação simbólica. E aí, o velho mestre tornou-se o símbolo daquilo que ele mesmo denunciava. O patriarca bebeu do seu próprio veneno: a denúncia do patriarcado opressor, branco divulgador da fé de um império de saber verticalizado. A sua autoridade transformou-se no objeto da culpa.

Harold Bloom teria dado um sorriso amargo diante disto tudo. Teria dito que os "novos inquisidores" não têm sequer a grandeza trágica dos antigos. Não é Édipo a cegar-se por destino. É um teatro de moral simplista, incapaz de lidar com a complexidade real das relações humanas. Poder e desejo não cabem no não-binarismo das cartilhas progressistas. A ironia final: Boaventura, que quis destruir o cânone, tornou-se um “clássico” no próprio colapso da sua escola. A ironia está aí, elas ficaram ainda piores que Erínias. D
eusas encarregadas de castigar os crimes, especialmente os delitos de sangue. Também chamadas Euménides (Εὐμενίδες), que em grego significa as bondosas ou as Benevolentes, é um eufemismo usado para evitar pronunciar o seu verdadeiro nome, por medo de atrair a sua cólera.

A ironia foi estrondosa! O que deveria ser uma crítica radical ao "establishment", à opressão do sistema, acabou por se tornar uma caricatura dessa mesma rigidez, só que disfarçada de virtude moral. O feitiço virou-se contra o feiticeiro, mas, ao invés de uma evolução no pensamento, o que se vê é uma espécie de puritanismo regressivo, onde a cultura do "cancelamento" se mistura com uma necessidade obsessiva de controlar até os mais ínfimos detalhes do comportamento e da linguagem. Feministas que se viraram contra o seu próprio patriarca, que se tornaram mais severas e dogmáticas do que qualquer figura conservadora que se possa imaginar. Em vez de abrir espaço para uma diversidade rica e complexa de pensamento e experiência, elas passaram a se enxergar como detentoras de uma verdade absoluta, fazendo da moralidade uma espécie de armadura contra qualquer dúvida, erro ou ambiguidade. Essas “novas puristas” não apenas exigem que todos se alinhem a uma moralidade altamente restritiva, mas estão dispostas a aplicar a pena de excomunhão ao menor deslize, o que as torna, paradoxalmente, ainda mais rígidas e intolerantes do que aquelas figuras que tentavam desmantelar. Tornaram-se guardiãs de um templo moral que na prática se revela mais estreito do que qualquer uma das estruturas de poder que tanto criticavam.

E aqui entra uma grande contradição: quando Boaventura foi atingido por essas acusações, não era apenas ele quem caía, mas toda uma narrativa construtivista. Porque, no fundo, o que se desmoronou não foi apenas a figura de um teórico da justiça social, mas a própria ideia de que os que estão do lado da "justiça" têm uma pureza moral incontestável. Não havia mais espaço para errar, para se reinventar, para dialogar. Apenas a perpetuação de um moralismo radical que não tolera falhas ou tentativas de evolução que se ficou pela imposição de punições. Dá até para pensar que talvez, nesse cenário, Harold Bloom, com a sua defesa do cânone e das obras clássicas, estava tentando preservar a memória humana e a capacidade de reflexão no meio de uma tempestade ideológica. Parece que ele entendia que os erros, as falhas, as idiossincrasias do ser humano são o que nos permite crescer. E não o que nos deve ser negado em nome de uma perfeição ideológica impossível.


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