quinta-feira, 19 de março de 2020

Atravessar paredes é ir para além dos nossos limites


A Lógica serve-se de uma linguagem particularmente rigorosa. No entanto, são poucos os seus postulados aceites sem necessidade de serem provados, aqueles que são compreensíveis e espontaneamente evidentes. Kurt Gödel, matemático austríaco e amigo de Einstein, em 1931 acabou com todas as ilusões. Só nos sistemas lógicos mais simples se podem demonstrar todas as proposições verdadeiras. Trata-se então de afirmações verdadeiras que, no entanto, não podem ser demonstradas. Isto veio abalar os alicerces da própria ciência, pois ela não faz mais do que constatar que o conhecimento humano terá sempre de apresentar lacunas.

É neste ponto que revisitamos o paradoxo do mentiroso que remonta a Epiménides – um poeta, filósofo e místico que viveu em Creta no século VI a.C. a quem é atribuída a autoria do enigma conhecido pelo “paradoxo do mentiroso” – , e que ocupou os melhores anos da vida filosófica de Bertrand Russell, igualmente com a sua prodigiosa invenção de paradoxos. Um silogismo deste género – Todos os escorpiões mentem sempre; eu sou escorpião; logo, eu minto sempre – não pode ser demonstrado. Ele é logicamente válido; e, no entanto, todos os instrumentos de uma lógica útil fracassam perante ele. O problema consiste no facto de o silogismo fazer uma afirmação sobre si próprio. Quem se define como um constante mentiroso está, sob o ponto de vista lógico, a debitar afirmações indeterminadas. Estamos, portanto, perante uma autorreferência. Este tipo de autorreferências conduz, frequentemente, a contradições insolúveis. Neste tipo de situação diz-se que existe uma realimentação (feedback). 


É o que se passa também com as demonstrações da física quântica. O mundo que o físico pretende demonstrar, numa experiência ao nível das partículas, é um mundo de que ele também faz parte. De modo que a sua demonstração é do domínio estocástico, é indeterminada. Em teoria probabilística, o padrão estocástico é aquele cujo estado é indeterminado. Durante a medição do spin de um eletrão ele muda o seu estado. Esta é uma particularidade importante da mecânica quântica que não acontece nas medições habituais, em que as coisas não mudam assim tão depressa. No mundo dos quanta a medição intromete-se no sistema. É um pouco semelhante com o que se se passa na Bolsa de Valores Financeiros: quando os investidores compram e vendem ações estão também a mudar o seu preço. Quer com os físicos a medir partículas, quer com os investidores a jogar na Bolsa, em ambos os casos estamos na presença de uma realimentação. Assim como a longo prazo sabemos que no lançamento da moeda ao ar são tantas as vezes que saiu cara como saiu coroa; da mesma forma o spin do eletrão irá pender as mesmas vezes para um lado e para o outro. Mas é impossível prever em que direção o eletrão se posiciona numa determinada experiência. Na moeda ao ar é a mesma coisa: ambas as hipóteses têm precisamente as mesmas possibilidades. A situação é indeterminada. Mas é preciso chamar a atenção para o seguinte: tal facto não tem nada a ver com o nosso desconhecimento. Por absurdo, por mais que melhorasse a nossa capacidade de conhecer tudo o que há para conhecer, é uma impossibilidade absoluta. E é assim porque são assim as próprias leis da Natureza.

A nossa habitual compreensão da realidade falha no mundo das partículas minúsculas. Ao nível das bolas de bilhar é possível calcular a sua trajetória; já ao nível dos eletrões isso não faz sentido, porque um eletrão não tem trajetória. A famosa relação de incerteza da teoria quântica que Werner Heisenberg descobriu, diz que grandezas mensuráveis, como a posição e o momento linear, a energia ou o tempo, dependem umas das outras. O mesmo é válido para o spin ao longo de diferentes eixos. A partir do momento em que determinamos uma grandeza, a outra torna-se indeterminada. É impossível determinar ambas as grandezas ao mesmo tempo. Podemos até chegar a encontrar o eletrão do outro lado da parede, um limite físico cuja barreira estamos habituados a ter como impossível de ser atravessada. Os eletrões e até mesmo átomos inteiros podem, de facto, atravessar paredes.

A matemática é razão pura. Toda a sua construção racional se baseia em poucos princípios compreensíveis. Mas apesar de um computador ser construído de acordo com regras matemáticas muito claras, ele pode pregar-nos a partida quando a imagem da ampulheta surge no ecrã e nunca mais saímos dali, a não ser que recorramos ao botão do reset. É claro nestas ocasiões ninguém vai pensar em Kurt Gödel – o matemático dos irritantes limites da lógica; ou em Werner Heisenberg – o físico da incerteza e da indeterminação. Fazer com que um computador preveja se e quando os seus processamentos podem terminar é, sob o ponto de vista lógico, impossível, porque lhe estaríamos a exigir uma informação sobre si próprio. É o mesmo que procurar uma indicação que nos permita saber se aquele que nos está a dizer que é um mentiroso, está a mentir ou não. O computador só poderia fornecer-nos uma informação, referente a esse processo da ampulheta pendurada, no fim do processamento, no fim de concluído o processo. Mas então nesta altura, a questão do tempo que a ampulheta iria demorar suspensa tornar-se ia supérflua, redundante.


Agora reparem nas histórias que se costumam contar ao serão, ou quando não se tem nada que fazer:
Numa sala em Paris, enquanto uma sobrinha de um fulano a viver na Argentina se senta para lhe escrever uma carta de saudades, há um quadro que cai da parede. A madame não chegou a enviar a carta pelo correio, porque entretanto recebe um telegrama a informar que o seu tio morreu.
Este tipo de coincidências estranhas estão a acontecer a toda a hora. Como a nossa mente não está preparada, nem foi construída pela natureza para desprezar este tipo de padrão nos acontecimentos, ultimamente têm surgido teóricos da conspiração, principalmente os seguidores de Carl Gustav Jung, com o argumento de que esse tipo de coincidências obedecem às leis da mecânica quântica. E na verdade, Jung, instruído por Wolfgang Pauli - Nobel da Física em 1945, acabou por desenvolver a sua teoria da sincronicidade. Mas a verdade é que, no Instituto de Estudos Avançados de Freiburg tenta-se há mais de meio século demonstrar a justeza das teorias de Jung sem sucesso. Na realidade, Jung e os seus seguidores equivocaram-se, porque a Teoria Quântica não pode oferecer quaisquer bases teóricas para essas ideias, como capacidades parapsíquicas ou visionárias. pregos enferrujados a deixar cair quadros na parede, e relações de parentesco são coisas que só combinam na mente das pessoas. A escala de grandeza da nossa existência não se compadece com os efeitos fantasmagóricos que se fazem sentir um pouco por toda a parte ao nível microscópico. Pelo que se explicou acima com o exemplo da moeda ao ar ao longo de um grande número de tentativas, a lei dos grandes números acab apor tornar irrelevantes os acasos da física quântica. Mesmo para o modo como o nosso cérebro funciona, os fenómenos da física quântica não desempenham, tanto quanto se conseguiu saber até hoje, qualquer papel. Assim, os efeitos quânticos não podem ser responsabilizados pelo livre-arbítrio, como alguns psicólogos bem intencionados têm afirmado.

Esta é a careca descoberta dos videntes. A liberdade só existe na medida em que é impossível prever. Porque se fosse possível, ainda que por uma minoria de gente privilegiada com dotes extraordinários, cairia por terra qualquer veleidade de liberdade humana. Ora, o nosso comportamento não pode ser determinado nem previsto. E entre as muitas consequências da nossa liberdade resulta uma das mais espantosas. É que nem os próprios conseguem prever e perceber a maior parte das suas escolhas, decisões e comportamentos em geral. No fundo, deparamo-nos com essa imprevisibilidade em todos os âmbitos existenciais. As previsões fracassam devido à autorreferência. E o que torna imprevisível é o facto de as nossas decisões terem muito pouco de racional devido ao facto de estarem dependentes da nossa inter-relação com o mundo e as outras pessoas. E quanto mais rica for essa inter-relação mais imprevisível se torna. Avaliar uma outra pessoa não funciona da mesma maneira quando pesamos ou medimos uma coisa. A única coisa que se assemelha às experiências da física quântica é que, quando se trata de relações humanas, sempre que se observa um determinado estado acabamos por modificá-lo. O relacionamento entre pessoas, ao se modificarem mutuamente, o já referido fenómeno da autorreferência torna o relacionamento imprevisível.

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