sexta-feira, 6 de março de 2020

O medo de morrer sem dignidade


A maioria das pessoas é sincera na resposta à pergunta: tem medo de morrer? “Sim! Tenho medo de morrer”. Mas são raras as pessoas que se dispõem a conversar acerca do medo da morte no que respeita ao nosso desaparecimento do mundo para sempre. Normalmente as pessoas preocupam-se mais com o sofrimento por que temos de passar antes de morrer. E é esta a questão fundamental que se coloca quando se discute a eutanásia. O medo do vazio, do nada, da redução da nossa existência a mera poeira cósmica é um medo transcendente que as pessoas sentem, mas que dificilmente conseguem transpor em palavras numa conversa amena. O medo escatológico (dos fins últimos do homem) não é menos angustiante que o medo do sofrimento físico. Este medo será porventura uma das razões da Religião.

Na Primavera de 399 a.C. o tribunal dos Heliastas condenou à morte Sócrates por não acreditar nos deuses em que acreditava a cidade. E ainda era culpado de corromper a juventude. O carrasco, ao passar-lhe para a mão um frasco com a infusão de cicuta, tendo ele a liberdade de a ingerir ou não, uma vez que lhe foi dada a possibilidade de fugira tal destino, legitimava a primeira versão de um suicídio assistido. Mas Sócrates não estava disposto a abjurar os princípios que pregara e praticara uma vida inteira. Para ele, lê-se no Críton, o que verdadeiramente importava não era viver, mais sim viver bem, ou seja, viver segundo a justiça. Por isso não fugiu. Teve o cuidado de se lavar uma última vez para não obrigar a tal tarefa a que coubesse dispor do seu corpo já sem vida.

Por exemplo, pouco há a fazer em relação ao sofrimento de um doente com Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) na fase terminal e irreversível, mesmo pela intervenção cuidadosa de um médico competente e carinhoso. Numa publicação do New England Journal of Medicine, há quase 20 anos, 56% dos doentes com esta doença manifestaram vontade de pedir o suicídio assistido. O doente confronta-se no fim com uma paralisia muscular total, tornando impossível o falar, o engolir e o respirar. Para a maior parte das pessoas a morte tem uma importância simbólica especial e pretendem, s possível, que as suas mortes exprimam os alores que para elas foram mais importantes durante a vida, e isto pode implicar o direito de escolher a forma como a vida chega ao fim. É impossível aceitar que se imponham nestas questões opções éticas cuja robustez seja garantida, somente, por argumentos de fé religiosa.

A dignidade depene, também, em grande parte, da capacidade de exercer controlo sobre si próprio. Um dos atos que mais ferem a dignidade de alguém diz respeito à perda de autonomia para os autocuidados de higiene. O ato de cumprir a nossa higiene, com os seus rituais secretos e únicos, é profundamente íntimo. Platão não ignorou este aspeto, ao dizer no Críton que Sócrates teve o cuidado de se lavar uma última vez.

Há a realidade biológica do sofrimento no caminho que se percorre até à morte quando se escolhe deixar à doença um livre curso, porque a vida já está vivida e é tempo de partir. E há a dimensão transcendente no ato de morrer. É no momento mais sombrio do crepúsculo, o da despedida, do não futuro, que o médico põe à prova toda a sua verdade no encontro com o Outro, num esforço tenaz de preservação da dignidade. Vi os primeiros doentes em coma quando comecei a dar os primeiros passos na prática clínica. Vi os colegas mais velhos, quando o doente oncológico deslizava para a agonia final, administrar morfina e retirar a alimentação. Isto é o que hoje se chama sedação terminal e que é prática aceitável. Para outros, porém, a sedação terminal é considerada próxima da eutanásia e moralmente duvidosa. Os teólogos católicos da Idade Média consideravam a morte como efeito secundário da sedação condenável se intencionalmente provocado. Mas era aceitável se, embora previsível, não fora primariamente desejado. A morfina alivia a dor, mas pode secundariamente deprimir a respiração e provocar a morte. A este efeito os teólogos chamaram “a regra do efeito duplo”.

Por surpreendente que possa parecer, numa altura em que é do domínio público a reclamação para que haja mais camas de cuidados paliativos, hoje é cada vez mais difícil para o médico lidar com o transcendente, ou seja, com a relação do doente com valores espirituais e religiosos que procuram um sentido no mistério da origem, da identidade, do destino. A complexidade do sofrimento, a combinação de factos físicos, psicológicos e existenciais, obriga a que os cuidados paliativos sejam sempre tarefa multidisciplinar.

A obstinação terapêutica estava já condenada do corpus hipocrático, que dizia que se devia recusar o tratamento àqueles que a doença já subjugara, aceitando que, nesses casos, o médico já não tinha poder. O médico perfeito era aquele que era capaz de distinguir entre o possível e o impossível. E o suicídio assistido, quer pela secção das veias, quer pelo recurso a tóxicos e venenos, era prática comum na medicina greco-romana.

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