sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Lembrando o Muro com Günter Grass





Tinha-me baldado aos trabalhos do 7º Congresso Internacional de Imunologia a decorrer no lado ocidental do Muro de Berlim. Naquele dia 3 de agosto de 1989, passei toda a manhã a tirar fotografias ao Muro, na zona de Reichstag. Do outro lado do Muro viam-se as Portas de Brandeburgo e o posto de vigia com um militar lá dentro armado. Nesta foto são evocados 8 alemães de leste que foram abatidos pelos guardas do Muro quando tentavam passar para o lado de cá.

Nos intervalos das conferências para o café, e à mesa das refeições, não se falava apenas de ciência e de ratos de laboratório, mas aqui e ali vinha à baila a aposta de que aquele Muro não ia ficar ali de pé por muito mais tempo. De resto, a SIDA ainda era a estrela do momento, onde milhares de cientistas, quatro deles galardoados com o Nobel, ainda andavam à nora para perceber o que diferenciava o VIH-1 do VIH-2 Português, tendo este sido isolado em vários pacientes africanos por investigadores portugueses. Quando se deparou em 1985, em amostras de doentes provenientes da Guiné-Bissau, com um vírus HIV com um comportamento diferente, a investigadora e professora catedrática da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, Odette Santos Ferreira, percebeu que aquilo tinha um significado extraordinário. No ano seguinte, publicava na revista Science, já acompanhada de uma equipa luso-francesa, a descoberta de um segundo vírus da SIDA, o VIH-2. 

Nas ruas de Berlim Ocidental víamos palavras escritas nos autocarros como: “Glasnost Perestroika”, mas poucos arriscariam apostar que dali a três meses aconteceria o que agora recordamos ainda fascinados passados trinta anos. Íamos ver as Portas de Brandeburgo, mas com o Muro e as torres de vigia de permeio. A fotografia seguinte foi tirada do cimo da Coluna da Vitória, símbolo da Unidade Alemã sob a direção da Prússia.



E esta outra foto foi tirada de dentro do autocarro já na parte final do percurso pelas ruas de Berlim Leste e depois de termos ido ao Museu Pergamón, que comporta lá dentro o fabuloso e original Altar de Pérgamo, E a grandiosa Porta de Ishtar, da Antiga Babilónia.



Na visita de autocarro ao lado de lá, fomos levados a este enorme monumento (na foto) em homenagem a 80 mil soldados soviéticos que morreram na Batalha de Berlim e deram as suas vidas para derrotar a Alemanha entre abril e maio de 1945, que fica dentro do Treptow Park, na região leste de Berlim, ainda existia o muro, e não me enfureci por ter estado hora e meia retido no Checkpoint Charlie sob um mise-en-scène de lupas, e guardas a meter carrinhos de mão com espelhos por baixo do autocarro, maioritariamente de japoneses, cujos passaportes de meia dúzia haviam sido retidos para beneplácito do chefe. Era a História da Guerra Fria ao vivo, por dentro, com laivos do “Tinker Tailor Soldier Spy”, de John le Carré, mas que já se sentia no ar um cheiro, sugestivo de que algo e muito extraordinário estava para a acontecer dali a nada. 



Só víamos nas largas avenidas de seis faixas os pequenos e frágeis Trabant; víamos velhotas sentadas às portas dos urinóis com um pratinho de moedas em cima de uma cadeira; víamos bustos de Lenine; e não víamos gente nas ruas a passear; nem montras de lojas; nem aparências de polícias; apenas turistas a pé dentro do Museu de Pergamón, e encafuados em autocarros em movimento pelas avenidas e Praças de Berlim Leste. Karl-Marx-Allee, uma grande avenida com casas estilo anos 50 em decadência, um café Moskau. 





Agora dou espaço a Günter Grass
para uma narrativa vista por gente de Berlim Leste:
Num dia de Inverno gelado, a que correspondia um céu azul aguado por sobre a cidade agora já não dividida, a 17 de dezembro, quando o até então partido mais importante estava reunido em congresso no pavilhão do Dynamo de Berlim, para se mascarar com um novo nome, num domingo, que levou para a rua gente de todas as idades. Lá apareceram eles cheios de energia para os lados da Leipziger Straße. As silhuetas de alto e magro e baixo e forte, fundiam-se num só chapéu de feltro escuro e sobretudos com uma mistura de lã cinzenta. Em breve tinham ultrapassado a Casa dos Ministérios, mais concretamente o seu lado norte. Ora gesticulava a metade alta, ora a atarracada. Um em amplas passadas, o outro em passinhos curtos. O bafo que deitavam dissipava-se em nuvenzinhas brancas a caminho da da Potzdamer Platz, onde o muro que servira de fronteira já fora demolido em toda a largura da rua, e se encontrava aberto à circulação nas duas faixas de rodagem. Uma passagem que só muito devagar deixava escoar o trânsito de uma metade da cidade para a outra, entre dois mundos, de Berlim para Berlim.
Atravessaram uma terra de ninguém com décadas de desertificação, agora transformada em grande superfície ávida de proprietários; desde logo começou a haver projetos, qual deles o mais ambicioso na fúria da construção. Moral: subiram os preços dos terrenos. O Ocidente com o Tiergarten passou a permitir-lhes liberdade de movimentos. Hoftaller com a pasta a abarrotar, além do termos e da caixa do pão, trazia sempre consigo um guarda-chuva miniatura. Quando chegaram ao Muro, sem vigilância, após uma breve hesitação, optaram pela brecha da direita, em direção à Porta de Brandeburgo. Metal sobre pedra: já ao longe tinham começado a ouvir picar com nitidez. Com temperaturas abaixo de zero um ruído daqueles propaga-se ao longe. Um renque de pica-muros colados uns aos outros, trabalhavam com luvas por causa do frio, esboroando a muralha que do lado ocidental era uma autêntica obra de arte do grafiti. Fora da zona de martelagem, por assim dizer no segundo elo da desmontagem levada a cabo pelo Ocidente, já se fazia negócio. Estendidos sobre panos ou jornais, ali estavam pedregulhos de respeito e cacos minúsculos. Peças de exposição que tinham o seu preço. Claro está, compradores não faltavam desde que lhes apresentassem um certificado datado - "Muro de Berlim autêntico" - juntamente com o souvenir. Por fim, Hoftaller disse: "Isto entristece-me, embora nós tivéssemos previsto este derrube, pelo menos desde o caso 'Sputnik'.

O caso 'Sputnik' deu-se a 18 de novembro de 1988, quando a edição alemã da revista soviética Sputnik foi eliminada da lista de publicações distribuídas por via postal. Entre outras razões, foi proibida por ter levantado em artigos publicados as questões que se prendiam com os crimes de Estaline.
A gente gostava de saber quem é que abriu o ferrolho. ora, quem é que passou a cábula ao camarada Schabowski? Quem é que lhe deu licença para fazer declarações? Frase após frase , vociferando... A partir de hoje ... Então Fonty, quem é que se lembrou da formulazinha mágica "Abre-te Sésamo"? Quem foi? Não admira que o Ocidente tivesse apanhado um choque, quando, a partir de 9 de novembro, dez mil, que digo eu, cem mil pessoas se passaram a pé e com os seus Trabis. Ficaram verdadeiramente perplexos ... gritavam uma loucura ... uma loucura!
Günter Schabowski foi membro e porta-voz da comissão política do Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA ou SED, iniciais de Sozialistische Einheitspartei Deutschlands), o partido único comunista durante a maior parte da existência da autodenominada República Democrática Alemã. Schabowski ganhou fama mundial em 9 de novembro de 1989 por propiciar acidentalmente a abertura da fronteira interna alemã, incluindo o Muro de Berlim. Schabowski erradamente anunciou, numa conferência de imprensa internacional em directo/ao vivo, que todas as leis para viajar ao estrangeiro tinham sido derrogadas. Às 18 horas, Günter Schabowski apresenta à comunicação social internacional as mais recentes decisões do regime, mas sem mencionar na altura a abertura das fronteiras. Em resposta a uma pergunta, Schabowski lê em voz alta um documento anunciando que vão ser entregues vistos para viajar ou emigrar para o estrangeiro "sem condições" prévias. "A partir de quando?", pergunta um jornalista, Günter Schabowski hesita e depois improvisa: "Do que eu sei agora, imediatamente" (Nach meiner Kenntnis... ist das sofort, unverzüglich). Como consequência, vários correspondentes estrangeiros começam a noticiar que os "alemães de Leste podem ir para o estrangeiro a partir de agora. Curiosamente, o erro foi apenas respeitante à data, já que o plano inicial era derrogar as leis (vistas já como insustentáveis devido às fugas em massa de alemães do leste para a República Federal Alemã via Hungria e Checoslováquia. Dezenas de milhares de alemães orientais acudiram imediatamente ao Muro de Berlim, onde os guardas fronteiriços se viram forçados a abrir as vias de acesso a Berlim Ocidental por causa da pressão popular, o que provocou a posterior queda e o desmantelamento do Muro. Nas posteriores purgas da velha guarda, Schabowski foi expulso rapidamente do SED. 
Andava muita gente a passear, turcos também. Jovens casais faziam-se fotografar como pano de fundo o Muro, sólido como que construído para a eternidade, para que pudessem mais tarde, muito mais tarde, recordar. Aqui se encontraram famílias separadas havia muito tempo. Viajantes vindos de longe ficavam espantados. Japoneses em grupos. Um bávaro com traje típico. A tudo isto sobrepunha-se o ruído dito dos pica-muros, que exerciam o seu ofício com obstinação, como se fossem pagos à peça. Um senhor de idade avançada, com óculos de segurança e orelheiras, lascava a preceito com um berbequim sem fio. E havia crianças a observar. E mulheres jovens ofereciam aos soldados flores, cigarros, laranjas, barras de chocolate, e naturalmente bananas. A partir daí a banana passou a ser comprada em grandes quantidades, tornando-se o símbolo da Reunificação, porque era coisa que não havia nos tempos da RDA. E milagre atrás de milagre, aqueles homens de uniforme, até há pouco tempo prontos a abrir fogo, deixavam-se presentear, até espumante ocidental aceitavam.
Dali até hoje, a Alemanha unificada tornou-se a maior economia da Europa. Em outubro, a taxa de desemprego voltou a descer ligeiramente, para 4,7%, apesar da conjuntura económica, o que riscou 30.000 alemães dos centros de emprego. Um comentador da revista “Der ­Spiegel” lembra que a história se escreve de forma diferente nos “dois paí­ses”, opondo o milagre económico da República Federal da Alemanha (RFA) ao desemprego em massa da RDA.

Um alemão, 45 anos, nascido em Leipzig mudou-se para Berlim Leste a tempo de assistir à queda do Muro. Sabe que a extrema-direita sempre foi um problema na RDA e só deixou de ser tabu a partir de 1990. A insatisfação com a política de portas abertas aos migrantes da chanceler é anterior à crise migratória de 2015. Os mais velhos votam AfD porque se sentem enganados ao perderem as garantias como pensionistas. Os mais novos estão a leste, não têm a noção de nada. Passadas três décadas, ainda é comum mencionarem-se as regiões da Alemanha, e comparar as situações de um lado e do outro.

Um alemão, 51 anos, cujo pai de origem turca chegou a Berlim em 1963 com o estatuto de “trabalhador convidado, ainda se lembra de vender aos turistas pedaços de cimento arrancados ao Muro com uma picareta. Hoje é dono de um café em Kreuzberg, e alimenta um portal noticioso em idioma turco sobre a comunidade imigrada, “para contar a verdade sobre os factos”. Os turcos foram dos primeiros afetados pela reunificação, por causa da concorrência no emprego.


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