terça-feira, 31 de março de 2020

O estranhamento do mundo



Como é que os homens entraram no mundo? Poderia ser o mote para um começo de conversa nestes azarados dias tão estranhos, em que nem sequer podemos dizer aquela frase: "Porque é que isto me acontece a mim?" Começo com a evocação de um filme de Woody AllenDesconstruindo Harry. Woody Allen é um bom tipo para estes dias.

No meio de uma cena de um filme dentro de um filme, que retrata a gravação de uma outra cena, o camara percebe que a imagem do ator que ele está a filmar não está nítida. Naturalmente, atribui o problema a um erro seu no controle do foco; não conseguindo corrigi-lo, começa a achar que o mecanismo de focagem está com defeito. Mas o mecanismo está perfeito, e como a imagem não melhora o camara pensa que talvez o problema seja com a lente. Será que ela está suja e por isso a imagem aparece desfocada? Mas a lente também está ótima, e perfeitamente limpa. Cria-se um alvoroço e todos de repente se dão conta de que o problema não tem nada a ver com a camara, e sim com o ator (Mel, representado por Robin Williams). É o próprio ator que está fora de foco! Ele está intrinsecamente desfocado, e toda a gente que olha para ele vê-o desfocado. Qualquer outra coisa é vista como imagem nítida, exceto Mel. O ator desse filme dentro de um filme foi acometido por uma doença que faz com que todos à sua volta, inclusive a sua perplexa família e o seu médico, o vejam desfocado. O que faz os espectadores rirem é o patente absurdo dessa ideia, a violação de uma propriedade fundamental da realidade.


Em situações normais, quando vemos o mundo lá fora desfocado, é porque algo está mal dentro do nosso cérebro, ou nos próprios olhos. Toda a gente percebe isso, não é preciso ser um especialista médico. Imprecisão e desfocagem da imagem não são propriedades dos objetos. Ou então, se estamos a fotografar ou a filmar, ou se estamos a ver com óculos, o problema está nas lentes. Portanto, imagens desfocadas de objetos sem termos mais nada interposto entre nós e os objetos, o problema está dentro de nós, e é detetado pelo nosso estado consciente. A cena do filme é bem-sucedida porque ninguém consegue focar Mel com nitidez. A desfocagem tornou-se uma propriedade externa de uma pessoa em vez de ser uma propriedade da nossa perceção.

No De Ludo Globi de Nicolau de Cusa – o texto foi escrito em Roma e concluído em outubro de 1463 – que consiste em dois diálogos, o primeiro entre Nicolau de Cusa e João IV, duque da Baviera; e o segundo diálogo é com o irmão do duque da Baviera. Nicolau de Cusa descansa depois de jogar um jogo de bola recém inventado. Nenhum jogo honesto está a faltar na capacidade de instruir – observa Cusa. Tendo comparado o movimento da bola desequilibrada, usada no jogo, com alma do homem acionada por Deus, ele passa a discutir o jogo que tinha estado a jogar: Pensei em inventar um jogo de conhecimento, considerei como deveria ser feito. Em seguida, eu o defini, fazendo como você vê. E depois diz: Se fosse possível alguém situar-se fora do mundo, este seria para ele tão invisível como um ponto inextenso.

"Porque é que isto me acontece a mim?" Um dia, teria aí uns cinco anos, fiz aquela pergunta inconveniente a minha mãe: “Quando morremos para onde vamos?” Hoje, depois de ter passado os olhos por muita metafísica, sei que foi nesse dia que o meu “Eu” entrou dentro de mim como um raio. Entrei em pânico com a experiência do Ser-aí. Eu era eu próprio, e que não sairia vivo de mim mesmo, isto é, do meu corpo. Passei a ter medo de morrer, de morrer. Mas, ainda bem que aquelas iluminações medrosas apenas apareciam esporadicamente.

"Que são os trabalhos de Hércules?" Enquanto os heróis monolíticos desenvolvem a sua força contra-atacando o mundo inicialmente hostil, os anacoretas permanecem na sua vida parada, como se estivessem num combate infernal de hesitação na decisão, no meio do deserto entregues à sua natureza adversa. Numa lenda do século VI, diz-se que João Clímaco [525 d.C. na Síria – 606 d.C. no Monte Sinai], psicagogo cristão ortodoxo, consumiu-se durante 40 anos no seu retiro desértico em Tola (cá está a mnemónica da quarentena), compartilhando a cela com um monstro marinho. Foi ontem, 30 de março, a festa deste santo. Muitas igrejas são dedicadas a ele, principalmente na Rússia. Foi um dos mais eruditos académicos da igreja. Aos 75 anos de idade, os monges do Sinai convenceram-no a que se tornasse o seu hegúmeno (nome que se dava a um abade à frente de um mosteiro grego ou russo).

Os sujeitos do presente, quer sejam heróis ou hipocondríacos, compartilham as suas quatro paredes com um monstro selvagem, que é o seu cérebro desenfreado e prenhe de futuro.

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