Interrompo aqui a minha narrativa, para passar a falar de Henry Gray, o herói do meu primeiro ano do curso de medicina. Gray nasceu em Londres em 1827, onde viveu a maior parte da sua vida. Em 1842 entrou como estudante no Hospital de São Jorge em Londres. E aí se dedicou por autodidatismo a estudar anatomia fazendo dissecações meticulosas. Em 1852, com 25 anos apenas, foi eleito membro da Royal Society. Em 1858 publica a sua primeira edição do Livro de Anatomia, com 750 páginas e 363 figuras - Gray's Anatomy: Descriptive and Surgical. Para isso foi ajudado por um amigo chamado Henry Vandyke Carter, um grande desenhador e demonstrador de anatomia no Hospital de São Jorge.
Gray e Carter passaram dezoito dezoito meses a trabalhar juntos em dissecações a fim de reunir o material necessário. Carter era um desenhador exímio e criou uma série de litografias, enquanto Gray compunha os textos que as acompanhavam. Foi a qualidade das ilustrações de Carter - grandes, claras e funcionais, com as legendas devidamente integradas nas imagens - que destacou esta das outras obras de anatomia. Algumas das imagens eram em tamanho natural. Carter fez os desenhos a partir dos quais as gravuras foram executadas. A excelência das ilustrações de Carter contribuiu muito para o sucesso inicial do livro. Uma segunda edição foi preparada por Gray e publicada em 1860. Gray viria a falecer de varíola a 13 de junho de 1861, com 34 anos. É mais um caso de génio prematuramente vindimado. Provavelmente se continuasse a viver por muitos anos, e a prosseguir a sua carreira de cirurgião, teria realizado outros feitos notáveis. Carter, que partiu para a Índia a fim de se dedicar à medicina tropical antes de a obra estar terminada, morreu em 1897.
A cor foi introduzida nas ilustrações em 1887, com a 11ª edição. Embora já não contenha os textos nem as ilustrações originais, o conceito perdurou e o livro continua a ser uma obra importante. As edições foram sendo ao longo do tempo revistas e atualizadas de acordo com os progressos no conhecimento e no entendimento da anatomia. No mundo anglo-saxónico, este livro de anatomia continua a ser a bíblia dos iniciados em medicina. A última edição, a 41ª, foi publicada em setembro de 2015, com 1600 páginas, 2260 ilustrações e pesa cerca de cinco quilos. Foi editada pela professora Susan Standring, do King's College de Londres, que reviu o texto de acordo com as regiões do corpo e não os sistemas, que era a disposição original, para corresponder ao modo conceptual da medicina atual. A obra está também disponível online e é considerada a maior fonte individual de informação anatómica.
Uma coisa que me
inquietou no início foi o contrassenso de entrar no mundo da medicina pelos mortos.
Primeiro os ossos. Depois os músculos. A seguir os órgãos. E por fim os vasos
sanguíneos. As paredes dos
corredores e átrios estavam cobertas de armários envidraçados guardando grandes
frascos com as maiores aberrações mergulhadas em líquido de formol. Nestas
montras do Museu, exibiam-se o raro e o único, o bizarro e o monstruoso. Aberrações
da natureza colecionados ao longo de muitos anos. Expositores de partes de
pessoas que não são pessoas.
No Teatro Anatómico propriamente dito, o nosso Assistente diz-nos que ali se encontra a
anatomia saudável. A anatomia doente só iríamos ver no terceiro ano, na Anatomia
Patológica. Ossos perfeitos, guardados em caixas de madeira: dois fémures, uma
caveira, um perónio. No teste capitular as perguntas feitas pelo Prof eram as
mais estranhas, como a do perónio: "quando se atira o perónio para cima de uma
mesa, ele roda até parar. Quando pára, há uma faceta que fica sempre virada
para baixo, paralela à mesa. Qual é?" Na aula prática seguinte perguntámos ao nosso Monitor de
banca qual era a resposta certa. Ele disse que dependia. Se fosse o perónio da
coleção do Prof era uma; mas se fosse com outro perónio qualquer podia ser diferente.
Todo aquele que
procura a ordem do mundo não deve ir para medicina. Era assim que entravamos na
arte de curar, a ouvir nas palavras introdutórias das primeiras aulas umas
certas frases, umas certas máximas, que nos iriam alumiar o caminho até ao fim do curso. Isto, é claro, se ainda assim não tropeçássemos, aqueles que não desistiriam ao fim do segundo ano. A saúde é das coisas mais
instáveis que há.
À volta da banca
de mármore com o cadáver em cima, se dúvidas tivéssemos, ficaríamos de vez
desenganados. Somos feitos de nada. A partir daí, o postulado “um ser humano -
uma personalidade”, já não parecia uma coisa tão evidente. Uma coisa nós não
iríamos poder ver na Anatomia: o sangue, o milagroso líquido, mais ou menos
cinco litros, conforme o tamanho do corpo, que dá vida à vida.
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