domingo, 22 de março de 2020

Não desistas de mim



Eu com 67, e a minha mãe ainda mais do que eu, com 91, temos alimentado esta longevidade graças aos progressos da medicina e da saúde pública. A introdução do saneamento e de outras medidas de saúde pública tinha reduzido drasticamente as probabilidades de morrermos de uma doença infecciosa. Mas nos dias em que estamos tal verdade está suspensa, por causa de uma nova pandemia devida a um novo vírus contra o qual nenhum homo sapiens estava imune. É assim que, de um momento para o outro, a vida e a morte passam de novo a avançar lado a lado, descontraidamente e sem qualquer problema, como no tempo de dois antepassados meus quer tiveram a sorte de morrer de velhos, sem nunca terem tido a necessidade de recorrer à medicina daquele tempo. A penicilina foi introduzida em Portugal pela Cruz Vermelha Portuguesa em maio de 1944. 
O avô de minha mãe do lado paterno [26/4/1856 - 1/12/1939] morreu com 83 anos. E a avó de meu pai do lado materno [13/10/1856 - 7/1/1942] morreu com 86 anos. 


A Covid-19, como se tivesse aberto um alçapão, ataca e tira o tapete debaixo dos pés preferencialmente às pessoas com mais de 65 anos de idade. É o que está a acontecer agora em todo o mundo, mas com particular dramatismo em Itália, numa altura em que a China parece estar a respirar de alívio, onde tudo começou. No fim, como é óbvio, todos nós morremos de qualquer coisa. Mas, até nisso, a medicina tem conseguido adiar esse momento para muito mais tarde. Pode não ter conseguido evitar os estragos do tempo no corpo, mas tem conseguido fintar a morte precoce. Quando um velho parece que está nas últimas, ainda tem a chance de regressar do hospital a casa recomposto, ainda que com pior aspeto, mais fraco e mais incapacitado. A velhice não é um diagnóstico. Há sempre uma causa de morte na certidão de óbito. Mas, na realidade, o que verdadeiramente acontece ao nosso corpo é a desintegração lenta e progressiva dos seus órgãos e sistemas. A curva da vida torna-se um longo e lento murchar, salvo em momentos como este, em que um minúsculo microrganismo ousa desafiar o macrorganismo mais poderoso do mundo.


“Não desistam de mim, dêem-me todas as chances possíveis”, foi a frase que o doente, da narrativa a seguir, pronunciou à frente do médico que o ia ouvir e avaliar antes de decidir o que fazer: operar ou não operar. 
          Era um doente cujo cancro da próstata já tinha evoluído para metástases ósseas. Uma das metástases comprimia-lhe a medula e isso colocou-o numa desconfortável situação de incontinência de urina e de fezes, e parcialmente paralisado. Fizesse-se o que se fizesse ele tinha no máximo uns meses de vida. Mas o doente implorou de tal forma que os médicos não desistissem dele, que a equipa cirúrgica decidiu intervir, na hipótese de travar o processo de paralisia, embora lhe dissessem que a recuperação seria difícil. No seu estado de fraqueza, enfrentava consideráveis riscos de lhe piorar a qualidade de vida e de a encurtar. Mas depois de lhe ter sido explicado tudo – nomeadamente a necessidade de lhe abrirem o tórax, cortar uma costela e colapsar um pulmão para aceder à metástase na coluna – o doente manifestou a vontade de querer ser operado quando assinou o documento do consentimento informado.
          Depois da cirurgia o doente sobreviveu 14 dias num inferno de tortura chamado “Cuidados intensivos”. Só depois de o filho ter mandado a equipa parar é que os médicos admitiram que ele estava a morrer aos bocadinhos a cada dia que ia passando: insuficiência respiratória; septicemia; coagulação intravascular disseminada seguida de hemorragias por causa dos anticoagulantes; perdas de sangue e transfusões de sangue. O doseador de morfina foi ajustado para minimizar o sofrimento com a retirada do ventilador, e a seguir o interno de especialidade de Anestesiologia encostou o estetoscópio no peito do doente, e manteve-se assim parado a ouvir os sons do coração a esmorecerem, até se impor o silêncio.
O doente, atrás de uma fantasia, preferiu correr o risco de passar por um processo de morte prolongada e terrível, que foi precisamente o que acabou por acontecer, apesar de os médicos lhe terem dito que a operação foi um êxito do ponto de vista técnico. E é a partir deste ponto que entro no âmago dos propósitos desta narrativa. Os médicos não tiveram dificuldade em explicar os perigos específicos das diversas manobras devido à operação, mas nunca tiveram a coragem de dizer ao doente que não valia a pena passar por aquela tortura. Eles sabiam muito bem que a doença não tinha cura. Mas nunca tiveram a coragem de falar olhos nos olhos com o doente acerca do seu fim de vida que estava para breve. E não tiveram coragem porque simplesmente nunca foram preparados para isso. Admitir a realidade e dizer a verdade ao doente a fim de o ajudar a enfrentar a finitude, era algo que estava para lá das capacidades deles. Não lhe ofereceram reconhecimento, nem conforto, nem orientação. Limitaram-se apenas a propor-lhe mais um tratamento, que por sinal “havia sido um êxito do ponto de vista técnico”.

Os derradeiros dias da nossa vida são ocupados com tratamentos que nos baralham as ideias ao ponto de sermos obstinados em busca de uma ínfima hipótese de obter o “milagre” da imortalidade. E assim se passou a negar o conforto básico de que mais necessitamos na hora da despedida.

Percorridas as duas primeiras décadas da pista de descolagem deste século XXI, os médicos treinados no uso de um espantoso arsenal tecnológico, deixaram de incorporar aquele sentimento dos médicos antigos desaparecidos ainda há muito pouco tempo: a derradeira vitória é da natureza, não da medicina. Esses médicos antigos estavam muito mais dispostos a reconhecer os sinais de derrota e tinham muito menos pretensões arrogantes de os negar. É impossível fugir à tragédia da vida, que se resume à nossa finitude e extinção individual, que nos remete para o vazio, o nada. Para os médicos de hoje, não há nada mais ameaçador para a sua autoestima de profissional competente do que a declaração de impotência perante o doente que à sua frente está prestes a morrer, e ele não ter nada para lhe oferecer. Por se considerar que um médico só pode ter sucessos, e nenhuma derrota, é que o momento da morte é hoje tão desumano. A atual sociedade, ao relegar a mortalidade para a tutela exclusiva da medicina, falhou no tratamento espiritual que a morte humana exige. 

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