sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Cister e o nascimento de Portugal


A Ordem de Cister, e a Abadia de Cister nasceram em 1098 nos confins de uma floresta na Borgonha, sendo Roberto de Molesme um dos seus fundadores, juntamente com alguns companheiros monges. Roberto de Molesme [1028, Champanhe – 1110 Molesme], havia sido fundador do Mosteiro de Molesme em 1075, e deixara a congregação monástica de Cluny para retomar a observância da antiga regra beneditina, como reação ao relaxamento da Ordem de Cluny. 


O sexto abade de Cluny terá sido Hugo de Cluny, dito o Grande [1024-1109], desde 1049 até à sua morte. Foi uma das figuras mais marcantes do seu tempo. Serviu a nove Papas, foi conselheiro de imperadores, reis, bispos e superiores religiosos. Era descendente da família dos Duques da Borgonha, e, por conseguinte, parente próximo do Conde D. Henrique, pai de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal. Ele construiu a terceira igreja da Abadia em Cluny, a maior estrutura da Europa por muitos anos, com recursos doados por Fernando I do Reino de Leão e Castela, onde fundou priorados. A relação de Hugo com Fernando I e com Afonso VI, assim como a sua influência sobre o papa Urbano II, que tinha sido prior na Abadia de Cluny sob Hugo, fez dele um dos mais importantes e poderosos homens do final do século XI. 


Tudo isto se passa no Ducado da Borgonha, um dos estados mais importantes da Europa medieval, independente entre 880 e 1482. Não deve ser confundido com o Condado da Borgonha, outro território da França. O feudo do Duque da Borgonha correspondia aproximadamente à actual região da Borgonha que tem Dijon como capital. A dinastia inicial de duques da Borgonha extinguiu-se em 1026, com a morte sem descendentes do herdeiro da casa, o duque Otão-Guilherme. Mas o ducado já tinha sido anexado em 1004 pelo rei Henrique I de França, que se tornou duque em 1016. Em 1032 Henrique I concedeu o ducado ao seu irmão Roberto, que fundou o ramo capetiano de duques da Borgonha. 

Os borgonheses ou burguinhões eram um povo germânico oriundo da costa do Báltico, coabitando com suevos e vândalos desde o século III a.C. Eram celtas e tinham sacerdotes druidas. Ao serem empurrados pelos Hunos, acantonaram-se na região que recebeu o nome de "Borgonha", devido ao nome por que eram conhecidos. O que não foi pacífico, dado que mantiveram guerras constantes com os francos. A Borgonha, na época da origem de Portugal, era um reino independente que não pertencia ao reino da França.

Pois é dessa linha que descende Afonso Henriques. O último representante desta casa foi Filipe de Rouvres, que morreu de peste em 1361. A última duquesa da Borgonha independente foi Maria de Valois, que casou com Maximiliano I, imperador do Sacro Império Romano. No casamento estava estipulado que o segundo filho herdaria os domínios da mãe, mas Maria morreu num acidente de cavalo antes que isso acontecesse. Depois desta tragédia, o Ducado da Borgonha foi incorporado à França, enquanto o Condado da Borgonha (Franco Condado) e os territórios dos Países Baixos ficaram sob o controle dos Habsburgos.  

Convento de São João de Tarouca

Em Portugal, a Ordem de Cister ter-se-á estabelecido pela primeira vez, em São João de Tarouca, cerca de 1144. 

O Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça foi fundado de raiz como mosteiro cisterciense, ao passo que outros inicialmente fundados no século XII, migraram de outras observâncias.

Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça

Bernardo de Claraval [1090-1153], por sua vez, funda o Mosteiro e Abadia de Claraval em 1115, juntamente com alguns monges vindos da Abadia de Cister, com dinheiro e terreno oferecido por Hugo de Champanhe [1074-1125], um dos fundadores da Ordem do Templo (Os Templários), Conde de Champanhe de 1093 até à sua morte. Isso explica muita coisa. Primeiro, a figura de Bernardo de Claraval que está por trás a mexer os cordelinhos. O que explica o precoce desenvolvimento da Ordem do Templo em Portugal. São Bernardo havia tido um papel importante junto da Santa Sé no reconhecimento definitivo da independência de Portugal face a Castela. O que só veio, no entanto, a acontecer, preto no branco, em 1179 (26 anos após a morte de Bernardo, e seis anos antes da morte de Afonso Henriques).

Em 1128, a Ordem do Templo é oficializada no Concílio de Troyes com o inestimável apoio de São Bernardo, um homem com um carisma raro. Não admira que não tenham faltado interessados em entrar nesta ordem de cavalaria. Os Templários deverão ter chegado a Portugal em 1125 (três anos antes da sua oficialização pelo clero romano). Receberam as primeiras casas e propriedades em pleno Condado Portucalense. Receberam a doação da vila de Fonte Arcada da rainha D. Teresa. Em 1129, Hugues de Payens pede a São Bernardo que lhe escreva um sermão de exortação para facilitar o recrutamento de novos templários. Ora nesta altura, já D. Afonso Henriques é irmão da Ordem. Assim consta na carta de confirmação da doação de Soure, redigida em Guimarães e datada de 13 de março de 1129, nove meses depois da Batalha de São Mamede.

Em 1139 dá-se a célebre e mítica Batalha de Ourique, em que os monges cavaleiros participaram com grande valentia. É neste mesmo ano que o papa emite a bula Omne datum optimus que outorga grandes privilégios à Ordem do Templo. Fica isenta de dízima e com direito a nomear os seus próprios capelães e a construir igrejas.

É em 1140 que se dá o Recontro de Valdevez, onde hoje é Arcos de Valdevez, em que D. Afonso Henriques leva o rei de Castela e Leão de vencida. Este acontecimento abre o caminho para que em 1143 D. Afonso Henriques seja reconhecido em Zamora rei de Portugal na presença do cardeal legado do Papa Inocêncio II e do próprio Afonso VII, rei de Leão e Castela. É aqui que D. Afonso Henriques, para oficializar a sua independência face ao rei de Leão e Castela, passa a ser vassalo da Santa Sé, pelo que ficou comprometido a dar como tributo quatro onças de ouro por ano. Compromisso esse que D. Afonso Henriques nunca cumpriu.

O ano de 1146 é o ano do casamento de Afonso Henriques com Mafalda, filha do conde de Sabóia, o que reforça os laços com Borgonha. Mas é um tempo em que os mouros não dão sossego ao rei para os preparativos do enlace. Dois anos antes, os Templários de Soure, dada a sua grande inferioridade numérica, saem derrotados pelos mouros numa batalha perto de Santarém. Alguns morreram e os restantes foram encarcerados no Castelo de Santarém. Mas os mouros não esperam pela demora, no ano seguinte, um plano audaz e astucioso concretiza-se na conquista de Santarém, e os Templários podem libertar os irmãos que estavam presos. Este feito foi muito importante para D. Afonso Henriques, a ponto de dar todo o eclesiástico de Santarém aos Templários, e terrenos na zona de Alcobaça aos monges de Cister, na pessoa de Bernardo de Claraval, com o compromisso de aí edificar um Mosteiro. A sede dos Templários passa de Soure para Santarém, e aí constroem o seu primeiro templo de pedra em território português, a Igreja de Santa Maria da Alcáçova.


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Igreja de Santa Maria da Alcáçova

E é nesse mesmo ano, 1147, que os Templários acompanham Afonso Henriques para a tomada de Lisboa, que teria sido difícil caso se não tivesse dado o facto de receber apoio dos Cruzados vindos do norte da Europa, de passagem por Lisboa, antes de partirem para a Terra Santa. O cerco durou 17 semanas.

Para uma mais ampla perspetiva história, façamos aqui um parêntese para recuarmos até 711, quando se deu a invasão muçulmana na Península. Nessa altura os católicos eram infernais nas perseguições obsessivas às heresias. Por isso, o Islão foi uma benção, não apenas para os hereges cristãos, mas também para os judeus peninsulares que eram ferozmente perseguidos como deicidas, assassinos de Jesus. Acresce que nessa época os muçulmanos eram mais cultos, com um nível civilizacional muito superior ao dos cristãos católicos da Península. A influência do islamismo fez-se sentir mais no sul de Portugal do que no norte, incluindo a Galiza, onde dominava a heresia de Prisciliano. Sucede que na comunidade muçulmana, que veio para a Península, existiam também muitos mestres sufis, que eram o equivalente gnóstico do Islão. Ambas muito mais cultas que o cristianismo romano, ainda assim tiveram uma grande adesão popular. A sua origem no gnosticismo e filosofia neoplatónica, casavam bem com as tradições celtas próprias da vertente Atlântica. Praticavam o ideal da fraternidade humana, tinham reuniões noturnas e secretas e o seu ensinamento era iniciático, razão pela qual o voto de silêncio dos aderentes era total. As mulheres estavam completamente em pé de igualdade com os homens. Ora, "não havendo bela sem senão", é um facto que, no tempo da reconquista cristã, os abades de Cluny, vieram para a Península Ibérica com a missão de acabar com as crenças heréticas. E o alvo principal eram os moçárabes, os mais cultos. Mas as crenças religiosas não se mudam por decreto. 

Fechado o parêntese, deve dizer-se que o moçárabe era um cristão que fazia vida de árabe, mas conservava intacta a sua fé cristã. Por exemplo, o comércio marítimo à distância, era o género de vida típico dos árabes. E é aqui que se dá um facto curioso, pois muitos dos navegadores portugueses eram de origem moçárabeD. Afonso Henriques, anos depois da conquista de Lisboa aos mouros, em cumplicidade com muçárabes, mandou trazer as relíquias de S.Vicente da zona de Sagres para Lisboa. Hoje, por dentro da atual Igreja de S. Vicente de Fora, pode-se ver as ruínas do templo primitivo. Não deve ter sido por acaso que S. Vicente viria a tornar-se o protetor da navegação, tendo o seu culto sido muito importante durante o período dos Descobrimentos.

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