sexta-feira, 1 de novembro de 2019

A partida do avô


O meu avô tornara-se um homem bastante espiritual e lamentava o sofrimento desnecessário que tínhamos de receber em troca por longevidade. Primeiro cegou; depois passou dez anos a pedir fritos a minha avó dizendo que não podia esperar pela morte. Até que um dia veio a tal pneumonia. Foi naquele dia em que tínhamos ido passar o fim de semana ao Marão, na casa da outra avó. Eram tempos em que as urgências e os imprevistos se comunicavam por telegrama. Telefones fixos pouca gente tinha. Ao voltarmos, ninguém em casa à chegada. Fomos encontrá-lo a oxigénio. Era novembro. O frio já cortava. O desejo dele era doar o corpo à ciência. Mas partindo antes da minha avó, esquece.
Quando morreu, foi preciso avisar o meu padrinho que andava em manobras por Santa Margarida. Foi através do posto da GNR, ali perto da casa do avô. O meu padrinho veio toda a viagem com o pé na tábua do “joaninha”, a mais de cem à hora, contara-me a minha avó uns dias depois. Não havia auto-estradas, mas eu acreditei. Logo que voltei à Escola, fartei-me de gabar o meu padrinho e o "joaninha".
Chegou a nossa casa com ar alucinado, com os olhos vermelhos marejados em lágrimas. O avô ainda estava na morgue do hospital. Apesar das fortes objeções da minha mãe, mas sabendo que eu adorava andar com ele no "joaninha", que só tinha duas portas e abriam ao contrário das dos outros carros, pegou em mim e levou-me com ele. Eu ainda era uma criança, com dez anos de idade. A minha mãe ficou furiosa com o irmão, porque eu ainda não tinha idade para andar por certos meios como as morgues. Assim, o meu padrinho despediu-se do pai e também me deixou vê-lo. Uns anos mais tarde, aos 39 anos, apesar de ser médico internista, e de ser useiro e vezeiro em fazer autópsias anátomo-clínicas aos doentes que me morriam sem eu saber porquê, não tive coragem de fazer o reconhecimento do cadáver do meu irmão, com 36 anos, na morgue do hospital após acidente de automóvel que lhe provocou morte instantânea, por volta da meia noite. Fui até lá, mas pedi que fosse o meu cunhado a cumprir essa tarefa normativa.


A partida do meu avô entristeceu-me, mas era uma tristeza pacífica, compassiva, nada semelhante ao choque trágico passadas três décadas com a morte do meu irmão. A minha mãe colocou-me na manga esquerda do casaco uma faixa preta. Durante três dias não fui à Escola. Então, para espantar maus pensamentos, resolvi ler o livro de História de uma ponta à outra. A partir daí apaixonei-me por História, até hoje, para sempre.
Uns dias depois, não me lembro quantos, sonhei com o meu avô. Eu sentado nos seus joelhos junto à lareira. Era inverno, jogávamos ao pinhão – par ou pernão. Atirávamos as pinhas para as brasas. Depois o meu avô ia buscá-las com uma tenaz, e já meio abertas extraíamos de dentro os pinhões, alguns ainda saltavam, aparelhados de asas.

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