quinta-feira, 5 de março de 2020

Cínicos hobbesianos, ou ingénuos rousseaunianos?


Um cínico, que não tem de ser necessariamente um pessimista, mas pode ser, é capaz de dizer que hoje em dia, tanto à esquerda como à direita, há uma desafeição, senão rejeição da organização política chamada Democracia, que durante o século vinte foi dito que não havia sistema mais perfeito. 
"E de facto, a realidade nunca diferiu muito desta percepção. Porém, era geralmente aceite porque as décadas do pós-II Guerra, graças ao alívio proporcionado pelo muito generoso Plano Marshall, por um lado, e, por outro, graças à NATO, cuja protecção dispensava a Europa de investir em armamento, foram décadas de abundância que concediam aos governos uma muito apreciável margem de magnanimidade. Nessa época, a Democracia fazia sentir-se nos bolsos dos contribuintes."
Estamos a assistir, de facto, a uma generalizada desconfiança e um generalizado desencanto com a Democracia, precisamente nos países que eram apontados como os faróis da Democracia. Agora, como as pessoas estão a sentir o seu dinheiro ser-lhes tirado dos bolsos para dar a multimilionários, ou a estrangeiros, dizem que afinal a Democracia já não presta. Ninguém quer saber se a desindustrialização das grandes economias ocidentais, ao mesmo tempo que produz desemprego e deprime os salários na Europa, tem servido para retirar da absoluta miséria centenas de milhões de asiáticos. 
"Não espanta: o Homem não é generoso ou abnegado. A crença na bondade fundamental do Homem não passa de uma consoladora ilusão que Rousseau se esforçou por fazer passar por uma qualidade congénita da natureza humana. Os governos estão cada vez mais condicionados pelas exigências da globalização; condicionamentos inconfessáveis, pois prevalecem sobre a vontade dos eleitores expressa nas urnas. A partir da década de 1990, com o aprofundamento acelerado da globalização, o poder do Estado – a liberdade de acção dos governos – passou a estar muito mais constrangido. Não admira, portanto, que o descontentamento com a Democracia tenda a generalizar-se. E tanto mais quanto, na Europa, o crescimento económico anémico proíbe as liberalidades que outrora constituíram o principal motivo de atracção da Democracia. Esse descontentamento, por ora, inunda as ruas. Mas é tempo de nos interrogarmos se a Democracia é viável ou adequada num contexto de globalização. Quer dizer, num tempo em que entidades misteriosas e supra-terrestres decidem, ao fim e ao cabo, do nosso futuro. Um futuro que dantes era largamente definido pelo voto individual no quadro do Estado-nação. Ao que tudo indica, nada de verdadeiramente importante é hoje em dia unilateralmente decidido pelos Estados nacionais. Quem hoje em dia de facto governa o mundo (?) não carece de legitimidade democrática. Esta fica para os governos, afadigados a administrar e distribuir as sobras que o Sistema lhes concede. Enquanto vivermos na ilusão de que temos um controle efectivo sobre o nosso destino colectivo, a Democracia salva-se se a economia a salvar – até ao dia em que entre em choque com as exigências da globalização."
Quando falo em cinismo, estou a referir-me à corrente filosófica fundada por Antístenes, discípulo de SócratesPara os cínicos, o propósito da vida era viver na virtude de acordo com a Natureza. Diógenes de Sinope levou o cinismo aos seus extremos lógicos e passou a ser visto como o arquétipo de filósofo cínico. O cinismo espalhou-se durante a ascensão do Império Romano. No século I quase se tornou num movimento de massas, e assim, os cínicos eram encontrados como mendigos a pedir e a pregar ao longo das cidades do império. A doutrina finalmente desapareceu em finais do século V, embora alguns afirmem que o cristianismo primitivo adotou muitas das suas ideias ascéticas e retóricas. Por volta do século XIX, a ênfase sobre os aspetos negativos da filosofia cínica levou ao entendimento moderno de cinismo significando uma disposição de descrença na sinceridade ou bondade das motivações e ações humanas. Para encorajar as pessoas a renunciarem aos desejos criados pela civilização e convenções, os cínicos empreenderam uma cruzada de escárnio anti-social pondo a nu as frivolidades da vida social. 

Sim, é possível ser otimista sem ser ingénuo. O cérebro humano evoluiu, há centenas de milhares de anos, na savana africana, para avaliar situações em condições profundamente diversas daquelas que a sociedade global de hoje apresenta. Essa é uma das razões pelas quais somos muitas vezes incapazes de avaliar a real dimensão dos diversos riscos e oportunidades a que estamos expostos. A incapacidade de avaliar a probabilidade de diversos eventos é amplamente conhecida, e é designada de enviesamento ou falácia cognitiva. Um enviesamento cognitivo corresponde a um desvio sistemático, numa direcção específica, da nossa percepção de um certo fenómeno. Um dos mais comuns está relacionado com a acessibilidade e a novidade da informação. Um outro tipo de enviesamento cognitivo muito comum é o pessimismo, a nossa tendência para nos focarmos mais nas eventuais componentes negativas de um fenómeno do que nas positivas. O medo conduz muitas vezes à tomada de decisões erradas. a ideia de que a civilização humana está em declínio e de que o futuro será pior que o passado. 

Uma pessoa ingénua faz uma imagem positiva da vida sem tomar o cuidado de separar os mal intencionados. O ingénuo, vivendo num aparente estado de pureza, tem dificuldade em ver maldade nas pessoas. A ingenuidade traz consequências desastrosas na vida de quem enxerga tudo em “cor de rosa”. Esse comportamento é muitas vezes elogiado por familiares, porque a primeira impressão é de que a ingenuidade parece bonita, prodigiosa e é confundida com pureza de alma. A bondade está impregnada em seu ser e por isso consegue ver o que cada pessoa tem de melhor.

Os cientistas ingénuos gostam das estatísticas, dando pouco interesse a casos individuais, ou pessoais. Por exemplo, se a taxa de letalidade da infecção pelo Covid-19 é de apenas 3%, então não há razões para estarmos preocupados porque o risco global é muito baixo. Temos tendência para darmos mais atenção aos factos que confirmam as nossas crenças. Argumentam que os enviesamentos resultam principalmente da nossa incapacidade para analisar de forma fria e objectiva a informação que temos disponível. Por um lado, os media, pressionados pela necessidade de vender conteúdos e de chamar a atenção do público, dão um peso desmesurado a notícias bombásticas e negativas, omitindo informação mais objectiva mas menos sensacionalista. Por outro lado, as redes sociais, nas suas mais diversas formas, reforçam o pensamento de manada. E concluem dizendo que existem poucas razões para temer uma situação catastrófica global e muito menos uma ameaça para a civilização. O risco mais grave causado por este vírus, tal como pela gripe comum, será a eventual sobrecarga dos sistemas de saúde, limitando a capacidade de resposta e reduzindo a qualidade do serviço prestado. 

Thomas Hobbes [1588-1679] defendia a ideia segundo a qual os homens só podem viver em paz se concordarem em submeter-se a um poder absoluto e centralizado. O Estado não pode estar sujeito às leis por ele criadas pois isso seria infringir a sua soberania. Para ele, a Igreja cristã e o Estado cristão formavam um mesmo corpo, encabeçado pelo monarca. Quando Hobbes tinha 30 anos e já havia visitado a Europa continental pela primeira vez, uma revolta na Boémia daria início à Guerra dos Trinta Anos. Isto só veio reforçar a sua própria visão pessimista acerca da destrutiva natureza humana. Apenas 12 anos após o início da guerra no continente europeu, na Inglaterra, disputas políticas entre o Parlamento e o rei, dão início a uma guerra civil que perdurará por 10 anos. Segundo a teoria de Hobbes, se o homem já nasce mau, ele não sabe viver em sociedade e precisa de um estado autoritário, que dite as regras, as normas de convivência. Essa tese vai fundamentar a sua visão de estado absoluto. A visão é de que o homem não tem a pretensão de ser social. Ele é mau, o que causa insociabilidade. Para se tornar social, é preciso formar um novo pacto, um novo acordo entre homens, para que eles possam renunciar à coisa mais importante num estado selvagem, que é a liberdade”,

Rousseau [1712-1778], perguntava: c
omo salvar o homem que, saindo com uma natureza bondosa das mãos do criador, será corrompido ao ser lançado na sociedade? Como preservar a bondade deste num meio em que a corrupção se instaurou na sociedade? As instituições educativas corrompem o homem e tiram-lhe a liberdade. Para a criação de um novo homem e de uma nova sociedade, seria preciso educar a criança de acordo com a Natureza, desenvolvendo progressivamente os seus sentidos e a razão com vista à liberdade e à capacidade de julgar. O homem adquiria as suas mazelas morais no estado social. Era preciso evitar que a maldade se instaurasse no coração da criança desde a mais tenra idade, desenvolvendo para isso os seus potencias e afastando-a dos males da sociedade. 

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