sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O encantamento de Wittgenstein


Wittgenstein com Georg Henrik von Wright - 1950

Ninguém que entrasse em contacto com ele deixava de se sentir impressionado. Alguns sentiam-se repelidos. A maior parte sentia-se atraída ou fascinada. Poder-se-ia dizer que Wittgenstein evitava travar conhecimentos, mas precisava da amizade, e procurava-a. Ele era um amigo incomparável, mas muito exigente. Qualquer conversa com Wittgenstein era como viver o dia do juízo final. Ele era terrível. Tudo tinha de ser constantemente reexaminado, questionado e sujeito aos testes da veracidade. Isto não dizia respeito apenas à filosofia, mas a tudo na vida.                Georg Henrik von Wright

Georg Henrik von Wright [1916-2003] foi um filósofo finlandês que sucedeu a Ludwig Wittgenstein como professor da Universidade de Cambridge. Os escritos de von Wright enquadram-se nas grandes áreas da filosofia analítica e lógica. Era uma autoridade sobre Wittgenstein, tendo organizado para publicação as suas obras póstumas. Foi também figura líder da filosofia finlandesa de sua época, especializando-se em lógica, analítica, filosofia da linguagem, filosofia da mente, e no pensamento de Charles Sanders Peirce.

Peter Gray-Lucas, falando acerca de Ludwig Wittgenstein,  não era um admirador de Wittgenstein, e considerava-o um charlatão. No entanto, achava a sua personalidade irresistível. 
Era um mimo absolutamente maravilhoso. Falhou a sua vocação: deveria ter sido um artista de palco. No seu pitoresco austríaco conseguia imitar todo o tipo de sotaques, de estilos, de maneiras de falar. Era absolutamente fascinante. Recordo-me de uma noite levantar-se da sua cadeira, falando com uma voz esquisita, dizer: "o que é que nós dizemos se eu atravessar através desta parede?" Apertou os braços da minha cadeira com uma força tal que os nós dos dedos ficaram brancos. Pensei que ele ia mesmo atravessar a parede e que o teto ia desabar sobre nós. Creio que isso fazia parte do seu encanto: essa sua capacidade para evocar praticamente qualquer coisa.

Peter Gray-Lucas
Mesmo os amigos íntimos, como Peter Geach, e outros sobreviventes, testemunham o desassossego e a trepidação que sentiam quando lidavam com Wittgenstein. Geach recorda-se dos longos e intelectualmente extenuantes passeios pelos campos em torno de Cambridge que eram mais de trabalho do que de prazer: "Wittgenstein era brutalmente intolerante para com qualquer observação que ele julgasse desleixada ou pretensiosa."

Em 1910, enquanto jovem estudante de Engenharia, patenteou um novo motor de avião que antecipou o motor a jato e que foi reinventado e testado com sucesso em 1943. Em 1913 vai de férias com Pinsent para a Noruega. Entrega a Bertrand Russel as suas "Notas sobre Lógica". Mas em outubro o pai morre de cancro. Wittgenstein ansiava por solidão. Tinha o hábito de se retirar para zonas frias e inóspitas da Europa - Islândia, Noruega (onde ele próprio construiu a casa de madeira), e oeste da Irlanda. Wittgenstein produziu algum do seu melhor trabalho em isolamento. Mas, onde quer que estivesse, não conseguia interromper a torrente das ideias.

Em abril de 1914 começa a construir uma casa na Noruega. A 7 de agosto de 1914 alista-se como voluntário no exército austro-húngaro após a declaração de guerra contra a Rússia. Em 1915 fica ferido numa explosão do paiol de artilharia em Cracóvia. Em novembro de 1918 é capturado pelos italianos, ficando prisioneiro de guerra até agosto de 1919. Tendo terminado o Tractatus, é daqui que o envia para Bertrand Russel em Inglaterra, cuja publicação só se efetiva em 1922, quando finalmente um editor inglês aceita publica-lo em edição bilingue.

Durante a Primeira Grande Guerra tornou-se um combatente muito condecorado. A sua irmã Hermine lembra-se de os soldados se referirem a ele como "o dos Evangelhos". Transportava sempre consigo a edição Tolstoi dos Evangelhos. A guerra transformou-o. Quando regressou do cativeiro transferiu todo o seu dinheiro para Paul, Hermine e Helene. A irmã Margarete já tinha que lhe bastasse, tendo casado com um magnata americano Jerome Stonborough. Hermine lembra-se das agonias por que passou o irmão junto do notário, enquanto não se viu livre de toda a fortuna que por direito herdara do pai. Foi a partir desta época que passou a sofrer da síndroma psiquiátrica "obsessiva compulsiva". Adotou uma vida obsessivamente austera, combinada com a mania da limpeza e do asseio. O que está de acordo com a paixão pelo despojamento. Vida de eremita extremamente abnegada ao seu isolamento. 



Em 1926 empenhou-se na construção da casa de sua irmã Hermine, uma casa triunfantemente modernista de Kundmanngasse. O arquiteto do projeto era Paul Engelmann, um amigo de Wittgenstein. Ao interessar-se por todos os pormenores com o mais fino detalhe, foi um pesadelo para empreiteiros e construtores. Conta-se que um dia, o serralheiro lhe perguntou, por causa de uma fechadura, se um milímetro a mais ou a menos lhe fazia assim muita diferença. E antes mesmo que ele acabasse a frase, Ludwig com um "Sim!" de tal modo alto e enérgico que o homem deu um salto de susto. A casa já terminada, e pronta a ser limpa, ele entrou num salão e aninhou-se a olhar para o teto. Conclusão, era preciso levantar o teto mais três centímetros. E teve que ser. O seu instinto estava absolutamente correto e tinha de ser acatado.

AS histórias que se contam acerca de Wttgenstein nunca mais acabam, o que nos faz suspeitar que muitas delas, certamente, estão embrulhadas em papel de fantasia, contadas por aquelas pessoas que supostamente o conheceram pessoalmente. Uma boa parte delas apresenta-o como um místico do deserto, capaz de subsistir com pão, água da chuva e silêncio. Mas foi verdade que ele até 1927 esteve arredado da filosofia para ir dar aulas numa escola primária de província na Áustria. É no fim de 1927 que termina a sua travessia do deserto e se encontra finalmente com alguns membros do Círculo de Viena, onde pontuavam Moritz SchilickRudolf Carnap, um filósofo alemão que havia de influenciar muito o mundo Americano com o Positivismo Lógico, para onde emigrou em 1935. 

Schlick e o seu grupo ficaram impressionados com o seu livro, que propunha entre outras coisas uma teoria lógica dos símbolos e uma teoria pictórica da linguagem. Foi um tópico de discussão de vários encontros. Schlick havia contactado Wittgenstein pessoalmente em 1924, tendo elogiado perante o Círculo as virtudes do livro. 

Wittgenstein concordou em reunir-se com Schlick Waissmann para discutir o Tractatus e outras ideias. Através da influência de Schlick, Wittgenstein foi encorajado a considerar o retorno à Filosofia após uns 10 anos de ociosidade. Ironicamente, é em parte devido ao apoio de Schlick que Wittgensrein começou a escrever as reflexões que iriam fazer parte da segunda (e última) obra de Wittgenstein, as "Investigações filosóficas", que só foram publicadas depois da sua morte. As discussões de Schlick e Waismann com Wittgenstein continuaram até que o último achou que ideias germinais dele tinham sido usadas sem permissão por Carnap. Wittgenstein continuou as discussões por cartas a Schlick, mas a sua ligação com o Círculo de Viena terminou em 1932.



Moritz Schlick [1882-1936] era a figura central do Positivismo Lógico, e do Círculo de Viena, quem verdadeiramente organizava e coordenava as reuniões no Seminário de Matemática da Universidade de Viena. Em reuniões semanais procuravam reconceptualizar o Empirismo a partir das novas descobertas científicas, e demonstrar as falsidades da Metafísica. Estas reuniões acabaram quando Schlick foi assassinado por um dos seus alunos, Nelböck, que quando Schlick entrou no patamar de acesso às salas de Filosofia já ele lá estava à sua espera. Sacou de uma pistola automática e disparou quatro vezes à queima-roupa. Morte instantânea. Ainda hoje existe uma placa de bronze a assinalar o acontecimento. Em 1936 o anti-semitismo em Viena já estava ao rubro. 

Não faltaram artigos de jornal a manifestar o regozijo pela morte de Schlick e palavras de elogio e admiração para com o assassino. Era alegado que Schlick fora um dos principais representantes de uma nova e sinistra corrente de filosofia, uma corrente hostil à metafísica que era apoiada pelos mais básicos elementos da sociedade: judeus, comunistas e maçons. Uma filosofia que negava a existência de Deus, negava a existência do espírito, e via o homem como um mero agregado de células. Quando em 1929 o Círculo de Viena foi apresentado oficialmente, oito dos seus catorze membros eram judeus. E Leon Hirschfeld, um satirista, dava aos visitantes o o seguinte conselho: "Durante a sua estadia em Viena, tenha o cuidado de não se mostrar demasiado interessante ou original, caso contrário poderão, nas suas costas, começar subitamente a chamar-lhe judeu". Era uma cidade onde os intelectuais de descendência judaica desempenhavam um papel determinante, assimilando de forma dinâmica a sua compleição cosmopolita.

Portanto, Wittgenstein tinha regressado a Cambridge e
m janeiro de 1929 para se apresentar às provas de doutoramento. A tese era o seu livro, o Tractatatus Logico-Philosophicus, que não chegava a 20.000 palavras. Muito pouco para o padrão dessa época. Mas G.E. Moore, um dos seus examinadores escreveu: É minha opinião pessoal que a tese do Sr. Wittgenstein é uma obra de génio, ao nível dos padrões exigidos em Cambridge para o grau de doutor em Filosofia". Dez anos mais tarde, quando Moore se reformou, Wittgenstein foi nomeado para a cátedra que então ficava vaga. As concisas exclamações eram consideradas pelos seus alunos em Cambridge, e adeptos em Oxford, como se fossem as palavras de um oráculo. Aprender com Wittgenstein sem adotar as suas formas de expressão e termos favoritos, e sem mesmo imitar o seu tom de voz, o seu porte e os seus gestos, era quase impossível. Nesta altura já ele deixara de acreditar numa linguagem ideal e perfeita, como acreditava no tempo do Tractatus. A filosofia da linguagem de Wittgenstein evoluira drasticamente. Se as comunidades adotavam ou desenvolviam uma linguagem que continha contradições internas, muito bem, que assim fosse. 

Ao longo da sua vida, Wittgenstein publicou apenas três livros: O Tractatus; O glossário de alemão para crianças; e o texto de uma palestra promovida pela Sociedade Aristotélica e pela revista de filosofia "Mind". Tudo o resto foi compilado a título póstumo a partir das suas notas. Desde que regressara a Cambridge, Wittgenstein abandonara a maior parte das ideias contidas no Tractatus entre duas afirmações bem conhecidas: O mundo é tudo o que é o caso; Acerca daquilo de que se não pode falar, tem de se ficar em silêncio. Desenvolvera uma abordagem radicalmente nova. Para os filósofos, um dos grandes enigmas era a relação entre a linguagem e o mundo. Como é que uma série de letras quando colocadas  na ordem apropriada adquiriam um sentido? Mas esta visão da ligação entre a linguagem e o mundo levanta toda uma série de perguntas difíceis.

Um incidente recordado por Norman Maocolm envolve uma preleção apresentada em 1939 no Clube de Ciência Moral por G.E. Moore. Nessa preleção, Moore tentava provar que uma pessoa pode saber que possui uma sensação chamada dor - ponto de vista a que Wittgenstein se opunha, pensando que, mais do que impossível, ele era destituído de sentido. Wittgenstein não esteve no debate do Clube de Ciência Moral, mas quando ouviu falar da conferência, segundo Malcolm, "reagiu como um cavalo de guerra". Foi até casa de Moore. Na presença de Malcolm, de von Wright e de outros, Moore voltou a ler a sua conferência. "Wittgenstein atacou-o de imediato. Estava mais excitado do que alguma vez eu o vira em qualquer outro debate. Expelia fogo e falava com tremendo vigor e rapidez. A sua atuação não foi apenas impressionante, foi assustadora.

Durante o período da Guerra, Wittgenstein prestou o seu contributo no esforço de guerra na qualidade de assistente de laboratório de uma equipa médica do Guy's Hospital. Voltando a demonstrar uma vez mais o seu sentido da obrigação, embora tivesse já mais de cinquenta anos. Uma enfermeira declarou que nunca alguém produzira antes pasta de Lassar com tal qualidade. Terry Eagleton, autor de um argumento cinematográfico e de um romance sobre Wittgenstein, escreveu que ele reunia uma combinação virtuosa de monge, de místico e de mecânico. Eram célebres os seus enigmáticos aforismos, que se entregavam a um interminável processo de interpretação e reinterpretação. 

No Tractatatus Logico-Philosophicus, está a ligação entre a linguagem, o pensamento e o mundo. Em particular, Wittgenstein oferece uma teoria imagética do sentido. As proposições funcionavam como bonecos numa maquete em jogos de brincar para crianças. Mas a dada altura ele muda de ideias e passa a utilizar a metáfora da linguagem como instrumento. Se quisermos conhecer o sentido de um termo, não devemos perguntar o que é que ele designa: em vez disso, devemos examinar o modo como ele é efetivamente usado. Afinal a gramática era autónoma, ela tinha livre curso, e não estava acorrentada ao mundo dos objetos. A linguagem é pública, ela está implantada nas nossas práticas de vida. Qual era então, para Wittgenstein, o objetivo da filosofia? Muito simplesmente o de nos desembaraçarmos da confusão em que nós próprios nos envolvemos. E para explicar isto, outra metáfora: "mostrar à mosca o caminho para fora do frasco"

E foi em outubro de 1946 que se dá a cena do drama da sala H3 do King’s College de Cambridge. A célebre palestra de Popper, a convite do Clube de Ciência Moral de Cambridge, no qual Wittgenstein perdeu o controlo ao se confrontar de uma forma desagradável com Popper, um filósofo descendente de uma família judaica de Viena, tal como ele, e que havia acabado de chegar a Inglaterra vindo da Nova Zelândia onde esteve exilado no tempo da Guerra. Nesse ano havia-lhe sido concedida a cidadania britânica, dado que até aí ele era um cidadão austríaco. Wittgenstein concebia efetivamente a filosofia como uma espécie de terapia linguística, parecida com a abordagem de Sigmund Freud, um amigo das suas irmãs. As questões filosóficas são, pois, para Wittgenstein, enigmas, mais do que problemas. E foi esta questão dos problemas em filosofia, que tanto preocupava Popper, que tanto sobressaltou Wittgenstein. Wittgenstein dizia que as pessoas dizem uma e outra vez que a filosofia não progride verdadeiramente, que continuamos ocupados com os mesmos problemas filosóficos dos Gregos. Mas as pessoas que dizem isto não compreendem porque tem de ser assim. É assim porque a nossa linguagem permaneceu a mesma e continua a seduzir-nos de modo a fazermos as mesmas perguntas.

A dada altura do seu discurso introdutório Popper ataca o convite para que apresentasse "um qualquer enigma filosófico". Ora ele não podia aceitar falar partindo de um ponto do qual não concordava. Deverá ter sido aqui que Wittgenstein fez a sua primeira intervenção e se iniciou a batalha. Existiam problemas reais, defendeu Popper durante a reunião, e não apenas enigmas. Wittgenstein interveio e falou extensamente acerca doe enigmas e da não existência de problemas. Popper volta à carga dizendo que se Wittgenstein pretende recusar-se a aceitar a pergunta: "pode alguma coisa ser vermelha e verde em toda a sua extensão?", ele terá então de explicar com que fundamento o faz. Para diferenciarmos as proposições que são aceitáveis daquelas que o não são, precisamos de uma qualquer teoria do sentido. E isto tem de ser um problema, não um enigma. E Wittgenstein teria de provar o seu ponto de vista,e não reclamá-lo. Mas Wittgenstein a partir daqui ficou calado, não respondeu. Deve neste caso ter feito jus ao que postulou no seu Tractatus: assinalar o limite entre o sentido e o não-sentido, equivaleria a transgredir esse mesmo limite. "Acerca daquilo de que se não pode falar, tem de se ficar calado".

Em 1947 Wittgenstein resigna à sua cátedra em Cambridge, e vai viver por dois anos na Irlanda. Em 1950, depois de lhe ter sido diagnosticado um cancro na próstata, visita a Noruega pela última vez, e muda-se para a casa do Dr. Bevan, em Cambridge, casa onde morreu em 29 de abril de 1951. Ele ainda não conhecia a esposa do médico quando lá entrou pela primeira vez, logo após ter regressado do Estados Unidos. Ela observou: "Que sortudo que é por ter ido à América". Ele, de imediato, retorquiu com brusquidão: "O que é que quer dizer com sortudo?"

Quando a Sra. Bevan foi convidada para uma receção ao rei George VI e à rainha Elizabeth no Trinity College, Wittgenstein contraiu as feições logo que viu o casaco dela, pegou numa tesoura e retirou-lhe dois botões. Após essa operação, conta ela, ficou muito mais elegante. Não era uma questão de simples falta de maneiras, nem de um estilo lamentavelmente desastrado. Wittgenstein não habitava o mundo da conversa polida e da tagarelice social. A clareza do sentido era tudo, e ele acometia direito às pessoas, acontecesse o que acontecesse. Hermine obsevou que ele sofria de uma angústia quase patológica em qualquer ambiente que lhe fosse desagradável. Esta irmã que fora como uma mãe para ele, via nele alguém dotado de uma mente que conseguia penetrar o âmago das coisas.

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