quinta-feira, 12 de março de 2020

Sobre o estado da arte da medicina em tempos de pandemia por um novo coronavírus


À hora que escrevo estas meditações, estão confirmados 78 casos infetados com o coronavírus COVID-19, e mais de 4.600 mortos em todo mundo. Passam pouco mais de dois meses após o epicentro do surto ter sido identificado na China. 


Os vírus só começaram a ser conhecidos depois de 1898, quando o microbiologista Martinus Beijerinck chamou “fluido vivo contagioso” a uma solução filtrada que devia conter um novo agente infecioso que se reproduzia apenas em células a dividirem-se. Beijerinck introduziu o termo 'vírus' para indicar que o agente causal da doença do mosaico do tabaco não tinha uma natureza bacteriana, e sua descoberta é considerada como o marco inicial da virologia. A teoria do estado líquido do agente foi questionada nos 25 anos seguintes. Wendell Meredith Stanley, identificou finalmente em 1939 o vírus do mosaico do tabaco por microfotografia eletrónica.

A epidemiologia moderna já havia nascido em 1854, quando John Snow demonstrou a transmissão da cólera pela água contaminada de uma fonte localizada num bairro de Londres. Todavia, a aplicação do método estatístico à medicina tem a sua génese nos trabalhos de Pierre Fermat (1601-1665) e Blaise Pascal (1623-1662). 

No dia 28 de fevereiro de 2020 o New England Journal of Medicine, uma das publicações médicas mais prestigiadas do mundo, publicou um artigo de Bill Gates, em resposta ao Covid-19. É de referir que a Fundação Bill e Melinda Gates é uma afiliada da editora. Aqui fica uma parte desse artigo sumariamente traduzido:
««A Fundação Bill e Melinda Gates comprometeu recursos substanciais nos últimos anos para ajudar o mundo a se preparar para cenários de pandemia como este.Agora também enfrentamos uma crise imediata. Há duas razões pelas quais o Covid-19 é uma ameaça. Primeiro, pode matar adultos saudáveis, além de idosos com problemas de saúde existentes. O Covid-19 é transmitido com bastante eficiência. A pessoa média infetada espalha a doença para duas ou três outras - uma taxa exponencial de aumento. Também há fortes evidências de que ele pode ser transmitido por pessoas que estão levemente doentes ou mesmo pré-sintomáticas. Isso significa que o Covid-19 será muito mais difícil de conter do que a síndrome respiratória do Médio Oriente ou a síndrome respiratória aguda grave (SARS), que se espalharam com muito menos eficiência e apenas por pessoas sintomáticas.
Ao ajudar os países da África e do Sul da Ásia a se prepararem agora, podemos salvar vidas e retardar a circulação global do vírus. (Uma parte substancial do compromisso que Melinda e eu recentemente assumimos para ajudar a impulsionar a resposta global ao Covid-19 - que pode totalizar até US $ 100 milhões. Também precisamos investir na vigilância de doenças, incluindo um banco de dados de casos que é instantaneamente acessível a organizações relevantes e regras que exigem que os países compartilhem informações. Os governos devem ter acesso a listas de pessoal treinado, de líderes locais a especialistas globais, que estão preparados para lidar com uma epidemia imediatamente, bem como listas de suprimentos a serem armazenados ou redirecionados em caso de emergência.
Além disso, precisamos construir um sistema que possa desenvolver vacinas e antivirais seguros e eficazes, aprová-los e fornecer biliões de doses dentro de alguns meses após a descoberta de um patógeno em movimento rápido. Esse é um desafio difícil que apresenta obstáculos técnicos, diplomáticos e orçamentários, além de exigir uma parceria entre os setores público e privado. Mas todos esses obstáculos podem ser superados.
Um dos principais desafios técnicos das vacinas é melhorar as formas antigas de fabricar proteínas, que são muito lentas para responder a uma epidemia. Precisamos desenvolver plataformas que sejam previsivelmente seguras, para que as revisões regulatórias possam acontecer rapidamente, e isso facilite aos fabricantes a produção de doses a baixo custo em grande escala. Para antivirais, precisamos de um sistema organizado para rastrear os tratamentos existentes e as moléculas candidatas de maneira rápida e padronizada.
Outro desafio técnico envolve construções baseadas em ácidos nucleicos. Essas construções podem ser produzidas poucas horas após o genoma de um vírus ter sido sequenciado; agora precisamos encontrar maneiras de produzi-los em larga escala.
Além dessas soluções técnicas, precisaremos de esforços diplomáticos para impulsionar a colaboração internacional e o compartilhamento de dados. O desenvolvimento de antivirais e vacinas envolve enormes ensaios clínicos e acordos de licenciamento que atravessariam as fronteiras nacionais. Devemos aproveitar ao máximo os fóruns globais que podem ajudar a obter consenso sobre prioridades de pesquisa e protocolos de ensaios, para que candidatos promissores a vacinas e antivirais possam avançar rapidamente por esse processo. Essas plataformas incluem o Blueprint da P&D da Organização Mundial da Saúde, a rede de testes do Consórcio Internacional para Respirações Agudas Graves e Emergentes e a Pesquisa Global de Colaboração para a Preparação de Doenças Infeciosas. O objetivo deste trabalho deve ser obter resultados conclusivos de ensaios clínicos e aprovação regulatória em 3 meses ou menos, sem comprometer a segurança dos pacientes.
Depois, há a questão do financiamento. Os orçamentos para esses esforços precisam ser expandidos várias vezes. São necessários biliões de dólares a mais para concluir os ensaios da fase 3 e garantir a aprovação regulatória das vacinas contra o coronavírus, e ainda serão necessários mais fundos para melhorar a vigilância e a resposta às doenças.
O financiamento do governo é necessário porque os produtos de pandemia são investimentos extraordinariamente de alto risco; o financiamento público minimizará o risco para as empresas farmacêuticas e fará com que elas entrem nos dois pés. Além disso, os governos e outros doadores precisarão financiar - como um bem público global - instalações de fabricação que possam gerar um suprimento de vacina em questão de semanas. Essas instalações podem fabricar vacinas para programas de imunização de rotina em horários normais e ser rapidamente reformadas para produção durante uma pandemia. Por fim, os governos precisarão financiar a compra e distribuição de vacinas para as populações que precisam delas.
Biliões de dólares em esforços contra pandemias é muito dinheiro. Mas essa é a escala de investimento necessária para resolver o problema. Finalmente, os governos e a indústria precisarão chegar a um acordo: durante uma pandemia, vacinas e antivirais não podem ser simplesmente vendidos pelo melhor preço. Eles devem estar disponíveis e acessíveis para as pessoas que estão no centro do surto e com maior necessidade. Essa distribuição não é apenas a coisa certa a fazer, é também a estratégia certa para o curto-circuito na transmissão e prevenção de futuras pandemias.
Essas são as ações que os líderes devem tomar agora. Não há tempo a perder.»»
Apesar de todos os sucessos da ciência médica, a verdade é que se percebe uma certa desilusão nas pessoas quanto ao sucesso da inovação científica e tecnológica na medicina. E isto na medida em que por um lado, se torna imparável a subida do que se gasta na saúde; e se observa um certo desconforto nos profissionais médicos com a expansão das chamadas medicinas alternativas. 

Mas a desconsoladora fragilidade do triunfalismo da tecnologia na prática médica – a aparente vitória sobre as doenças infeciosas com os antibióticos e as vacinas – não começou agora. Isso aconteceu no início dos anos 1980 com o vírus HIV/SIDA. Ao mesmo tempo, com o prolongamento do envelhecimento para idades mais avançadas, até aos 100 anos, o panorama da saúde alterou-se substancialmente. Por um lado, o crescimento exponencial das doenças crónicas e degenerativas como as demências; por outro, a ânsia pela vida saudável, aquela que redunda apenas em obstinação sem fundamento científico, tem roubado recursos que deviam ser destinados prioritariamente ao tratamento de doenças que afetam mais as pessoas mais desfavorecidas.

Outro problema que se levanta é o do conflito de interesses, que acima de tudo é um problema ético. E sendo este campo muito abrangente, indo da prática clínica ao nível individual, até ao complexo médico-industrial das grandes multinacionais ligadas aos medicamentos, a Organização Mundial de Saúde, para os países pobres que não conseguem suportar os custos dos medicamentos produzidos por essas multinacionais, vê-se obrigada a ser conivente com os praticantes das medicinas tradicionais, reconhecendo a sua utilidade como veículo da promoção de algumas regras de higiene, e que, à falta de melhor, vai fechando os olhos aos tratamentos cuja base reside no conhecimento ancestral das plantas indígenas com propriedades medicinais.

Na realidade, as causas e consequências das más práticas são múltiplas e complexas. Ao contrário da medicina convencional e de base científica, mais dualista na dicotomia cartesiana mente/corpo, as medicinas alternativas têm um caráter mais holista. É claro que esta deriva reflete-se no comportamento sociocultural, cuja tendência é para a simplificação dos fenómenos nosológicos, onde se intromete a espiritualidade e a superstição conjugada com uma clara e confrangedora iliteracia científica. Acresce a tudo isto, o entusiasmo dos media por essa deriva, com um marketing sem quartel a par da ganância pelas audiências.

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