terça-feira, 10 de março de 2020

A Peste


As epidemias são tão assustadoras porque qualquer um pode ser infectado sem saber reconhecer quem o possa contaminar. Enquanto a epidemia está localizada longe, muitos de nós mantém-se indiferentes. O pânico só se instala quando a vítima é alguém do nosso conhecimento. Porque é que tinha logo de acontecer a ele ou a ela? Nunca aceitamos que o acaso nos bata à porta nos acontecimentos disruptivos. No entanto, já o consideramos simpático quando jogamos na lotaria. Nas outras situações estamos demasiado desesperados para aceitarmos a dor. Um dos aspetos mais intrigantes nas grandes catástrofes é o facto de, quase sempre, elas serem desencadeadas num encadeamento de acontecimentos ínfimos, que ninguém estava à espera. Ninguém consegue prever todas as combinações circunstanciais que, a uma dada altura, podem transformar-se num efeito catastrófico.

Os acasos perdem a sua vertente assustadora quando conseguimos repartir o seu peso por muitos ombros. Quer se trate de computadores, como no comando de um avião, ou de pessoas, o nível de segurança sobe quando as decisões são confiadas paralelamente a várias instâncias que só actuam depois de se ter chegado a um consenso. Exemplos básicos provam que um excesso de auto-segurança pode prejudicar as pessoas. Na época da Renascença foi possível a existência de investigadores universais, capazes de dominar todas as matérias. Mas hoje, no século XXI, é impossível que apareça um outro Leonardo, uma espécie de omnisciente. Paradoxalmente, quanto mais se avança na área do conhecimento científico, mais nos afastamos desse estado de omnisciência dos sábios da Renascença. As interligações entre as pessoas nesta era digital são de tal modo extensas e de tal modo rápidas, que é impossível uma pessoa estar a par sequer de 1% do mais relevante que todos os dias acontece no mundo.

Quando não vemos um perigo, cometemos erros, pois a nossa vigilância decresce. É assim que o nosso cérebro está programado. Medo e atenção, são duas faces da mesma moeda. Quando julgamos reconhecer algures um perigo, dispara toda uma rede de neurónios responsável pela reação de alerta da consciência. O medo só nos paralisa quando passa a dominar todas as outras reações. Antes de um ator entrar em cena, ou um músico antes de subir ao palco, é bom que sintam algum medo, porque a descontração em demasia compromete a concentração necessária para o bom desempenho.

Quanto mais complicado se tornar o mundo que construímos para nós, tanto mais dificuldades sentiremos em prever as consequências da nossa própria intervenção, e tanto menos conseguiremos distinguir entre aquilo que é inofensivo e aquilo que é perigoso. Quanto mais tecnológico se torna o mundo, mais cresce o número de possibilidades de incertezas. Sistemas complexos que não permitem uma previsão do seu comportamento. Mesmo que já ninguém queira trabalhar com os computadores 386, de finais dos anos 1980, A NASA é esse tipo de computadores que quer para o espaço, porque é um sistema que já esgotou todas as hipóteses de erro. É porque a vida dos astronautas depende da máxima segurança dos seus computadores. Ao fim de tantos milhões de utilizadores, os erros foram reduzidos a zero. Os três processadores que comandam o vaivém espacial não só trabalham independentemente uns dos outros, como também foram programados por equipas diferentes. Quando, por vezes, chegam a resultados diferentes, a decisão vem por maioria. Isso diminui o perigo que um erro do programa possa fazer despenhar a nave. Em sistemas complicados, agir com tolerância perante o erro significa, muitas vezes, evitar uma falha no sistema. Isso consegue-se construindo barreiras capazes de deter a progressão de um dano.

Durante toda a vida Albert Camus se ocupou do absurdo. E maior ironia não pode haver no absurdo que foi a sua morte. No dia 4 de janeiro de 1960, Camus encontrava-se algures na Provença. No regresso a Paris decidiu viajar de comboio. Ninguém sabe porque é que, em vez disso, se deixou convencer a viajar no novo carro desportivo de Michel Gallimard, sobrinho do seu editor. Tanto mais que Camus detestava andar de carro. Perto da cidade de Sens, o automóvel despistou-se a 130 km/hora contra uma árvore. Camus foi o único que morreu instantaneamente. Das pessoas que acorreram ao local para ajudar, houve uma que encontrou no bolso de Camus um bilhete de comboio por utilizar. Uma ocasião, Albert Camus havia dito: “Não há maneira mais absurda de morrer do que num acidente de automóvel”.


Na manhã de um dia 16 de abril dos anos de 1940, o doutor Bernard Rieux sai do seu consultório e tropeça num rato morto. Este é o primeiro sinal de uma epidemia de peste que em breve toma conta de toda a cidade de Orão, na Argélia. Sujeita a quarentena, esta torna-se um território irrespirável e os seus habitantes são conduzidos até estados de sofrimento, de loucura, mas também de compaixão de proporções desmedidas.

[...]Pode-se dar como exemplo o uso imoderado que nossos concidadãos faziam das profecias. Na primavera, com efeito, esperara-se, de um momento para outro, o fim da doença, e ninguém pensava em pedir aos outros detalhes sobre a duração da epidemia, já que todos estavam persuadidos de que ela não duraria para sempre. Mas, à medida que os dias passavam, começaram a recear que essa desgraça não tivesse realmente fim e, ao mesmo tempo, o término da doença tornou-se o objeto de todas as esperanças. Era assim que passavam de mão em mão diversas profecias atribuídas a magos ou a santos da Igreja Católica.
Editores da cidade viram rapidamente o proveito que poderiam tirar dessa mania e difundiram em numerosos exemplares os textos que circulavam. Compreendendo que a curiosidade do público era insaciável, mandaram fazer pesquisas nas bibliotecas municipais sobre todos os testemunhos do género que as pequenas histórias podiam fornecer e espalharam-nos pela cidade. Quando a própria história já não tinha profecias, encomendaram-nas a jornalistas que, ao menos nesse ponto, se mostraram tão competentes quanto seus modelos dos séculos passados. Algumas dessas profecias apareciam até em folhetins nos jornais e não eram lidos com menos avidez que as histórias sentimentais que lá se encontravam em tempo de saúde. Algumas dessas previsões baseavam-se em cálculos estranhos em que intervinham o milésimo do ano, o número de mortos e a conta dos meses já passados sob o regime da peste. Outras estabeleciam comparações com as grandes pestes da história, tiravam delas semelhanças (que as profecias chamavam constantes) e, por meio de cálculos não menos estranhos, pretendiam extrair delas ensinamentos relativos à presente provação.
Mas as mais apreciadas pelo público eram, sem contestação, as que, numa linguagem apocalíptica, anunciavam séries de acontecimentos, cada um dos quais podia ser aquele que a cidade sentia e cuja complexidade permitia todas as interpretações. Nostradamus e Santa Odília foram assim consultados diariamente e sempre com proveito. O que, de resto, se tornava comum a todas as profecias era o facto de elas serem, finalmente, tranquilizadoras. Só a peste não o era. Essas superstições substituíam para nossos concidadãos a religião, e foi por isso que o sermão de Paneloux se realizou numa igreja de que a quarta parte estava vaga. Na tarde do sermão, quando Rieux chegou, o vento, que se infiltrava em filetes de ar pelas portas de entrada, circulava livremente entre os ouvintes. E foi numa igreja fria e silenciosa, no meio de uma assistência composta exclusivamente por homens, que ele se instalou e viu o Padre Paneloux subir ao púlpito. Este falou num tom mais brando e mais refletido que da primeira vez, e em várias ocasiões os ouvintes notaram uma certa hesitação em seu discurso. Coisa mais curiosa ainda, dizia agora “nós”, em vez de empregar a segunda pessoa do plural. [...]


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