terça-feira, 19 de novembro de 2019

O Livro de Anatomia Descritiva de Gray




Com 19 anos, tendo ido já às inspeções e apurado para todo o serviço militar, mudei de cidade para frequentar a Faculdade de Medicina. O país mantinha a guerra em África, e tudo indicava que estava para durar. Por isso, tendo a tropa à perna, não tinha tempo a perder. 



Naquele tempo a cidade granítica do Porto era soturna. Tive a sorte de ficar alojado numa residência universitária em Arca d’Água, de onde podia tomar os elétricos: 7; 7/; 7//; 8 – para ir até à baixa e frequentar as aulas de Física e Química que eram dadas na velha Universidade ao lado do café Piolho, e da UNICEPE (Cooperativa Livreira dos Estudantes do Porto), a livraria onde comprava os livros, tendo sido o Grays’s Anatomy, o 1º, um calhamaço em inglês que pesava para burro. 



Para me ambientar comecei estas rotinas de aluno de medicina um mês antes do início das aulas, orientado por dois bons amigos meus conterrâneos. E assim entrei na Faculdade de Medicina pela mão deles a fim de conhecer o Teatro Anatómico, onde mais tarde iria passar horas a dissecar peças de cadáver orientadas pelo Gray. A Faculdade de Medicina estava instalada numa parte do edifício do Hospital Escolar de São João, e a Anatomia ficava nas imediações do Anfiteatro Norte, onde assistíamos às aulas teóricas de Descritiva do Prof. Castro Correia. E no 2º ano, as aulas teóricas de Anatomia Topográfica eram dadas pelo Prof. Abel Tavares. Com este, o Tratado de eleição era o Testut.

Interrompo aqui a minha narrativa, para passar a falar de Henry Gray, o herói do meu primeiro ano do curso de medicina. Gray nasceu em Londres em 1827, onde viveu a maior parte da sua vida. Em 1842 entrou como estudante no Hospital de São Jorge em Londres. E aí se dedicou por autodidatismo a estudar anatomia fazendo dissecações meticulosas. Em 1852, com 25 anos apenas, foi eleito membro da Royal Society. Em 1858 publica a sua primeira edição do Livro de Anatomia, com 750 páginas e 363 figuras - Gray's Anatomy: Descriptive and Surgical. Para isso foi ajudado por um amigo chamado Henry Vandyke Carter, um grande desenhador e demonstrador de anatomia no Hospital de São Jorge


Gray e Carter passaram dezoito dezoito meses a trabalhar juntos em dissecações a fim de reunir o material necessário. Carter era um desenhador exímio e criou uma série de litografias, enquanto Gray compunha os textos que as acompanhavam. Foi a qualidade das ilustrações de Carter - grandes, claras e funcionais, com as legendas devidamente integradas nas imagens - que destacou esta das outras obras de anatomia. Algumas das imagens eram em tamanho natural. Carter fez os desenhos a partir dos quais as gravuras foram executadas. A excelência das ilustrações de Carter contribuiu muito para o sucesso inicial do livro. Uma segunda edição foi preparada por Gray e publicada em 1860. Gray viria a falecer de varíola a 13 de junho de 1861, com 34 anos. É mais um caso de génio prematuramente vindimado. Provavelmente se continuasse a viver por muitos anos, e a prosseguir a sua carreira de cirurgião, teria realizado outros feitos notáveis. Carter, que partiu para a Índia a fim de se dedicar à medicina tropical antes de a obra estar terminada, morreu em 1897. 

A cor foi introduzida nas ilustrações em 1887, com a 11ª edição. Embora já não contenha os textos nem as ilustrações originais, o conceito perdurou e o livro continua a ser uma obra importante. As edições foram sendo ao longo do tempo revistas e atualizadas de acordo com os progressos no conhecimento e no entendimento da anatomia. No mundo anglo-saxónico, este livro de anatomia continua a ser a bíblia dos iniciados em medicina. A última edição, a 41ª, foi publicada em setembro de 2015, com 1600 páginas, 2260 ilustrações e pesa cerca de cinco quilos. Foi editada pela professora Susan Standring, do King's College de Londres, que reviu o texto de acordo com as regiões do corpo e não os sistemas, que era a disposição original, para corresponder ao modo conceptual da medicina atual. A obra está também disponível online e é considerada a maior fonte individual de informação anatómica.



Uma coisa que me inquietou no início foi o contrassenso de entrar no mundo da medicina pelos mortos. Primeiro os ossos. Depois os músculos. A seguir os órgãos. E por fim os vasos sanguíneos. As paredes dos corredores e átrios estavam cobertas de armários envidraçados guardando grandes frascos com as maiores aberrações mergulhadas em líquido de formol. Nestas montras do Museu, exibiam-se o raro e o único, o bizarro e o monstruoso. Aberrações da natureza colecionados ao longo de muitos anos. Expositores de partes de pessoas que não são pessoas.

No Teatro Anatómico propriamente dito, o nosso Assistente diz-nos que ali se encontra a anatomia saudável. A anatomia doente só iríamos ver no terceiro ano, na Anatomia Patológica. Ossos perfeitos, guardados em caixas de madeira: dois fémures, uma caveira, um perónio. No teste capitular as perguntas feitas pelo Prof eram as mais estranhas, como a do perónio: "quando se atira o perónio para cima de uma mesa, ele roda até parar. Quando pára, há uma faceta que fica sempre virada para baixo, paralela à mesa. Qual é?" Na aula prática seguinte perguntámos ao nosso Monitor de banca qual era a resposta certa. Ele disse que dependia. Se fosse o perónio da coleção do Prof era uma; mas se fosse com outro perónio qualquer podia ser diferente.

Todo aquele que procura a ordem do mundo não deve ir para medicina. Era assim que entravamos na arte de curar, a ouvir nas palavras introdutórias das primeiras aulas umas certas frases, umas certas máximas, que nos iriam alumiar o caminho até ao fim do curso. Isto, é claro, se ainda assim não tropeçássemos, aqueles que não desistiriam ao fim do segundo ano. A saúde é das coisas mais instáveis que há.

À volta da banca de mármore com o cadáver em cima, se dúvidas tivéssemos, ficaríamos de vez desenganados. Somos feitos de nada. A partir daí, o postulado “um ser humano - uma personalidade”, já não parecia uma coisa tão evidente. Uma coisa nós não iríamos poder ver na Anatomia: o sangue, o milagroso líquido, mais ou menos cinco litros, conforme o tamanho do corpo, que dá vida à vida.

Sem comentários:

Enviar um comentário