terça-feira, 17 de março de 2020

Acaso ou coincidência


Etimologicamente, acaso significa ‘sem causa’. É a aleatoriedade ou ausência de causas. Uma estrutura com aleatoriedade objetiva é impossível de descrever completamente, tem um comportamento impossível de ser previsto e controlado. É o conhecido exemplo da ‘moeda ao ar’. Repetindo o gesto, partindo sempre de um mesmo estado, uma mesma postura, o resultado é aleatório.

O termo coincidência é utilizado para referir eventos que nos aparentam alguma relação entre si, mas efetivamente sem qualquer relação de causa e efeito. O que é esperado é que haja coincidências quando temos conhecimento de imensos acontecimentos, aos quais atribuímos um qualquer significado, a ocorrer ao mesmo tempo. 
Do ponto de vista estatístico, quanto maior a amostra e o número de opções, maior a possibilidade de nos impressionarmos com as coincidências. As coincidências são inevitáveis, ​​e geralmente não têm nada de especial, quando comparadas com o significado que a nossa intuição lhes atribui. Medir a probabilidade de uma série de coincidências é o método mais eficaz para distinguir eventos que nos parecem causalmente conectados, de uma mera coincidência. Estabelecer mecanismos de causa e efeito, isto é, causalidade, é notoriamente uma tarefa difícil. Mas o que podemos à partida ter em mente é que, o facto de haver uma correlação entre dois ou mais fenómenos distintos, não quer dizer que tenha de implicar uma relação de causalidade. 

Karl Gustav Jung [1875-1961] foi, por assim dizer, o autor que mais estudou a fundo o fenómeno da sincronicidade. É o conceito do significado simbólico atribuído a eventos  coincidentes. Eventos causalmente não relacionados, mas cuja ocorrência simultânea confere significado para as pessoas que os observam. O facto de tais acontecimentos ocorrerem simultaneamente, e tido como altamente improvável a sua natureza casual, legitima que a nossa intuição lhes atribua um certo significado, mesmo que não lhes seja atribuída uma relação de causa e efeito. Era este o sentido que Jung queria dar ao significado de sincronicidade. 

O cérebro, não apenas o nosso, mas também o de muitos animais, é profícuo a  sinalizar acontecimentos com significado. E a partir de certa altura um significado passa a constituir uma regra. Os neurónios envolvidos nesta função libertam uma substância mensageira: a dopamina. Esta minúscula molécula, composta apenas por 22 átomos, não serve apenas para acontecimentos inesperados. Dirige também a atenção de modo a facilitar a aprendizagem. Quando acontece alguma coisa que não estávamos à espera, a dopamina leva a que prestemos mais atenção ao acontecimento, pois o inesperado pode trazer novas oportunidades. Isto implica que tenhamos de assumir alguns riscos, se bem que limitados, para aprendermos. A dopamina modifica a transmissão de sinais entre neurónios, pois é assim que o cérebro armazena informações durante a aprendizagem. E enquanto aprendemos a estabelecer relações, o cérebro transforma-se.

Marie-Louise von Franz, uma seguidora de Jung, partilhava a crença de que os números são os arquétipos da ordem e os principais participantes na criação da sincronicidade. Esta hipótese tem implicações relevantes para alguns dos fenómenos do caos na dinâmica não linear. A teoria dos sistemas dinâmicos forneceu um novo contexto para especular sobre a sincronicidade, porque fornece previsões sobre as transições de fase entre estados emergentes de ordem. Essa visão, no entanto, não faz parte do pensamento matemático convencional.

Uma vez que o nosso cérebro está programado para procurar padrões, as observações que não podemos explicar não nos deixam descansados. Facilmente chegamos à conclusão de que se houver uma coincidência de acontecimentos, também tem de haver forçosamente uma conexão. E na verdade a diferença entre coincidência e causalidade em determinados eventos não é assim tão evidente, sobretudo em situações complexas com inúmeras influências a desempenhar o seu papel. É por isso que o excesso de informação não é muito benéfico para as pessoas que apresentam tendência para a paranoia. Nos dias de hoje a televisão e a internet descarregam sobre as pessoas uma tal quantidade de notícias que não lhes permite ter o discernimento suficiente para evitar estabelecer conexões entre elas. É também por isso que as teorias da conspiração são tão propícias a germinar e a se propagarem nas redes sociais, sobretudo quando os acontecimentos transportam consigo uma grande carga emocional.

No seu constante afã de descobrirmos padrões nos acontecimentos à nossa volta, podemos muito bem exagerar, vendo contextos onde eles não existem. Temos uma intrínseca aversão ao acaso, à desordem da Natureza. É por isso que tendemos a ver logo um significado nos mais ténues sinais. Acreditamos numa teoria sem termos a mínima evidência para ela; e é por isso que confundimos constantemente coincidência com causalidade; acaso com determinação; sorte com capacidade. É bem conhecida a reação do jogador de casino quando ao fim de uma série de perdas olha para o lado e desconfia que o indivíduo que está atrás de si lhe está a dar azar, não tardando a interpelá-lo com a pergunta: “ó amigo, está com os pés frios?” E para bom entendedor, o sujeito desanda dali rapidamente. Aquela frase é um cliché dos jogadores de casino, ou de sorte e azar. Os clichés e os preconceitos são abundantes em situações de grande tensão interior, em que reduzimos o campo de visão alargado das hipóteses. Os psicólogos chamam a esse efeito “visão de túnel”.

Já dentro da ciência convencional existe o conceito de serendipidade para a ocorrência afortunada de uma descoberta ou invenção não planeada. Os exemplos também são abundantes: desde o caso eureka de Arquimedes, passando pela descoberta da penicilina por Fleming, até Nikola Tesla [1856-1943]. Tesla é muitas vezes descrito como um importante cientista e inventor. É mais conhecido pelas suas muitas contribuições revolucionárias no campo do eletromagnetismo no fim do século XIX e início do século XX. Tornou-se largamente respeitado como um dos maiores engenheiros electrotécnicos dessa época nos EUA. Todavia, nunca tendo dado muita atenção às suas finanças, Tesla morreu empobrecido aos 86 anos.

Serendipidade deriva de Serendip, o nome antigo árabe para o 
Sri Lanka, que no tempo de Vasco da Gama era o Ceilão. A palavra foi exportada para muitos outros idiomas, com o significado geral de "descoberta inesperada" ou "chance de sorte". O New Oxford Dictionary of English define serendipidade como o desenvolvimento de coisas úteis e muito importantes, mas por acaso, sem ter por trás qualquer iniciativa com uma intenção ou um projeto. As inovações como casos de serendipidade geralmente apresentam uma característica importante: são criadas por indivíduos com ideias que, enquanto os outros só viam nessas ideias uma "bacorada" (vara de bácoros, que em sentido figurado significa disparate), eles viam o "toque de Midas" (expressão que em sentido figurado significa fazer da caca ouro). 

A serendipidade pode desempenhar um papel importante na pesquisa da verdade, seja ela de cariz científico ou criminal, para além do tradicional método e comportamento científico, baseado na lógica e na previsibilidade. Pesquisadores bem-sucedidos têm sido aqueles que conseguem observar os fenómenos e os resultados das experiências laboratoriais sob as mais diversas e diferentes perspetivas, que violam muitas vezes os dogmas e preconceitos a que os cientistas também estão sujeitos. Questionam desassombradamente os pressupostos da ciência com argumentos que escapam ao paradigma das observações empíricas. Percebendo que tais ousadias podem gerar importantes ideias de pesquisa, estes pesquisadores quando chegam a ter a sorte de adquirir o estatuto de‘sénior’, gostam de apreciar o inesperado, o "fora da caixa", encorajando os cientistas ‘júnior’ a observar e a discutir com eles esses factos inesperados.

Por fim, a serendipidade é muitas vezes incompreendida quando interpretada de forma incorreta, como sinónimo de oportunidade, coincidência, sorte ou providência, o que prejudica o seu contributo nos processos de inovação. Assim, a serendipidade pode ser virtuosa em ambientes de grupos multidisciplinares de cientistas trabalhando em conjunto, firmando a ideia de que o trabalho e o interesse de um pesquisador pode ser compartilhado com outros que podem descobrir algo de diferente, algo de novo, para um outro paradigma de conhecimento e de ciência.

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