sexta-feira, 13 de março de 2020

Quando a realidade é ambígua e ambivalente


Para entender o que está e o que vai acontecer com a pandemia do novo coronavírus em curso por todo o mundo, é preciso ser sensível à ambiguidade. Ela se traduz pelo facto de que a realidade das pessoas, ou das sociedades, se apresenta muitas vezes sob o aspeto de duas verdades diferentes ou contrárias. Duas faces da mesma moeda, ambas verdadeiras. Pascal, que tinha o sentido da ambiguidade, dizia que o ser humano traz em si o melhor e o pior. É esta máxima que as autoridades de saúde e políticas atualizam com a frase: “prever o pior e esperar o melhor”.

Quando um processo apresenta dois aspetos de valores diferentes e às vezes contrários, diz-se que é ambivalente. Tomemos um exemplo na história da Europa ocidental: a partir do século XVI, a Europa conquista o mundo, a África, a América, coloniza esses continentes com grande crueldade, exterminando nativos e escravizando outros. Simultaneamente, vale dizer, exatamente na época em que ela exerce essa crueldade nessas regiões do mundo, a Europa também é o único lugar onde se desenvolveram as ideias de direitos humanos e de fraternidade universal. Por outro lado, o que levou a estas ideias, foi o mesmo que implantou o terror em França entre 1789 e 1793, em pleno processo da Revolução Francesa.

O processo da última globalização é outro exemplo do melhor e do pior. Levou à hegemonia da economia liberal e dos Estados Unidos da América, do lucro e tudo o mais com novas zonas de prosperidade e de novas classes médias na Índia, China ou Brasil; mas por outro lado gerou as suas próprias ambivalências, com novas zonas de miséria. A esse respeito, devemos estabelecer uma diferença entre a pobreza e a miséria: uma família que vive num pequeno lote de terra com policultura e animais de criação é pobre, mas tem um mínimo de dignidade e autonomia; ao passo que as pessoas tiradas do campo para serem lançadas em bairros de lata, encontram-se numa dependência absoluta, isto é, na miséria.

Podemos discutir longamente as vantagens e desvantagens desta globalização. Mas o interessante é que para uns o que domina são os aspetos benéficos, e para outros o que domina é a miséria. É profundamente ambivalente. A ilação que podemos retirar é que, ao contrário do tempo dos Estados-Nação, é um processo desmedido e incontrolável, mais propício à geração de crises. A globalização é a pior e a melhor das coisas.

É preciso assumir e transcender as contradições, ainda mais num tempo consequente da chamada modernidade, que fragmentou o conhecimento em múltiplas especialidades. Saberes parcelados, compartimentados entre disciplinas, a enfrentar problemas progressivamente mais complexos e multidimensionais, transnacionais, globais, planetários. A divisão das disciplinas tornou os nossos cientistas incapazes de apreender a complexidade. E o desafio da globalização é um desafio da complexidade. Na história planetária, as interações e retroações entre os processos económicos, políticos, demográficos e tecnológicos, são incontavelmente incomensuráveis. Ora, uma das tragédias do pensamento atual é que as nossas universidades e escolas superiores produzem eminentes especialistas, mas o seu pensamento é, numa expressão de Wittgenstein, paroquial. É um conhecimento muito compartimentado. O economista só responde pela dimensão económica das coisas; o advogado só se pronuncia no âmbito da lei; o engenheiro só se pronuncia pela segurança das pontes; assim como o demógrafo na sua respetiva área, e todos encontram dificuldade para entender as relações entre duas dimensões. A inteligência que sabe apenas separar, quebrar a complexidade do mundo em fragmentos isolados, diminui a compreensão do todo, na medida em que anda tudo ligado, tudo tem a ver com tudo. Assim, quanto mais os problemas se tornam planetários, mais se tornam impensados; quanto mais avança a crise, mais avança a incapacidade para pensá-la.

A incerteza é onde nos movemos, não só na ação, mas também no conhecimento. Os economistas têm os olhos fixos apenas nos resultados numéricos, ignorando as realidades humanas, que envolvem sensibilidades e paixões. O lucro é um processo descontrolado que também comporta a sua própria ambivalência. O provável é aquilo que, em determinado lugar e momento, projeta um observador inteligente, dispondo das melhores informações sobre o passado e o presente para projetar o futuro.

Sempre houve o elemento imprevisível na história humana. Seis séculos antes da nossa era, o imenso Império Persa quis absorver as pequenas cidades gregas, entre elas Atenas. Era para ter sido muito fácil, bastando para isso lançar em campo o seu gigantesco exército. Mas, Atenas, com a ajuda de Esparta, e a resiliência de uns poucos, rechaçou os persas na batalha das Termópilas. A cidade de Atenas foi destruída, até Salamina, mas lá os navios gregos armaram uma cilada aos persas, salvando o Estado de Atenas. E algumas dezenas de anos depois nasciam a democracia e a filosofia atenienses.

O excesso é o grande fautor do mal-estar, do mal viver. Os dados das Nações Unidas são perfeitamente esclarecedores a esse respeito. Eles deixam claro que a maioria dos grandes problemas ecológicos, sociais e sanitários da humanidade não são realmente problemas de recursos, mas problemas de comportamento humano. Mas, graças à dupla face da moeda – perigo e oportunidade – , também dispomos de todas as potencialidades para responder positivamente às três perguntas radicais: o que faremos com o nosso planeta, com a nossa espécie e com a nossa vida?

Neste momento crítico, os desafios são colossais, e não é catastrofismo dizer que a humanidade corre riscos de insustentabilidade jamais corridos desde que o homem é sapiens e demens. A sexta grande extinção constitui um problema de biodiversidade ainda mais grave que o próprio desequilíbrio climático. A humanidade corre o risco de acabar prematuramente com a sua própria história. Mas também pode aproveitar esta oportunidade para dar um grande salto qualitativo na sua natureza sapiens. Saltos qualitativos já foram verificados em grandes momentos de bifurcação da história humana, que se transformaram em momentos de renascimento.

O processo de hominização constitui um fenómeno absolutamente paradoxal, pois foi o ramo mais fraco e vulnerável que chegou até nós, num processo incrível da consciencialização. Foi neste ramo, que corria com menos rapidez, que era menos corpulento, que se manifestou o sentido moral da existência, o grau de hominização qualitativamente superior: a humanidade.

A crise por que passamos agora é uma crise sistémica cujas dimensões sociais e ecológicas são determinantes na sustentabilidade da humanidade. A angústia existencial sem um sentido é suficientemente forte para levar a humanidade a desaparecer se nenhuma resposta for dada a essa angústia existencial. O desejo de sentido e de reconhecimento são os dois motores fundamentais de um ser humano, aqueles que podem levá-lo a se matar se nenhuma resposta lhe for dada.

São as questões mais vitais que estão agora em causa. Quando uma comunidade encontrou um sentido que lhe fornece razões de viver e de morrer, o mecanismo mais simples consiste em proteger esse sentido contra qualquer outro que, igualmente vital, se revele ameaçador.

Como em todas as grandes crises, se não prestarmos a devida atenção a esta, a ascensão dos processos identitários que se está a ver agora ressurgir na velha Europa, irá convocar a seguir a entrada em cena das autocracias. A questão do diálogo na civilização, como diálogo de sentido, coloca-se ao nível de todas as escalas: local e global. No interior das grandes tradições, certos movimentos trazem a questão do sentido como questão pública essencial e não simplesmente pessoal ou privada. Essa questão faz parte dos bens comuns da humanidade, e esta deve dispor de espaços para debatê-la. A questão do diálogo é crucial, para permitir a possibilidade de revisitarmos a nossa própria tradição para ver o que é fonte de exclusão em relação às tradições dos outros. O sentido fechado e excludente das religiões, é neste momento o pior sentido que podemos ter nesta era que já leva mais de dois mil anos, cujo sentido histórico foi o sentido religioso cristão, que justamente por se ter aberto aos gentios se universalizou.

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