terça-feira, 5 de novembro de 2019

Dádivas vindas de fora do mundo




Há cerca de seis mil anos, ou um pouco menos, se escreveu a primeira palavra no mundo. Na cultura ocidental é consensual que tenha sido em Uruk, Mesopotâmia, no tempo dos Sumérios, gravada numa pequena placa de argila. Era um tempo em que os Sumérios dominavam toda a Mesopotâmia, e faziam trocas comerciais com outros povos, sendo os do Vale do Nilo e do Vale do Indo os mais importantes.

Espirais, losangos e triângulos, ziguezagues, abundam em quase todos os monumentos mais antigos que chegaram até nós. Não podemos saber exatamente o que moveu um grupo de cidadãos de Ur, liderados por Abraão, a encetar uma viagem pelo deserto rumo ao noroeste ladeando o rio Eufrates, provavelmente com o fito de chegar a Harran. Da Suméria, repositório civilizado do possível, sai um homem que não sabe para onde vai, mas mesmo assim avança para o desconhecido deserto e selvagem por força da palavra do seu deus. Esta migração parece um pouco estranha aos nossos olhos, na medida em que significou um retrocesso para vidas mais simples de um povo Semita de uma das cidades mais desenvolvidas daquele tempo. É tentador detestar Abraão por aquilo que fez na Experiência da Montanha.

Devemos aos arqueólogos do século XX muito do que hoje já se sabe acerca dos Sumérios, a primeira civilização do mundo ocidental com conhecimentos matemáticos bastante sofisticados. As histórias extraídas das tabuinhas - uma verdadeira obra literária como a  
Epopeia de Gilgamesh, a história de um herói lendário que provavelmente floresceu por volta de meados do III milénio a. C., como rei de Uruk, a cidade onde é verosímil a escrita ter sido inventada - não deixam de nos fascinar, dado o seu refinado bom gosto. A obra Suméria marcou profundamente a imaginação da cultura ocidental até aos nossos dias.

A língua Suméria, substituída pelo Acadiano ou Babilónio antigo no início do II milénio a.C., era a língua franca da Mesopotâmia. Os impérios semitas que lhe sucederam, apesar de a língua já ser diferente, a escrita cuneiforme manteve-se, bem como a mitologia e as crenças dos seus antecessores. A grande deusa Inanna dos Sumérios passou a chamar-se Ishtar em Acadiano, língua Semita. Há muitos indícios desta Epopeia na Bíblia Hebraica, sendo o Dilúvio um dos mais fortes. Assim como o Cântico dos Cânticos não é muito diferente da linguagem de amor que Ishtar emprega. Nenhuma figura no céu era mais importante que a Lua, a imagem celeste da vida eterna, que nascia, crescia, minguava e morria, tal como nós. E então voltava numa nova vida.

Uma vez que o tempo para os semitas Hebreus já não é Cíclico como era para os Sumérios, mas Linear e irreversível, a história pessoal é agora possível e a vida individual passa a ter valor. Ao princípio, este novo valor quase não é compreendido. Mas já nos primeiros relatos sobre Abraão e a sua família, encontramos a genealogia cuidadosamente composta de pessoas vulgares, algo que dificilmente teria ocorrido no tempo dos Sumérios, pois não atribuíam qualquer valor às memórias individuais. E sem o indivíduo, não há Tempo nem História.

Assim, já não é possível acreditar que todas as palavras da Bíblia foram inspiradas por Deus. 
Há registos escritos em hebraico datados do século X a.C. fiáveis. Que, em todo o caso, já são posteriores à instalação dos Israelitas em Canaã na sequência do Êxodo: a fuga do Egito sob a liderança de Moisés. Os fundamentalistas continuam a acreditar nisso, mas tal se deve ao facto de ignorarem a ciência. Embora as pessoas que escreveram tais palavras possam ter acreditado que elas eram inspiradas por Deus, nós não podemos. No primeiríssimo pensamento religioso o Cosmos é verdadeiramente cíclico. Os Judeus foram o primeiro povo a quebrar o círculo e fazer dele uma linha. Num mundo cíclico, não há princípio nem fim. Mas para nós, herdeiros do pensamento judaico, o mundo teve um começo, seja através das palavras de Deus escritas no Livro do Génesis, seja através da matemática de Einstein, que se inscreve na ciência contemporânea sob o nome de Big  Bang.  

As narrativas dos Patriarcas não chegam ao fim com a história de Jacob/Israel. Este acaba por ter, de duas esposas e duas concubinas, 12 filhos. Os nomes dos progenitores das Doze Tribos que lhes deram os mesmos nomes registados no Génesis são: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Issacar e Zabulão (de Lia, mulher de Jacob); José e Benjamim, o último dos filhos de Jacob (de Raquel, sua esposa); Dan e Netali (da concubina Bala) e Gad e Aser (da concubina Zelfa). Depois José divide-se nas tribos dos  seus filhos Efraim e Menassés. José vai para o Egito, e no seu novo cargo, trata de preparar o reino do faraó para os dias de fome que se anunciam, armazenando uma parte dos cereais do tempo da abundância. E a fama de José é enorme quando vem a fome. Os irmãos reconciliam-se com José e são chamados ao Egito forçados pela fome. O pai Jacob instala-se com a família no Egito, onde, rodeado de netos, morre feliz, concedendo a bênção especial aos filhos egípcios de José.

A Bíblia faz uma pausa na história e retoma-a no relato do Êxodo. O faraó deve ser da dinastia dos Hicsos, que governavam o Egito desde o tempo de Hamurabi. Mas Akhenáton já é pós-hicsos, um monoteísta que não tardou a ser revogado por um faraó dos Amon - Tutankhamon. O Êxodo pode nunca ter acontecido, pode ser apenas uma história inventada, como a Epopeia de Gilgamesh, por pastores nómadas com necessidade de entreter a noite. Claro que para nós, com as nossas ferramentas de análise textual, as inconsistências, os erros puros e simples se destacam de uma maneira que não seria possível em qualquer outra época. Isso não lhe retira o mérito de ter sido a primeira tentativa da humanidade de escrever a História, ainda que fosse a História da Identidade de um Povo. Uma narrativa que já não era cíclica, sem princípio nem fim, mas com princípio, meio e fim. O presente era apenas um momento de reverenciar o passado sem o adorar, para respeitar o futuro em tudo misteriosos e opaco. Os Dez Mandamentos são um código sem justificação, isto é, não se diz:"não mates outro homem, porque se fizeres isso sofres as consequências". Não matarás, e mais nada.  que acontece enquanto Moisés sobe à montanha para receber os Mandamentos, cá em baixo é um festim, uma orgia, sacrificam-se animais, e divertem-se com grande licenciosidade sexual, ainda à maneira da liturgia primitiva. O touro era a divindade corrente na Mesopotâmia, tal como no Egito. 

Aqui temos Moisés, prostrado por terra sob o intenso calor do deserto, tornado mais ardente ainda pelo fogo que brilha à sua frente, a ouvir uma voz que ninguém ouvia desde o tempo de Jacob, uma voz que o envia numa missão impossível. Moisés quer saber que É. e Moisés ouve a resposta: "Sou Aquele que Sou". Em que sistema de escrita os Dez Mandamentos terão sido escritos e quem seria capaz de lê-los são perguntas a que não é possível responder. O alfabeto foi uma invenção semita, provavelmente os fenícios. Um sistema muito melhor que o cuneiforme sumério ou o hieroglífico egípcio. Como Moisés vinha do Egito, é possível que fossem escritos em hieróglifos.

O Deuteronómio, quinto e último livro do Torá, termina com uma nota elegíaca, cheia dessa tristeza que todos os verdadeiros finais têm. Moisés está de pé no cume do monte Nebo, a contemplar o mar Morto e o Jordão do outro lado. É a Terra Prometida onde nunca entrará. Dan fica a norte; o Mediterrâneo a oeste; o deserto do Negueve a sul. "Moisés tinha cento e vinte anos quando morreu; os seus olhos não tinham perdido o brilho, o seu vigor não lhe fugira. YHWH, enterrou-o num vale da terra de Moab, em frente de Bet Pe'or, e homem nenhum até hoje conheceu o lugar da sua sepultura."

Tal como vem descrita no Livro dos Juízes, a seguir vem uma época de estabelecimento e consolidação, que durou dois séculos, durante o qual os agricultores/guerreiros israelitas se espalharam por Canaã, formando confederações tribais ao sabor das circunstâncias. Chefes militares locais também arbitravam disputas entre Israelitas, se bem que inimigos não lhes faltassem. Os mais aguerridos eram os Filisteus, identificados com os míticos Povos do Mar, que já têm vindo a ser invocados aqui em textos anteriores. Alguns deles é plausível que a sua origem remonte ao colapso de Micenas, que atravessando o Mediterrâneo para Levante, se tenham instalado onde hoje é Gaza. E pela mesma ordem de razão, serão os antepassados dos atuais Palestinianos.

Antes de David entrar propriamente em cena como rei, de facto os israelitas precisavam de um rei, há um episódio mal contado em que ele se desentende com Saul. Como David não se sente suficientemente seguro para regressar a casa, arranja emprego como cabo-de-guerra vassalo dos Filisteus, os seus arqui-inimigos, derrotando outras tribos tão incómodas para os Israelitas como para os Filisteus. Abreviando, David acabou por derrotar os Filisteus, tendo deixado a seu filho Salomão um reino que chegava quase às fronteiras do Egito a sul, da Síria a norte, e da Mesopotâmia a leste. Numa situação geográfica privilegiada entre três sociedades fabulosamente ricas, Salomão não precisava de fazer mais nada do que cobrar portagens. Israel estava no centro da mais importante rota comercial da sua época. Com os cofres a abarrotar, Salomão lançou-se num programa de construções como a terra de Canaã nunca vira. Salomão tornou-se assim o mais rico e o mais sábio de todos os reis da Terra. A Jerusalém afluiam arquitetos e desenhadores, gravadores e carpinteiros, operários especializados de todos os géneros, que mandavam importar troncos de cedros e zimbros do Líbano, ouro, prata, bronze e ferro de muitos lados, e panos tingidos de escarlate, carmesim e violeta comprados aos Fenícios. Terá governado Israel entre 966 e 926 a.C.

Vou dar agora um salto histórico de mais de três séculos para ver Nabucodonosor II, rei da Babilónia,em 598 a.C. entrar por Jerusalém dentro, arrasar e levar judeus cativos para Babilónia. Seguem-se 60 anos de cativeiro em Babilónia. Jeremias é o Profeta, e Sedecias o último rei de Jerusalém a quem os babilónios arrancam os olhos, e o levam a ferros para Babilónia, não sem antes o obrigarem a ver a execução dos seus filhos, e saber que haviam libertado Jeremias da prisão, que o havia mandado prender por traição contra o Estado. Nabucodonosor, dando a escolher a Jeremias ir para o cativeiro ou ficar para trás junto dos camponeses, Jeremias escolheu ficar, tendo acabado por ir para o Egito e morrer lá.

Sentavam-se à beira do Eufrates e do Tigre, os mesmo rios onde a sua história começara, sentavam-se e choravam, e meditavam na sua sorte. Os profetas sabiam-no agora, tinham dito a verdade, tinham sido os porta-vozes de Deus. Deus não queria sacrifícios, nem santuários naionais, nem sinais exteriores de piedade. Nada do poder político deles tinha qualquer importância para Ele. 

O período do exílio marca o início da diáspora hebraica, que ainda não chegou ao fim. Quando Ciro derrota os Babilónios em 538 e autoriza os Judeus a regressarem. É claro, as pessoas que regressaram a Sião não são as mesmas que de lá foram levadas tantos anos antes. Trazem consigo uma outra visão, mais cosmopolita, mais culta, mais livros escritos no exílio. É nesta altura que o Torá adquire a sua versão final. E assim começa a emergir uma nova literatura como os Provérbios e o Eclesiastes. E é quando surge Job a fazer as perguntas nunca antes feitas: "Por que razão deve o justo sofrer? Qual é o significado do sofrimento imerecido?"

Termino com o Cântico dos Cânticos, enquanto a resposta não vem, nunca virá. Conheçamos "a Sulamita" e o seu amante, um casal não ligado pelo matrimónio, que, por isso, os Padres da Igreja ao ficarem chocados com tal ousadia nas sagradas Escrituras, vieram dizer que era uma alegoria. Que claramente não é. É a celebração de uma relação, uma relação erótica, em que duas pessoas se enfrentam repetidamente uma à outra com escaldante admiração, e nós somos convidados a desfrutar a cena.

Festejai, amigos, e bebei
até estardes bêbados de amor!

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