terça-feira, 26 de novembro de 2019

Culturas e civilizações


Este é um tema em que não há consensos, o que não nos deve surpreender. Em primeiro lugar, existe uma diferença entre civilização no singular e civilizações no plural. No meio dos pensadores alemães não é trabalhado o conceito “civilização”. Dão primazia ao conceito de “cultura”. Talvez por “civilização” ter sido inventada pelos franceses. Dá vontade de dizer que é cada um a puxar a brasa à sua sardinha. Os pensadores alemães do século XIX traçaram uma clara distinção entre civilização: que implicava tecnologia e fatores materiais; e cultura: que envolvia valores, ideias e características intelectuais e morais de uma sociedade. A partir do século XX, a oposição “civilizado” versus “bárbaro” perdeu o seu sentido clássico, e o que passou a existir foi “muitas civilizações”, cada uma delas civilizada à sua maneira.

Assim, dentro do âmbito meramente histórico, das muitas civilizações podemos começar a elencá-las sem a preocupação de as esgotar, nem de as mencionar por ordem de importância: chinesa, hindu, europeia, maia, inca, asteca, eslava, japonesa, egípcia … A civilização é assim o mais elevado agrupamento cultural de pessoas com afinidades que passam pela língua, a história, a religião, costumes e instituições, que permita uma autoidentificação espontânea por parte e cada uma das pessoas. A civilização japonesa será uma exceção quanto ao facto de as civilizações em regra comportam mais do que um Estado. O Japão é uma civilização que é um Estado. Vários especialistas distinguem uma civilização ortodoxa, centrada na Rússia e separada da cristandade ocidental em resultado da sua linhagem bizantina. Aqui não entrou o Renascimento, ou a Reforma, nem o Iluminismo.

Esta abordagem tem como implícito que cada pessoa comporta níveis diferentes de identidade, e graus diferentes de intensidade identitária: Exemplificando: uma pessoa de Braga, pode dizer que é: um bracarense; um minhoto; um português; um católico; um europeu; e ao mesmo tempo identificar-se como um benfiquista. Mas a civilização será o nível mais amplo de identificação, como, por exemplo, dizer que se identifica com a civilização ocidental; ou com a civilização de matriz judaico-cristã; ou com a civilização de matriz celta; ou com a civilização de matriz greco-romana. Das cinco religiões mundiais com mais crentes, só o budismo não está associado a grandes civilizações. Na terra onde surgiu não sobreviveu ao hinduísmo. E para onde migrou, para oriente, não ocupou o lugar nem do confucionismo, nem do islamismo. Podemos assim concluir que a virtual extinção do budismo na Índia e a sua adaptação e importação nas culturas existentes na China e no japão significam que o budismo, embora sendo uma grande religião, não esteve na base de uma grande civilização. Mesmo o Tibete, a Mongólia e o Butão, é considerada uma segunda área do budismo, dado que aderiram à variante lamaísta do budismo maiano. E quanto à civilização judaica? A maior parte dos especialistas de civilizações, raramente a mencionam. Até neste aspeto é considerado uma exceção, para não dizer extravagância, uma vez que não sabemos se devemos falar de Israel – uma religião, uma língua, costumes, literatura, uma base territorial e política; daí não se poder considerar a civilização hebraica do tempo de Salomão como uma civilização extinta; para além de não sabermos como enquadrar os judeus da diáspora, que engloba uma amálgama de alta finança conspirativa, de pogroms em grande escala no passado, ou de antissemitismo no presente.

São tudo termos aceitáveis para um habitante de Braga cujos antepassados consta sempre terem sido daqui, dado se perder no esquecimento do tempo qualquer hipótese de migração. Embora cientificamente se saiba que todos somos descendentes de migrantes considerados à grande escala do tempo. Ao contrário dos impérios, que surgem e caem, ou dos regimes políticos que são efémeros, vão e vêm, as civilizações permanecem e sobrevivem às convulsões políticas durante muito mais tempo.

Todos sabemos como é problemático um ocidental falar do Oriente e um oriental falar do Ocidente. Assim sendo, o Ocidente inclui a Europa, a América do Norte, A América do Sul, a Austrália e a Nova Zelândia. A utilização de “Oriente” e “Ocidente” para identificar áreas geográficas é confusa e etnocêntrica, na medida em que não há um ponto ou linha divisória leste/oeste, ao contrário do Norte/Sul, cujos pontos são os Polos e a linha é o Equador. A leste ou a oeste de quê? Tudo depende do ponto onde nos encontremos. Para os japoneses o Ocidente é a China. Para os chineses o Oeste é a Índia. Para os nova-iorquinos o Oeste é o Texas ou a Califórnia.

O Ocidente durante várias centenas de anos manteve-se num nível inferior ao de muitas outras civilizações. A China, sob as dinastias T’ang, Sung e Ming, o mundo islâmico entre os séculos VIII e XII, Bizâncio entre os séculos VIII e XI, ultrapassava a Europa em riqueza, território, poder militar e realizações artísticas, literárias, científicas e tecnológicas. Só no século XII a Europa começou a desenvolver-se. O Ocidente, como civilização de terceira geração, herdou muito das civilizações anteriores, especialmente das civilizações greco-romanas: filosofia grega; direito romano e racionalismo; língua latina; separação da autoridade espiritual da temporal; primado da lei.

Cada civilização vê-se o centro do mundo e escreve a sua história como o drama central da história humana. E os ocidentais fazem jus a esse paradigma. É precisamente o desafio do desconhecido que estimula a nossa curiosidade de o conhecer dentro de um espírito multicivilizacional. Por isso não sinto qualquer inibição de vir aqui falar dos chineses ou dos japoneses dos tempos atuais, na medida em que estamos a pressentir que vamos viver cada vez mais com a sua influência, à medida que os vamos vendo a comprar coisas por aqui. Todos os especialistas reconhecem a existência de uma única civilização chinesa distinta, que remontaria a entre 2.500-1.500 anos a.C. Enquanto o confucionismo é uma importante componente da civilização chinesa, esta é mais do que o confucionismo, e também transcende a China como entidade política.

Enquanto os chineses e os japoneses encontram novos valores nas próprias culturas, reafirmam também todo o valor da cultura asiática quando comparada, genericamente, com a do Ocidente. A industrialização e o crescimento que acompanharam este processo produziram nos asiáticos do Extremo Oriente, nos anos 1980/90, o que poderia designar-se por afirmação asiática.
Os asiáticos passaram a acreditar que iam manter um desenvolvimento económico rápido, o que iria resultar a curto prazo na ultrapassagem do Ocidente em todos os indicares económicos. Por um lado, porque acreditam que a cultura asiática é superior à ocidental, porque é uma cultura que coloca a ênfase mais na coletividade do que no indivíduo. E por outro lado, consideram que a civilização ocidental está cultural e socialmente em decadência. Em todos esses países do sudeste asiático sobressai o sistema confucionista, reconhecido pela sua frugalidade, pela aposta na família e não no individuo, e não de somenos, a importância do “autoritarismo suave”.

Em princípios do século XX os intelectuais chineses, à maneira de Max Weber, mas de um modo independente, viam o confucionismo como a fonte do atraso chinês. Em finais do século XX os dirigentes políticos chineses, à maneira dos sociólogos ocidentais, celebram o confucionismo como a fonte do progresso chinês. Na década de 80 o governo chinês começou a promover o interesse pelo confucionismo, com os dirigentes partidários a declará-lo como “a corrente dominante” da cultura chinesa. Na década de 1990 o governo de Taiwan proclamou-se “herdeiro do pensamento confucionista”. O nacionalismo promovido pelo regime chinês é o nacionalismo Han, que ajuda a suprimir as diferenças linguísticas, regionais e económicas em 90% da população chinesa. No entanto, 10% da população é de minorias étnicas não chinesas, ocupando 60 % do território.

Uma outra civilização distinta é a islâmica, nascida na Península Arábica no século VII. Mas depois muitas outras culturas distintas da arábica, como a turca, a persa e a malaia, passaram a pertencer ao mundo islâmico. Ao contrário dos confucionistas, os islamistas – muçulmanos e não muçulmanos, ou melhor, árabes e não árabes – ao voltarem-se de novo para o Islão como fonte de identidade antiocidental, ainda não encontraram o caminho que os leve a alcançar o mesmo objetivo económico conseguido pelos asiáticos extremo-orientais. São muitos os sinais de um despertar islâmico na vida pessoal: maior ênfase no trajo e nas práticas de rezar virados para Meca cinco vezes por dia, estejam onde estiverem. Muitos estadistas e governos, incluindo os Estados mais seculares, de que a Turquia é o caso mais surpreendente, têm mostrado uma maior permissividade a extremismos quanto às questões da pureza islâmica.

Mutas das características da civilização ocidental anteriormente referidas contribuíram para o nascimento de um sentimento de individualismo e de uma tradição de direitos e liberdades individuais únicos entre as sociedades civilizadas. O individualismo continua a ser um sinal distintivo do Ocidente entre todas as civilizações que ainda existem. Ora, este valor que é o mais importante no Ocidente, não é acolhido com o mesmo entusiasmo no resto do mundo, onde impera o coletivismo ou o comunitarismo, mais restrito quando limitado à família ou clã, ou mais alargado à dimensão da aldeia comunitária.

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