terça-feira, 31 de março de 2020

Apenas uns poucos escapam ao destino do esquecimento


Estar vivo é podermos morrer a qualquer momento. A prática da consciencialização da noção de quanto valiosa é a vida, justamente porque a podemos perder a qualquer momento dada a nossa tremenda vulnerabilidade, é de um valor supremo. Não acreditamos na vida eterna. Mas é bom acreditar na "crença na vida eterna". O que isto quer dizer? Quer dizer que sabemos todos que somos mortais, que somos finitos, que vamos morrer, mas como ferramenta de sobrevivência, acreditar que temos alma, e que ela é imortal, é bom para melhor defendermos a vida de todos em sociedade. A natureza não é sociável. 


A ideia de imortalidade tem-se mostrado cada vez mais cativante para a ciência e para a medicina moderna. Por exemplo, na Universidade de Northwestern, nos Estados Unidos, cientistas fazem ou fizeram experiências em minhocas apagando os genes que fazem as mutações que estão na base do envelhecimento. Claro que uma coisa são os humanos, outra coisa são as minhocas, mas os cientistas entusiasmam-se muito com as conquistas técnicas. Outro exemplo é o rejuvenescimento de ratos velhos por meio da infusão de sangue de ratos novos. Os pesquisadores acreditam que o procedimento poderia funcionar com humanos. Companhias do Silicon Valley, região dos EUA que concentra algumas das principais empresas de tecnologia do mundo, estão agindo ativamente nesse setor. Uma enorme quantidade de dinheiro está sendo investida na pesquisa da imortalidade, e há grandes nomes participando, entre eles: Larry Ellison - um dos homens mais ricos do mundo e um dos donos da Oracle, empresa de sistemas de computação. Sergey Brin - co-fundador do Google e da Calico, que trabalha com saúde e bem estar. Aubrey de Grey - o cientista e pesquisador britânico da área da medicina regenerativa é um dos maiores especialistas do Planeta em gerontologia. Essas pessoas famosas confessam sentir medo de envelhecer e morrer, por isso trabalham na luta por encontrar um remédio para esse irremediável destino. 


É claro que, quando nos remetemos para o transcendente, invocando a divindade, queremos que ela seja inteligente como nós. Com uma divindade antropomorfizada, capaz de ajuizar valores, podemos estabelecer com ela compromissos, e receber favores prestando-lhe homenagem. É este o principal benefício que os seres humanos, não os outros animais, obtém com a religião. Ainda assim temos aqueles que se imortalizaram pela Arte, mesmo que essa graça dos deuses tenha sido dada a poucos, aos quais chamamos génios. É o caso de um Leonardo da Vinci e de um Miguel Ângelo que encheram a época da Renascença com obras de arte a que chamamos obras-primas. E, todavia, não estamos a falar de nenhuma época mágica de beleza universal. Esses tempos eram ainda mais tumultuosos que os de hoje, marcados por violentas convulsões. Apesar de o fim do mundo apocalíptico da Peste Negra já ter passado, Florença ainda teve que se ver com um Girolamo Savonarola [1452-1498]. 

Savonarola na fogueira - Praça da Senhoria, Florença

Em agosto de 1490, Savonarola começou os seus sermões no púlpito da igreja de São Marcos, com a interpretação do Apocalipse. Seus sermões fizeram sucesso, exercendo uma influência crescente sobre o povo. Esses esforços de Savonarola vieram a gerar conflito com o papa Alexandre VI, que como todos os príncipes de cidades italianas, à exceção de Florença, era um oponente da política francesa. Em seus novos sermões atacou violentamente os crimes do Vaticano, que aumentaram desse modo as paixões em Florença. Um cisma começou a se prefigurar e o papa foi forçado outra vez a agir. Mesmo assim, Savonarola prosseguiu com suas pregações cada vez mais violentas contra a Igreja de Roma, recusando-se a obedecer às ordens recebidas. Em 12 de maio de 1497 foi excomungado. Quando a influência de Savonarola começou a baixar, os seus inimigos não tardaram a levá-lo à autoridade secular. Em 1498, com algumas confissões obtidas sob tortura, foi condenado à morte na fogueira, sem apelo nem agravo, na Piazza della Signoria, cuja representação pictórica, de um anónimo, se pode ver no Museu de São Marcos em Florença, cujo acervo é formado principalmente de pintura sacra do Renascimento, em especial de Fra Angélico.

Ora, é neste ponto que associo a esta história de Savonarola a história da estátua do David de Miguel Ângelo, que o ocupou de 1501 a 1504, dos seus 26 aos 29 anos de idade. Antes do envolvimento do artista no conceito da escultura, os membros da guilda encomendaram uma escultura de David a Duccio. Um bloco de mármore foi removido das pedreiras de Carrara no norte da Toscana. Duccio iniciou a obra modelando os pés, pernas e o tronco, mas por razões desconhecidas, com a morte de Donatello em 1466, a obra não prosseguiu. Passados dez anos, foi substituído por  Antonio Rossellino. Mas o contrato de Rossellino foi suspenso pouco tempo depois, fazendo com que o inacabado bloco de mármore fosse esquecido mais de vinte e cinco anos no atelier da Catedral de Santa Maria del Fiore.


Os membros da guilda, conhecidos como Operai, estavam determinados a encontrar um artista disposto a concluir a obra e apresentá-la à cidade. Encomendaram, então, um bloco de pedra que apelidaram de O Gigante. Apesar de nomes já conceituados, como Leonardo da Vinci, terem sido auscultados, foi o jovem Miguel Ângelo quem assumiu a tarefa de concluir a obra. Em 16 de agosto de 1501, Miguel Ângelo assinou então o contrato com os Operai para dar início aos trabalhos em meados de setembro. Miguel Ângelo é considerado nesta obra um inovador, pois retrata o personagem não após a batalha contra Golias, como Donatello e Verrochio antes dele fizeram, mas no momento imediatamente anterior a ela, quando David está apenas a preparar-se para enfrentar uma força que todos julgavam ser impossível de derrotar. Em junho de 1504 David foi finalmente instalado na entrada do Palazzo della Signoria, substituindo a escultura em bronze Judite e Holofernes, de Donatello. O trabalho de posicionamento da escultura durou quatro dias.

Sem comentários:

Enviar um comentário