quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Popper - Sociedade Aberta X Wittgenstein - Investigações Filosóficas




A única vez que Popper e Wittgenstein se encontraram – numa conferência proferida por Popper no King’s College de Cambridge, no Clube de Ciência Moral, sobre a existência ou não de problemas filosóficos genuínos – as coisas não correram bem. O incidente levanta ainda hoje discussões acaloradas. Wittgenstein era o presidente do Clube e, como é sabido, defendia veementemente que não havia quaisquer problemas filosóficos genuínos: era tudo uma questão de confusões linguísticas, quebra-cabeças sem qualquer substância. Popper discordava. Anos depois, na sua autobiografia, Popper narrou o acontecimento de forma algo parcial. Aquando da morte de Popper, o jornal britânico Times Literary Supplement descreve o incidente tal como Popper o apresenta – e estalou a controvérsia, em inúmeras cartas apaixonadas.



A uma distância de 48 anos desse encontro, quando passei por Cambridge vindo de um périplo pela Escócia, o King’s College continuava a ser um deslumbramento arquitetónico. Já não fui a tempo de entrar, tendo sido barrado por aquela senhora que está na fotografia à porta do colégio. O colégio dispõe de um horário para visitas. Mas valeu a pena demorar a ver os vitrais da Capela do King’s College, que no tempo da Guerra haviam sido guardados nas caves do Edifício Gibbs. Depois irrompemos por aqueles passeios relvados, por entre outros turistas aos molhos, para ver os rapazes passar lá em baixo de barco no canal.


Pois foi num aposento do Edifício Gibbs, na sala nº 3 da escadaria H, que na noite de sexta-feira de 25 de outubro de 1946, pelas 20:30, se reuniu o Clube de Ciência Moral de Cambridge para ouvir Popper. Praticamente no início da palestra, quando Popper faz a tal pergunta retórica: se existiam ou não genuínos problemas filosóficos, num tom que Wittgenstein interpretou como a provocá-lo, dado que Wittgenstein defendia a tese que não haviam, Wittgenstein começou a disparatar, no estilo habitual, acabando por abandonar a sala com estrondo.



A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos é a grande obra de Karl Popper, e uma das 100 melhores obras de não ficção da Lista dos Livros Modernos. Ainda hoje, 75 anos após a primeira edição, traduzida em mais de trinta línguas, conserva frescura e relevância nas nossas democracias, apesar de Nos Estados Unidos da América, e de certa forma no Reino Unido, não se falar de Popper nos programas universitários. O seu nome está agora um pouco esquecido. A tolerância, o relativismo, a recusa pós-moderna do empenhamento, o triunfo cultural da incerteza – tudo isso coloca aquele fogo de artifício, que aconteceu na sala H3 do Edifíci Gibbs em Cambridge, há 73 anos, nas estantes dos alfarrabistas. Até na London School of Economics, que mais do que qualquer outra instituição constituiu a base académica de Popper, não possua qualquer referência significativa a ele dedicada. Os ataques ao dogma e à inevitabilidade histórica, a ênfase sobre a tolerância e a humildade - tudo isso deixou de ser um desafio, tendo ficado de fora de qualquer discussão. Mas as obras de Popper têm de ser reabertas, e reaprendidos todos os seus argumentos, na medida em que o futuro não se alcança seguindo carris que foram instalados no passado. Que alguém possa ser identificado como um popperiano, ou um wittgensteiniano, constitui um testamento à originalidade das ideias destes dois filósofos, e à força das suas personalidades.

Em contraste, a reputação de Wittgenstein entre os filósofos do século XX, continuou a ser inultrapassável. Até que chegados ao fim dos anos 20 do século 21, o pensamento anda numa deriva sem norte nem sul, sem leste nem oeste. Em 1998, uma junta de filósofos profissionais atribuiu a Wittgenstein o quinto lugar na lista daqueles que produziram os mais importantes contributos para a sua área: à frente de Hume e Descartes, porém atrás de Aristóteles, Platão, Kant e Nietzsche. De resto, muitos outros dignos de citação, não passam de uns wittgensteinianos nas suas abordagens, como é o caso de Paul Feyerabend ou Thomas Kuhn: o primeiro pelo interesse pela linguagem da filosofia da ciência; o segundo por ter cunhado a frase "mudança de paradigma" para descrever aquilo que sucede sempre que um enquadramento científico para a interpretação do mundo é substituído por outro radicalmente novo.

Wittgenstein passou pelo mundo da filosofia como se fosse um furacão, mas na sua esteira tem-se verificado uma tranquilizadora regressão. Foi uma inspiração para o Círculo de Viena e para o Positivismo Lógico. Mas este, há muito que foi desacreditado. Teve uma importante influência sobre os filósofos da linguagem de Oxford, mas a sua abordagem passou de moda. Pode estabelecer-se uma linhagem entre Wittgenstein e os pós-modernos. Mas se ainda fosse vivo, ficaria aterrado. Mesmo assim, algumas ideias tornaram-se consensuais: "o sentido é o uso; as palavras têm o sentido que nós lhes atribuímos; as regras têm por base as nossas práticas". Efetivamente a sua loucura libertou-nos de certas confusões assentes na linguagem. Isso não significa que todos os problemas filosóficos se reduzam apenas ao uso da nossa linguagem.  Os problemas da consciência, ou a relação mente-corpo, não são coisas que se possam resolver pela análise linguística.

Populismo e tecnocracia, são como as duas grandes famílias ideológicas que substituíram as clássicas, que estabeleceram uma espécie de grande rotura nas nossas sociedades. Ora, o que sucede é que estamos a fazer os debates do passado com conceitos do passado. Este é o problema dos nossos dias. As receitas tradicionais servem de muito pouco. Os conceitos políticos como soberania, território, poder, representação, vêm de há cerca de 300 anos, quando as sociedades eram autoritárias, tinham espaços limitados e muito pouca mobilidade, sem tecnologias sofisticadas. Todo esse mundo desapareceu, as coisas mudaram e os conceitos políticos não evoluíram em conformidade. A verdadeira solução não será optar por dizer às pessoas o que elas querem ouvir ou fazer políticas racionais, mas sim tentar suturar esta brecha dicotómica entre a razão e a emoção, entre o cérebro e o coração.

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