segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Inferência Causal e Doença




Inferência Causal é o processo mental de índole matemática para penetrar nas enigmáticas relações de causa e efeito. E quando aplicada ao estudo do processo saúde-doença, entramos na disciplina da Epidemiologia. O cérebro humano, melhor do que o cérebro de qualquer outro animal, é bom a equacionar as questões de causa e efeito. Nós conseguimos armazenar uma infindável quantidade de informação que guarnece o nosso conhecimento causal. Mas ainda assim, a nossa inteligência tem os seus limites, e por isso tem falhado muito no acerto desta relação (causa-efeito), assunto muito trabalhado por filósofos durante dois mil anos – de Aristóteles a David Hume – que só há duzentos anos os matemáticos tentaram resolver o problema de uma vez por todas, criando a disciplina chamada “estatística”. Mas hoje, com a inteligência artificial a processar uma quantidade de dados muito superior ao que o nosso cérebro é suposto processar, os matemáticos prometem ir ainda mais longe, extraindo conhecimento causal do meio ambiente ainda desconhecido. O que irá possibilitar a resolução de problemas e identificar fenómenos jamais descobertos.

Até que ponto é eficaz um determinado tratamento na prevenção de uma doença, ou quais os custos de saúde envolvidos no tratamento de problemas de saúde provocados por hábitos e escolhas, como por exemplo é  caso da obesidade, ou o de fumar cigarros, são perguntas que podem ser respondidas por este método, porque são questões que têm a ver com relações de causa e efeito.

O julgamento final sobre os efeitos causais de um tratamento frequentemente dependerá do acúmulo de evidências obtidas por meio de uma série de estudos. A contribuição de cada estudo depende da capacidade do investigador, ao interpretar os resultados de um estudo que mostre uma associação consistente com uma hipótese causal, de listar e discutir todas as explicações alternativas, incluindo hipóteses diferentes ou possíveis vieses. É comum caracterizar a Epidemiologia como uma disciplina (para alguns) ou ciência (para outros), que tem como um dos seus eixos centrais de interesse a preocupação com a determinação do processo saúde-doença. A ocorrência de doenças é um fenómeno em que há interesse geral na identificação de suas causas para que obviamente possam ser prevenidas. Entretanto, inferir causalidade é uma tarefa complexa. Envolve diversas áreas de investigação. A filosofia, a sociologia e a medicina sempre se sentiram desafiadas por essa questão, enquanto a estatística só mais recentemente parece ter despertado o seu interesse por ela. Embora se identifiquem referências à ideia de causa nos trabalhos sobre experiências randomizadas desenvolvidas por Fisher no início do século XX, formalmente a contribuição da estatística para esta discussão começou com o trabalho de Rubin em 1974.

Mesmo a randomização (ou aleatorização), um mecanismo de alocação de tratamentos apenas em ambientes experimentais, alguns analistas são mais cautelosos em reconhecê-la nestes casos - ensaios terapêuticos experimentais - como apropriada para estabelecer relações de causalidade inteiramente limpa. Os ensaios clínicos servem-se tanto dos estudos observacionais como dos dados estatísticos. A experimentação nem sempre é possível quando se trabalha com populações humanas. Entretanto, a possibilidade de se estabelecer um modelo estatístico cuja formulação seja comum às abordagens experimental e observacional parece adequada, pois unificaria a ideia de causa contida nos estudos epidemiológicos. A diferença fundamental entre as abordagens concentra-se no nível de controlo que o analista, experimentador ou observador possui sobre o mecanismo de determinação da causa.

A Epidemiologia - como ciência preocupada com a frequência, a distribuição e os determinantes das doenças que acometem a população - tem desenvolvido procedimentos metodológicos baseados em modelos estatísticos que buscam identificar a etiologia das doenças. Esses modelos são, entretanto, dependentes de pressupostos que muitas vezes não podem ser escrutinados com base em dados observados. O conceito de validade tem, portanto, um papel-chave na avaliação dos efeitos causais. Por sua vez, a validade sobre a existência de uma relação de causa e efeito entre uma doença e um fator de risco é dependente das características de cada desenho de estudo que a Epidemiologia utiliza. Uma causa pode ser entendida como qualquer evento, condição ou característica que desempenhe uma função essencial na ocorrência da doença.

Historicamente, a primeira tentativa formal para a identificação das causas de uma doença deu-se com a formulação, em 1890, do que foi chamado de "Postulados de Henle-Koch". Heinrich Hermann Robert Koch foi um médico, patologista e bacteriologista alemão, um dos fundadores da microbiologia e um dos principais responsáveis pela atual compreensão da epidemiologia das doenças transmissíveis. De Koch até hoje, foram sendo feitos aperfeiçoamentos cujas modificações culminaram num conjunto de critérios que identificam uma associação entre exposição e doença, cuja exaustão não cabendo neste simples artigo, apenas me vou limitar a enumerá-los: força da associação; consistência; especificidade; temporalidade; gradiente biológico; plausibilidade; coerência; evidência experimental; analogia. 

À exceção do critério de temporalidade, nenhum outro desses nove critérios de evidência epidemiológica deve ser exigido como condição sine qua non para julgar se uma associação é causal. Pode-se dizer também que eventualmente os critérios de evidência experimental e analogia são irrelevantes e o de especificidade, impróprio. De modo diferente, a abordagem estatística sobre causalidade baseia-se na formulação de um modelo construído sob o método do contra-factual, na qual são estabelecidas hipóteses que procuram viabilizar a inferência causal. A dificuldade está, pois, na verificação de tais hipóteses, nem sempre passíveis de serem testadas por meio dos dados observados. A validade de algumas hipóteses não testáveis, por sua vez, depende do nível de convencimento que o analista consegue obter, para si próprio e para os outros, baseado numa cuidadosa análise de cada situação em particular. Sendo assim, é de grande valia que as hipóteses não testáveis adjacentes ao modelo estejam explicitadas, para que possam ser analisadas criticamente. Há falta de validade de comparação, sempre que existir diferença entre os riscos de doença entre os grupos sob comparação, independentemente do fator causal em questão. Em outras palavras, haverá confundimento sempre que o grupo de indivíduos não expostos não representar o que aconteceria com os indivíduos expostos, caso eles não tivessem sido expostos. Planear um estudo real em que tal conceito possa ser operacionalizado não parece ser tarefa simples. Entretanto, pode-se depositar umarazoável credibilidade nessa hipótese no caso de randomização, já que sob esta condição espera-se que as distribuições de eventuais variáveis confundidoras não sejam muito diferentes nos dois grupos de exposição. Sob randomização, qualquer eventual confundimento que ainda persista após ajustamentos adequados será considerado pelo erro padrão da estimativa, dado que a especificação do modelo estatístico utilizado para computar o efeito estimado e seu erro padrão esteja correta.

Assim, a atribuição de causa é dependente do estabelecimento de hipóteses que, de acordo com o estudo em questão, podem ser ou não plausíveis. As hipóteses de causa passageira - estabilidade temporal, independência, homogeneidade de unidades, efeito constante e valor estável unidade-tratamento, combinadas ou não - constituem as premissas necessárias para se estabelecer um modelo teórico de causalidade. Acrescente-se a elas ainda as questões relativas à operacionalidade peculiar a cada estudo, tais como viés de informação, viés de seleção, erros de mensuração, dados censurados e erros na especificação do modelo probabilístico de estimação, cuja consideração é fundamental para o estudo de causa. No caso de doenças contagiosas, exigem-se hipóteses especificamente sobre a exposição à infecção. A validade de uma atribuição de causa é, portanto, dependente de todas essas condições, com a agravante de em muitas situações não ser possível colocá-las à prova. Sendo assim, o modelo estatístico de causalidade devido a Rubin não deve ser visto como a panaceia da questão causal. Um mecanismo causal é uma teoria científica que procura descrever os diversos processos biológicos, químicos, físicos e sociais pelos quais o tratamento produz os seus efeitos. A complexidade por trás de um mecanismo causal parece bem representada pela máxima de Fisher, quando questionado sobre o que poderia ser feito em estudos observacionais para elucidar o caminho que separa associação, ou correlação, de causalidade: "elaboração". A elaboração, a que Fisher faz alusão,  foi interpretada como sendo a consideração, tanto quanto possível, de todas as consequências de uma hipótese causal estabelecida . Planear tudo ao pormenor para que possam ser verificadas todas as consequências. Entretanto, essa elaboração pode eventualmente ser simplificada pela construção de hipóteses causais mais específicas, de modo a que as consequências dessas hipóteses possam ser consideradas e avaliadas.

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