segunda-feira, 11 de novembro de 2019

De novo à deriva


Osvaldo Spengler, em 1923, tocado pelo que aconteceu com a Grande Guerra, fazia profecias algo controversas relativas ao devir da Civilização. É claro que nessa altura o horizonte da cultura europeia ainda era universal, mais propriamente inglês, que durante século e meio aguentou um império que se estendia para lá da Índia. O Império tinha acabado.

E na verdade, a Guerra Mundial que se seguiu vinte anos depois daria razão a Spengler, não fosse o caso de passados outros vinte anos se terem afirmado no Ocidente outros protagonistas de impérios. Sim, para todos os efeitos a União Soviética foi um império ocidental em disputa com os Estados Unidos da América. Claro que durante todo o tempo da chamada Guerra Fria, falar de Império Americano não era propriamente um cumprimento. Mas esta evidência só se tornou significativa depois da queda do Muro de Berlim, que levou a União Soviética consigo na derrocada.

A Europa não pode entrar em decadência, sobretudo à maneira romana. É preciso recordar que apesar de ter sido vítima das suas contradições internas quase mortais, foi salva pelo Novo Mundo, sua antiga colónia. Teria começado aí a deriva da Velha Europa, como lhe chamou Donald Rumsfeld, não fosse a singularidade de a Europa na História, pelo menos desde César, ter dado ao mundo um Colombo e um Vasco da Gama. A deriva nada tem que ver com a história colonizadora no vasto mundo, mas com a divergência durante séculos com o Islão, e que perdura. Se não fosse isso, não teria havido a necessidade da Rota do Cabo, um desvio enorme para ultrapassar a barreira otomana no Mediterrâneo oriental. Agora, a história com o Oriente é outra história, pois é no Oriente que se define verdadeiramente o que significa Ocidente. 




A imagem mostra delegados dos países que participaram no Fórum Para a Cooperação Internacional Cintura e Rota (ICR) que decorreu em Beijing de 14 a 15 de maio de 2017. Participaram cerca de cinco mil delegados de 150 países, incluindo 40 chefes de governo e representantes de 90 organizações internacionais. A reunião realizou-se a seguir a uma visita bem sucedida à Europa efectuada pelo presidente da China, Xi Jinping, durante a qual foi assinado um Memorando de Entendimento com a Itália, país que se juntou a mais 16 da Europa Central e Oriental que já o havia feito. Também a Suíça e o Luxemburgo manifestaram a intenção de aderir à iniciativa. O acordo entre a China e a Itália foi recebido com muita cautela pelos outros pesos-pesados da União Europeia, designadamente a França que, apesar de tudo, ficou muito feliz com a assinatura de acordos multimilionários para benefício de fabricantes franceses, entre eles a Airbus.

O conceito "Iniciativa Cintura e Rota" (ICR) foi apresentado pela primeira vez pelo presidente chinês em discursos pronunciados em Astana e Jacarta em 2013. Desde então, em pouco mais de cinco anos a ideia conquistou a atenção, imaginação e apoio de mais de 150 países. Dois ramos fundamentais dão corpo à ideia: a constituição de uma rede rodoviária, ferroviária e de fibra óptica em toda a Ásia, estendendo-se à Europa; e uma série de rotas marítimas ligando a China à Europa, África e América Latina. E qual é o papel da Rússia no meio desta tenaz? Pois
 o presidente russo, Vladimir Putin, foi um dos principais oradores do Fórum de Beijing. Expôs a sua visão da ICR, segundo a qual não havia dúvidas de que se tratava de um autêntico caminho para o desenvolvimento. A iniciativa chinesa estava estreitamente em sintonia com o objectivo russo de estabelecer aquilo a que Putin chamou "a maior parceria eurasiática”. A cooperação entre os membros da União Económica da Eurásia e os projectos da ICR chinesa vai muito para lá dos benefícios económicos, disse o presidente russo. “A maior parceria eurasiática tem como objectivo promover um alinhamento mais próximo com os vários projectos de integração bilateral e multilateral que estão em andamento na Eurásia”, acrescentou Putin. 

As palavras do presidente Putin são palavras que funcionam como o pior dos pesadelos do Ocidente. Como sublinha Andre Vltchek, “nada aflige mais o Ocidente do que a perspectiva de perder o controlo absoluto sobre o mundo”. Os Estados Unidos tentam, há décadas, impedir o desenvolvimento de uma parceria política, estratégica e militar entre a Rússia e a China. Ainda não conseguiram perceber, porém, que as suas políticas e atitudes fornecem um grande impulso à cooperação sino-russa. A Iniciativa Cintura e Rota é a expressão mais clara da perda de controlo pelo Ocidente. É por isso que os Estados Unidos pressionam cada vez mais alguns dos seus aliados, como a Alemanha e a Austrália, a não participarem no gasoduto Nord Stream 2, no caso germânico, e a unir-se ao confronto com a China no Mar da China Meridional, no caso australiano.

O facto de 152 nações de todas as regiões do mundo se terem associado à Iniciativa Cintura e Rota demonstra que a maioria dos países do mundo encara este projecto como uma alternativa melhor do que a intimidação, a destruição financeira, as invasões e ocupações a que os Estados Unidos recorrem para manter a sua hegemonia e a sua visão do mundo. A razão está certamente do lado dessas nações. O Fórum da ICR de Beijing demonstrou amplamente que está em curso uma mudança tectónica na paisagem geopolítica do mundo. O grande perigo para a estabilidade do planeta é se o Ocidente, na sua luta para manter os privilégios de que desfrutou durante os últimos 400 anos,  não tiver clarividência suficiente para perseguir uma estratégia consentânea com a mudança da paisagem geopolítica do mundo, que é tão forte que se assemelha, numa imagem metafórica, aos movimentos tectónicos que estão na base da formação do continente Euro-asiático por via da chamada "deriva dos continentes".

Esta complexidade não impediu, porém, a propaganda chinesa de tentar transformar a estratégia conhecida como “One Belt, One Road” (OBOR) numa história para adormecer crianças. Literalmente. O nome dado à iniciativa não ajuda a esclarecimentos. One Belt: refere-se às ligações terrestres entre a China e a Ásia Central, replicando a Rota da Seda que durante séculos foi o eixo que dominou o comércio mundial entre o Extremo Oriente e a Europa. Foi a descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama, no final do século XV, que coincidiu com o seu declínio. One Road: trata-se da rota marítima através da qual a China pretende reforçar a sua ligação ao Sudeste Asiático e conectá-lo a África, onde a presença de empresas chinesas é já assinalável. 

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