segunda-feira, 23 de março de 2020

De Marco Aurélio a Montaigne - Sobre a idade e a aprendizagem


Marco Aurélio [121-180 - 59] foi o último dos cinco melhores imperadores, e é lembrado como um governante bem-sucedido e culto; dedicou-se à filosofia, especialmente à corrente filosófica do estoicismo, e escreveu uma obra que ainda continua a ser lida nos dias de hoje - Meditações.
31. Ama, admite o pequeno ofício que aprendeste, e passa o resto da tua vida como uma pessoa que confiou, com toda a sua alma, todas as suas coisas aos deuses, sem tornar-te um tirano nem um escravo de nenhum homem. 
32. Pensa, por exemplo, nos tempos de Vespasiano. Verás sempre as mesmas coisas: pessoas que se casam, criam seus filhos, adoecem, morrem, promovem a guerra, celebram festas, comerciam, cultivam a terra, adulam, são orgulhosos, receiam, conspiram, desejam que alguns morram, murmuram contra a situação presente, amam, aprisionam, ambicionam os consulados e os poderes reais... Pois bem, a vida daqueles já não existe em parte alguma. Lembra-te, agora, dos tempos de Trajano: encontraremos idêntica situação, também aquele modo de viver desapareceu. Da mesma forma, contempla e dirige o olhar ao resto de documentos dos tempos e de todas as nações, quantos, depois de tantos esforços, caíram pouco depois e se desintegraram em seus elementos. Especialmente, deves refletir sobre aquelas pessoas que tu mesmo viste esforçarem-se em vão, e que se esqueceram de fazer o que estava de acordo com a sua constituição: perseverar sem descanso nisso e contentar-se com isso. De tal modo, é necessário considerar que a atenção adequada a cada ação tem o seu próprio valor e proporção. Pois, assim, não desanimarás, a não ser que ocupes mais tempo da aprendizagem em tarefas bastante fúteis.
Montaigne [1533-1592 - 59] publicou os dois primeiros livros de Os Ensaios quando tinha 47 anos. Aqui ele olha para trás, para a sua juventude, e vê que os trinta anos são o divisor de águas entre o vigor e o declínio. Por volta dos 47 anos tem início o sofrimento das cólicas renais que o atormentarão até à morte. Diz que chegou a uma idade a que poucos chegaram e renuncia à esperança de viver oitenta anos, o que expressava no Livro 1, XIX. A idade em que escreve estes ensaios é vivida como uma perda, que em contraste confere à juventude prestígio e brilho, ilustrados nas figuras de Augusto, Cipião e Aníbal. Montaigne se insurge, assim, contra o facto de que desde a Antiguidade as leis confiscam os direitos dos jovens. A seu ver, eles devem entrar muito cedo nos negócios. A palavra chave, no início e no fim deste ensaio, e portanto do Livro 1 é: aprendizagem. 
Aos trinta anos a aprendizagem de um homem sábio deveria, sem a menor dúvida, estar terminada. Mas para aqueles que fazem bom uso do seu tempo, poderão o conhecimento e a experiência crescer com os anos? Não posso aceitar o modo como estabelecemos a duração da nossa vida. Vejo que os sábios a encurtam muito em relação à opinião comum. Como - diz o jovem Catão aos que queriam impedi-lo de se matar - estarei ainda na idade em que possam me repreender por abandonar a vida cedo demais? No entanto, tinha apenas 48 anos. Estimava essa idade bem madura e bem avançada, considerando que poucos homens a atingem. E os que se iludem com não sei qual “curso”, a que chamam de “natural”, que promete alguns anos mais, bem poderiam fazê-lo se tivessem o privilégio de ser isentados de um número tão grande de infortúnios de que cada um de nós é alvo por natural sujeição e que podem interromper esse curso que prometem a si mesmos. 
Que loucura é esperar morrer de um enfraquecimento de forças trazido pela velhice extrema e propor-se esse objetivo como termo de nossa vida, visto que é o tipo de morte mais rara de todas e a menos usual! Nós a chamamos de única natural, como se fosse antinatural ver um homem quebrar o pescoço numa queda, afogar-se num naufrágio, deixar-se surpreender pela peste ou por uma pleurisia, como se nossa reles condição não apresentasse esses inconvenientes a todos. Não nos iludamos com essas belas palavras; devemos talvez chamar de natural o que é genérico, comum e universal. Morrer de velhice é uma morte rara, singular e extraordinária, e portanto menos natural que as outras; é a última e extrema maneira de morrer: mais está afastada de nós, menos é esperável; é até mesmo o limite além do qual não iremos e que a lei da natureza prescreveu para não ser ultrapassado; mas é um privilégio dela nos fazer durar até lá. É uma isenção que ela dá por favor particular, a um só no espaço de dois ou três séculos, desobrigando-o dos reveses e das dificuldades que ela mesma jogou nessa longa estrada.
Assim, a minha opinião é que devemos considerar que a idade a que chegamos é uma idade a que poucas pessoas chegam. Posto que no ritmo normal os homens não chegam até aqui, é sinal de que estamos bem à frente deles. E já que ultrapassamos os limites habituais, que são a verdadeira medida de nossa vida, não devemos esperar ir além; tendo escapado de tantas ocasiões de morrer em que vemos todo mundo tropeçar, devemos reconhecer que uma sorte extraordinária como esta que nos mantém e está além da norma usual não deve durar muito. É um defeito das próprias leis apresentar esta ideia falsa: elas não querem que um homem seja capaz de gerir seus bens antes que tenha 25 anos, que mal conservará até aí a gestão de sua vida. Augusto cortou cinco anos nos antigos decretos romanos e declarou que bastava, para os que assumiam um cargo de juiz, ter trinta anos. Sérvio Túlio dispensou das corveias da guerra os cavaleiros que tinham passado dos 47 anos. Augusto reduziu essa idade para 45. Não me parece haver muita razão em mandar-se os homens para a aposentadoria antes dos 55 ou sessenta anos. Eu seria de opinião de que se estendesse nosso período de atividade e ocupação tanto quanto possível, no interesse público. Mas considero que o erro está do outro lado: não começarmos a trabalhar mais cedo. Aquele que foi juiz universal do mundo aos dezanove anos quer que um homem tenha trinta para poder decidir sobre o lugar de uma calha. 
Quanto a mim, considero que as nossas almas tornaram os vinte anos o que devem ser, e que aí prometem tudo o que poderão. Jamais uma alma, que não tenha dado nessa idade garantia evidente de sua força, deu prova disso desde então. As qualidades e virtudes naturais produzem nesse prazo, ou nunca, o que têm de vigoroso e belo. Si l’espine nou pique quand nai, A pene que pique jamai, [Se o espinho não espeta quando nasce, dificilmente um dia espetará] dizem no Dauphiné. De todas as belas ações humanas que chegaram ao meu conhecimento, de qualquer tipo que sejam, eu pensaria que, ao designar as que foram produzidas tanto nos séculos antigos como no nosso, a maioria foi antes da idade de trinta anos e não depois. E, sim, frequentemente na vida dos mesmos homens. Não posso dizer isso, com toda a certeza, das de Aníbal e de Cipião, seu grande adversário? A boa metade de suas vidas eles viveram da glória adquirida na juventude: desde então, foram grandes homens em comparação com todos os outros, mas de modo nenhum se comparados consigo mesmos.
Quanto a mim, dou por certo que, desde essa idade, tanto meu espírito como meu corpo mais diminuíram que aumentaram e mais recuaram que avançaram. É possível que para os que empregam bem o seu tempo, o saber e a experiência cresçam com a vida, mas a vivacidade, a presteza, a firmeza e outras qualidades bem mais nossas, mais importantes e essenciais, fraquejam e amolecem. Ubi iam validis quassatum est viribus aevi Corpus, et obtusis ceciderunt viribus artus, Claudicat ingenium, delirat linguaque mensque [Uma vez que as rudes forças do tempo abalaram nosso corpo, que nossos membros se prostraram, suas forças gastaram-se, nosso espírito claudica, nossa língua e nossa razão disparatam]. Ora é o corpo que primeiro se rende à velhice, ora também é a alma. E vi muitos que ficaram com o cérebro enfraquecido antes do estômago e das pernas; e como é um mal pouco sensível para quem dele sofre, e difícil de ver, é mais perigoso ainda. Por isso mesmo, queixo-me das leis, não porque nos mantêm tarde demais no trabalho, mas porque nele nos colocam muito tarde. Parece-me que, considerando a fraqueza de nossa vida, e a quantos escolhos costumeiros e naturais está exposta, não se deveria dar tão grande importância ao crescimento, aos jogos infantis e à aprendizagem. 

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