sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Explicação e compreensão


Explicamos alguma coisa à nossa neta para que ela possa compreender. E o que ela compreendeu pode, por sua vez, explicar a outros. Assim, a compreensão e a explicação tendem a sobrepor-se e a transitar de uma para a outra. No entanto, a explicação parte do todo para as partes, fragmentando-o, desdobrando proposições e significados. Ao passo que a compreensão apreende fragmento a fragmento e constrói um todo, num processo de síntese em direção a um sentido.

Tem sido aceite que a explicação encontra o seu campo paradigmático nas ciências exatas, na medida em que vai buscar o seu suporte à matemática, que é por inerência um processo demonstrativo. Quando há factos externos a observar, colocam-se hipóteses a submeter à verificação empírica, que pode ter de passar por medições e cálculos numéricos, para a construção de teorias que podem culminar em leis da natureza, ou da física.

Em contraste, na mesma linha de pensamento, coloca-se a compreensão no campo das ciências humanas. Estas ciências têm a ver com experiências, mas são as experiências humanas diretamente sentidas, pessoais, subjetivas, que depois são traduzidas em linguagem, todo o tipo de linguagem, que não se reduz apenas à língua falada.

Há um terceiro tópico a acompanhar a compreensão que em bom rigor não se separa completamente dela, que é a interpretação, e que durante o século XX se desdobrou na hermenêutica e na semiótica, ocupando a mente de alguns filósofos como Heidegger, Charles Sanders Peirce ou Gadamer. Esta dicotomia, e os sucessivos desdobramentos, é simultaneamente epistemológica e ontológica. Opõe duas metodologias e dois mundos: o mundo vivido e o mundo exterior à nossa vivência. Também não podemos esquecer que no século XX, muito produtivo em correntes, houve outras correntes com uma forma muito diversa de pensamento e que na tradição anglo-americana se veio a designar por viragem da linguagem. Numa palavra, a linguagem como forma de vida, como sistema autossuficiente nas suas relações internas. A linguagem já não é entendida como uma mediação entre as mentes e as coisas. Constitui um mundo próprio, dentro do qual cada elemento se refere apenas a outros elementos do mesmo sistema, graças à ação recíproca das oposições e diferenças constitutivas do sistema.

Cabe introduzir aqui o problema da significação como sentido e referência, à qual se dedicaram não apenas os cientistas e filósofos da semiótica, mas também os filósofos, sociólogos, antropólogos e psicólogos do estruturalismo francês, que cunharam esta ciência de semântica, uma espécie de linguística. A semiótica, a ciência dos signos, é formal ou lógica, na medida em que se funda na dissociação da língua em partes constitutivas. A semântica, a ciência da frase, diz imediatamente respeito ao conceito do sentido. A distinção entre semântica e semiótica é a chave de todo o problema da linguagem.

O termo símbolo é usado num sentido muito geral e neutro. Compreende letras, palavras, textos, imagens, diagramas, mapas, modelos e muito mais. A diferença entre os sistemas simbólicos representacionais - como a pintura, e os não representacionais - como os linguísticos, reside essencialmente nas características formais desses sistemas. Um sistema de símbolos (não necessariamente formal) tanto compreende os símbolos como a sua interpretação. E uma linguagem é um sistema de símbolos de um tipo particular.

Temos, portanto, o locutor, as palavras e as frases. Significar é o que o locutor faz, mas é também o que a frase faz. A frase não é uma palavra mais ampla ou mais complexa. É uma nova entidade. Uma frase é um todo que não se reduz à soma das palavras que a constituem. É constituída por palavras, mas não é uma função derivativa das suas palavras. Uma frase compõe-se de signos, mas em si mesma não é um signo de maior tamanho. A significação da enunciação na aceção do conteúdo proposicional – é o lado objetivo deste significado. O significado do locutor (autorreferência da frase + dimensão ilocucionária do ato linguístico + intenção de reconhecimento pelo ouvinte) é o lado subjetivo da significação.

Há necessidade de esmiuçar aqui mais uma questão: a do sentido e da referência, que foi introduzida por Gottlob Frege. Na análise do discurso podemos identificar o “Quê” do discurso; e o “Acerca de Quê” do discurso. Assim, o “Quê” do discurso – é o seu sentido. O “Acerca de Quê” do discurso – é a sua referência. Dentro de um sistema linguístico, o nível das palavras – do léxico, a questão da referência não se coloca. A palavra é um signo, e os signos apenas se referem a outros signos dentro do sistema. A questão da referência passa a colocar-se ao nível da frase.

A referência a um objeto é uma condição necessária para a representação pictórica ou para a sua descrição, mas nenhum grau de semelhança é uma condição necessária ou suficiente para qualquer delas. Tanto a representação pictórica como a descrição participam na formação e caracterização do mundo, e interagem entre si e com a perceção e o conhecimento.

Porque estamos no mundo, porque somos afetados por situações e porque nos orientamos mediante a compreensão em tais situações, temos algo a dizer, temos a experiência para trazer à linguagem. Podemos ter uma ideia mais clara dos diferentes tipos de referência, indicados por Nelson Goodman: denotação
exemplificação; a denotação, por sua vez, pode ser por representação ou descrição; e a exemplificação pode ser literal ou metafórica. 


Nelson Goodman, enquanto nominalista, defendia que nem as coisas, nem as qualidades, nem as semelhanças entre as coisas têm qualquer fundamento ontológico exterior, sendo apenas o produto dos nossos hábitos linguísticos. Para o nominalista os universais constituem mundos mas não fazem parte do real, como a beleza ou a bondade. Nem fazem parte da realidade géneros ou classes de coisas. Só as coisas são reais. O ser humano é real. Já ser humano como uma pessoa é um conceito, uma abstração conceptual. Marcelo é real. Sócrates é real. Um nominalista opõe-se a Platão, o qual, segundo o nominalista, conferia realidade independente a meras abstrações conceptuais. Um nominalista navega com os predicados apenas nas águas linguísticas. Por exemplo, o predicado “sábio”, não denota algo do domínio extralinguístico, a saber, a existência real de uma propriedade no mundo que é a sabedoria. Assim, para um nominalista, como Nelson Goodman, só existem objetos ou coisas. Tudo o resto são etiquetas linguísticas. Etiquetas essas que, de forma puramente convencional, se aplicam a vários objetos, conforme os nossos hábitos linguísticos, e o modo como organizamos as coisas por forma a melhor servir os nossos interesses.

Nelson Goodman, no seu livro “Modos de fazer Mundos”, articulado com uma forma de construtivismo relativista, defende a tese de que não há um mundo que esteja à espera de ser descoberto por nós. Pelo contrário, como somos nós que construímos mundos, não temos nada para descobrir lá fora. Nós só podemos estabelecer relações com o mundo através de esquemas. O que conta é a relação. E esses esquemas não estão à nossa disposição na natureza, somos nós que os criamos. Para um nominalista esta é que é a última instância.

Apesar de não haver qualquer instância exterior que sirva de critério para a verdade, Nelson Goodman não aceita, contudo, o tipo de relativismo segundo o qual vale tudo e tudo se equivale. Defende que há um critério geral de aceitabilidade para as diferentes versões de mundos. E esse critério é encontrado por nós, pela força de um campo assente na experiência, no hábito, e na razão. Mas Goodman coloca no mesmo plano, em igualdade de peso, nesse campo do critério, a arte, a ciência e o senso comum. Portanto a perspetiva de Goodman nada tem a ver com o relativismo desconstrucionista pós-moderno. Para Goodman o conhecimento não é exclusivamente uma questão de crenças, como na definição platónica de conhecimento: crença verdadeira justificada. A perceção, a deteção de padrões, o reconhecimento e a classificação são também atividades cognitivas. E estas atividades não só afetam as nossas crenças como são, em si, cognitivamente relevantes. Assim, as artes não têm um estatuto cognitivo periférico ou inferior ao que encontramos nas ciências.

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