quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A família Wittgenstein e o 3º Reich




Ludwig Wittgenstein será, para metade dos filósofos mundiais vivos, o filósofo mais importante do século XX, em disputa com Martin Heidegger para a outra metade. Apesar de Karl Popper ter sido o maior rival de Wittgenstein, sobretudo na vertente analítica anglo-saxónica, ainda assim ficará em terceiro lugar.

Mas o que ocupa a crónica de hoje sobre Wittgenstein, não é a faceta filosófica de 
Ludwig, mas a envolvência familiar, pessoal e social na Áustria, como família de ascendência judaica no tempo de Hitler. A 13 de março de 1938 a Alemanha anuncia oficialmente a anexação da República da Áustria, tornando-a mais uma província do 3º Reich. E a 18 de março Ludwig Wittgenstein, estando em Cambridge, no Trinity Colege, escreve uma carta a Keynes pedindo-lhe a opinião, uma vez que passando a ser cidadão alemão, e segundo a lei alemã, seria um judeu alemão. Portanto, tornar-se britânico era agora imperativo. Na qualidade de judeu alemão, se fosse agora até à Áustria, poderia não conseguir voltar a sair de lá. Mas o mundo dá muitas voltas, e o Anschluss iria colocar Wittgenstein face a face com a realidade do judaísmo da sua família, obrigando-o a lidar com nazis de alta patente em Berlim. Ludwig Wittgenstein ficou muito preocupado com a vida das irmãs a viver em Viena, que podia estar em perigo quando Hitler avisou: “se os judeus conseguirem uma vez mais mergulhar as nações numa outra guerra mundial, a consequência será a aniquilação da raça judia na Europa”. 

 
     Ludwig Wittgenstein                                       Paul Wittgenstein

Paul Wittgenstein, irmão mais velho de Ludwig, famoso pianista de uma só mão (havia perdido o braço direito na linha da frente russa da Primeira Guerra Mundial ao serviço da Alemanha), por sua vez, ao longo desse convulso verão de 1938 decidiu emigrar. Paul tinha duas filhas pequenas, e receava que as filhas fossem retiradas e educadas pelo Estado nazi. A sua fortuna, a sua família e a sua carreira de pianista, tudo isso pesava no prato da balança. Mas as irmãs - Hermine e Helene - rejeitaram os seus apelos para que o acompanhassem. Em todo o caso Helene não podia abandonar o marido, Max Salzer, porque estava gravemente doente. Paul Wittgenstein viajou até Inglaterra para informar Ludwig da situação da família e pedir o seu conselho sobre o local em que deveria instalar-se. O irmão recomendou-lhe a América. Mas antes teve de passar pela Suiça, porque lhe foi imposta a taxa de emigração de 1,6 milhões de Reichsmarks. Saiu da Europa em abril de 1939. E foi de Nova Iorque que encetou diligências diplomáticas no sentido de negociar com o 3º Reich a salvação das irmãs em Viena, cujo destino final, se tudo corresse mal, poderia acabar em Auschwitz. A família Wittgenstein apoiada por três advogados, um deles incluído por sugestão dos participantes nazis, iniciaram-se as conversações com a Chancelaria do Reich, o Ministério do Interior, e o departamento de divisas estrangeiras do Reichsbank. A base do negócio consistia na transferência para o Reichsbank de uma grande porção de divisas estrangeiras da família. 


No outono de 1938, Hermine e Helene adquiriram uns passaportes falsos, jugoslavos, na esperança de que, enquanto cidadãs da Jugoslávia, pudessem partir mais facilmente caso fosse necessário. Mas quase de imediato a polícia caiu sobre os falsários, e as irmãs foram presas. O tempo que passaram na prisão foi curto, mas afetou a sua saúde psíquica, senhoras de temperamento reservado e porte aristocrático. Tanto mais que tinham formatado a sua personalidade nos princípios da filantropia.

Mas enquanto as negociações se prolongavam e enredavam no tempo, as ameaças iam crescendo. As viagens entre Nova Iorque-Berlim-Zurique multiplicavam-se, e as irmãs iam ficando com os nervos em franja. A dada altura Paul, começou a levantar objeções, e contratou ele próprio um advogado nova-iorquino para representar os seus interesses. Estava disposto a pagar ao 3º Reich tanto quanto fosse preciso para assegurar o futuro das suas irmãs, mas nada mais do que isso. O Reichsbank encontrara facilmente maneira de pressionar as irmãs em Viena, para que estas persuadissem Paul a aumentar a oferta. 

O que estava em causa do lado dos nazis, do 3º Reich, hoje todos sabemos o que foi. Mas quando falamos da fortuna da família Wittgenstein, já é assunto que pouca gente sabe que era das maiores fortunas da Áustria nessa época. Adianto já que se conseguiu um final feliz. Será um indício não apenas da quantidade de dinheiro que estava em jogo, mas também da complexidade que o Reichsbank teve de enfrentar para lhe poder deitar as mãos. Desde logo Ludwig Wittgenstein percebeu que não era assunto que se pudesse tratar com as autoridades provinciais de Östmark, que foi o nome por que passou a Áustria a ser tratada por Berlim. Era inequivocamente um assunto que só podia ser tratado ao mais alto nível em Berlim. Por isso decidiu ser ele a tomar as rédeas do conflito. 




Ludwig Wittgenstein apenas se tornou súbdito britânico a 12 de abril de 1939. Agora na posse de passaporte britânico, podia finalmente regressar a Viena e daí viajar até Berlim para tentar assegurar o futuro das suas irmãs. A 5 de julho de 1939 viajou até Berlim instalando-se no Grand Hotel Esplanade, perto de Potsdamer Platz. Por curiosidade e coincidência, faço aqui um parêntese para dizer que foi neste Hotel, com outra arquitetura evidentemente, que eu me instalei em agosto de 1989, para frequentar o Congresso Internacional de Imunologia, que nesse ano se realizou em Berlim Ocidental. 

Na realidade, a partir do momento em que o Reichsbank entrou em ação, os Wittgenstein passaram a negociar diretamente com as autoridades de Berlim. Foi o próprio Hitler quem tomou a decisão final sobre a situação dos Wittgenstein. Os números mostram como era difícil conseguir uma Befreiung. Em 1939 existiam 2100 pedidos de reclassificação racial: o Fürer somente deferiu doze.

O que disse Ludwig Wittgenstein naquela quinta-feira em Berlim, no Reichsbank, 6 de julho de 1939, não se sabe. Apenas a sua irmã Hermine dizia que se orgulhava do modo como ele se comportara, impressionando o chefe da divisão de divisas estrangeiras do Reichsbank, pela sua clareza e a sua precisão nos detalhes. Sabe-se que esteve no dia seguinte em Viena com esta irmã, e que duas semanas depois viajou no Queen Mary até Nova Iorque para se encontrar com o seu irmão, Paul, e o advogado. Sabe-se que ficou no hotel Lexington Avenue, perto do Rockefeller Center. Mais tarde, Ludwig Wittgenstein disse que a única pessoa de que gostara em Nova Iorque fora um rapazito italiano que engraxava sapatos no Central Park e que duas vezes cuidara dos seus. Pagou-lhe o dobro do preço que ele pedira.

A 10 de fevereiro de 1940, o chefe da Reichsstelle für Sippenforschung, Dr. Kurt Mayer, enviou uma carta à divisão de Viena do Partido Nazi, comunicando a decisão tomada sem quaisquer restrições, de que Hermann Wittgenstein, nascido em Korbach a 12 de setembro de 1802, deveria ser considerado como sendo de sangue alemão para efeitos das Leis de Nuremberga. A carta refere uma ordem do Führer e chanceler do Reich. Essa decisão estendia-se aos seus descendentes para que não lhes viesse a causar quaisquer outras dificuldades. Faltava pouco mais de um ano para que as deportações dos judeus austríacos tivessem início em pleno. As irmãs de Wittgenstein
Hermine e Helene - sobreviveram ao resto da guerra sem voltarem a ser importunadas. Fora, de facto, Ludwig Wittgenstein que dera o golpe de asa final em Nova Iorque quando se encontrou com o irmão para dar por encerrado o negócio. Paul Wittgenstein providenciou então o pagamento ao Reichsbank, nada mais, nada menos, que 1,7 toneladas de ouro – o equivalente a 2% das reservas de ouro austríacas de que Berlim se apoderara em 1939. 

Uma vez a salvo em Nova Iorque, Paul viria a revelar a sua dureza nas subsequentes negociações. A sua família integrou o grupo dos refugiados itinerantes, refugiando-se em Cuba antes de ser autorizada a juntar-se-lhe em 1941. 


Karl Wittgenstein

O pai de Ludwig Wittgenstein, Karl Wittgenstein, foi um dos empresários mais bem-sucedidos da monarquia do Danúbio. Karl veio de uma família alemã de origem judaica assimilada Meyer-Wittgenstrin, cujas raízes estão na pequena cidade de Laasphe na Renânia do Norte-Vestefália. Nasceu em 1847, sexto de onze filhos de Hermann Christian. Três anos depois, a família mudou-se para Vösendorf, na Baixa Áustria, onde nasceram os seus quatro irmãos mais novos, e para Viena em 1860. Aos onze anos, Karl Wittgenstein tentou, pela primeira vez, fugir de casa e, aos dezassete, deixou a escola após uma ameaça de repreensão: duvidara da imortalidade da alma em um ensaio. Em 1865, com um passaporte que havia comprado a um estudante de Viena com falta de dinheiro, viajou para a América. Levava consigo apenas um violino. Em Nova Iorque trabalhou como empregado e músico de bar, como professor (matemática, alemão, latim, grego e música, violino e trompa) e, finalmente, como timoneiro num barco do canal. Passados dois anos voltou para Viena. E então é a parir daqui que inicia a sua carreira na indústria siderúrgica como desenhador técnico no "laminador Teplitz" no norte da Boémia. Karl casou-se com Leopoldine Kallmus, em 1873, nascida em Viena e descendente de um talentoso pianista de origem judaica de Praga. O casal mudou-se para Teplitz por um ano, e a seguir para uma vila no distrito de Meidling. Depois disso, a família mudou-se para um imponente palácio, conhecido por “Palácio Wittgenstein”, no Alleegasse (hoje Argentinierstraße).

Em 1876 Karl Wittgenstein foi eleito para o Conselho Executivo, e em 1877 nomeado diretor. Poucos anos depois era o principal acionista. Em 1886, Karl Wittgenstein cedeu as suas fábricas de laminação de Teplitz à indústria siderúrgica de Praga, em troca de ações, Em 1889, Karl Wittgenstein finalmente funda a Poldihütte, uma empresa privada em Kladno. Ano do nascimento do nosso WittgensteinLudwig Joseph Johann Wittgenstein, o filho mais novo de uma prole de nove. Numa turbulência em que se viu investigado pelo governo austríaco, devido a práticas comerciais duvidosas, Karl Wittgenstein decidiu retirar-se de todos os seus cargos. Com 52 anos, viajou pelo mundo com a esposa, Leopoldine Kallmus. Além disso, ele vendeu toda a sua propriedade industrial, mas adquiriu em 1899 da Böhler AG a sua propriedade florestal de 5.000 hectares. Transferiu os recursos para a Suíça, Holanda e EUA, onde investiu em imóveis, ações e títulos. Portanto, a sua vasta fortuna sobreviveu à Primeira Guerra Mundial e à Grande Depressão. 



“Palácio Wittgenstein”

Após a morte de Karl Wittgenstein em 1913, houve várias mudanças de propriedade dentro da família. Desde o início dos anos 30, Hermine Wittgenstein (1874-1950), a mais velha das irmãs era a única proprietária do Palacete, por ser solteira. Durante a Segunda Guerra Mundial, o palácio magnificamente mobilado sobreviveu à guerra quase sem danos. Após a guerra, o palácio foi vendido ao Österreichische Länderbank, que o demoliu na década de 1950 para aí construir um edifício residencial moderno.

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