quarta-feira, 18 de março de 2020

O mundo visto com método, mas sem plano. O sentido para o risco


Há muitas pessoas, e não apenas aquelas cuja personalidade entra no diagnóstico de perturbação paranoide, que acreditam que tudo o que lhes acontece obedece a um plano, a uma providência. É bom que se diga que nem todas as pessoas que acreditam que podem ver o seu destino nas cartas do Tarot, ou nas cartas dos horóscopos traçados por astrólogos famosos, quiromantes, ou seja, uma parafernália de crenças alojadas na esfera da superstição, são paranóicas segundo os critérios de diagnóstico psiquiátrico dentro do espetro paranoide.

Essas pessoas dizem coisas do género: “Tenho-me perguntado o que teria acontecido se… de certeza que foi isto e aquilo que aconteceu”. A certeza é possível que nunca chegaremos a ter. O que podemos ter como certo, basta um gesto inadvertido de um qualquer negociante anónimo algures no caos. E isso é o bastante para de um dia para o outro a vida de todo o mundo ser virada de pernas para o ar devido a minudências do acaso. É verdade que a ciência é cada vez melhor, e amanhã será melhor do que hoje. Mas também é verdade que quanto mais se sabe cientificamente, mais nos enredamos numa sequência infinita de causas e efeitos. A capacidade de assimilação do nosso cérebro é limitada, porque o túnel por que te de passar a informação é uma espécie de gargalo, a que chamamos atenção. Não conseguimos suportar uma realidade demasiado complexa. Foi por isso que, desde tempos imemoriais, tivemos que recorrer a aforismos que nos dessem a sensação de serem regras a que devíamos atender: "em abril águas mil"; "um mal nunca vem só". Que hoje em dia são levadas para a caricatura, para a charada, como: "chuva em novembro, Natal em dezembro". Nós bem sabemos que o mundo não é assim tão simples como nós desejamos. Mas dá-nos jeito, tranquiliza-nos que façamos de conta que não temos outro remédio.

Os matemáticos não se têm cansado de nos dizer por estes dias que o crescimento diário do número de infetados com o Covid-19 é exponencial. É ilustradora aquela história oriental do sábio que inventou o xadrez. O rei quis recompensá-lo pela invenção. Ao perguntar-lhe qual era o seu desejo, o sábio disse: "basta colocar um grão de arroz na primeira casa do tabuleiro e depois preencher o resto do tabuleiro duplicando o número de grãos de casa em casa. O rei sorriu, por um pedido aparentemente tão modesto. Mas logo se apercebeu do logro. O sábio tinha pedido mais grãos de arroz do que aqueles que era possível existir em todo o mundo. É a um crescimento assim tão rápido, no qual um determinado número é continuamente duplicado que os matemáticos dão pelo nome de crescimento exponencial. É o mesmo efeito da bola de neve: um minúsculo fragmento de gelo solta-se e põe-se em movimento. Pouco tempo depois uma avalanche atinge o vale. É o que acontece quando cometemos imprecisões, por minúsculas que pareçam. Ou quando um grosseiro boato atinge milhões de pessoas nas redes sociais. Tudo isto tem a ver com os chamados sistemas caóticos, metaforizados com a paráfrase do bater das asas de uma borboleta em Macau provocar uma tempestade nos Açores. Mesmo com a ajuda dos melhores computadores, é praticamente impossível fazer previsões da dinâmica de um sistema não-linear para além de um período de tempo extremamente reduzido.

Este é o tipo de questões que provocam em nós um duplo efeito: fascínio e aflição. Tempo e acaso, dois grandes tiranos da humanidade. Muito pouco da Natureza obedece às nossas ordens no duplo sentido: determinação e ordenação. O primeiro estremecimento que é de pânico, a ciência vem depois transformá-lo em deslumbramento. Os matemáticos provam que o acaso ocorre mesmo quando tudo está aparentemente em ordem. Os físicos descobrem que não o podemos evitar. Os biólogos resignam-se ao facto de toda a vida – desde os vírus aos humanos – obedecer à evolução por seleção natural da variação por mutação. Os psicólogos acatam os princípios da indeterminação, incerteza e imprevisibilidade, que estão na base da nossa personalidade para amar. E os neurocientistas explicam aos filósofos como o cérebro e a mente são um só, para que estes nos digam por que temos tanta dificuldade em perceber a nossa força geradora de tantos paradoxos e contradições entre o amor e a guerra.

Hoje o mundo é mais complexo do que o mundo da pandemia anterior. E é cada vez mais imprevisível. Ao avaliarmos a maneira como os ingleses começaram a delinear a sua estratégia de ataque ao novo coronavírus, quase oposta à dos países continentais da Europa, verificamos que os ingleses arrastam uma longa tradição de diferenças, em relação aos outros europeus, que ainda perduram nos dias de hoje. O Brexit é apenas o acontecimento relevante mais recente. A língua inglesa desde sempre acentuou os aspetos amigáveis do risco. A palavra inglesa para 'risco' é chance. 'Correr um risco', eles dizem: to take a chance. Por conseguinte, chance significa também oportunidade, e até sorte. Dando de barato que a neurociência mainstream é de origem anglo-saxónica, isto é, cujas bases filosóficas estão filiadas na filosofia analítica, cuja matriz é anglo-saxónica, tradicionalmente diferente da filosofia europeia continental franco-alemã, no fundo o que os neurocientistas dizem é que os nossos cérebros funcionam como os ingleses dizem: é o acaso que não só é o motor da evolução da vida, como é também o acaso que comanda as nossas vidas, e toda a criatividade humana. Até mesmo as nossas características mais humanas – como o altruísmo, a compaixão, a capacidade de estabelecer valores morais – não existiriam se o nosso comportamento fosse sempre previsível.

No entanto, há sempre um preço a pagar por essas escolhas, ou opções. E pelos vistos, o primeiro-ministro inglês, e todos os seus consultores na área da saúde, estavam dispostos a pagar esse preço com insegurança, e número de mortos dados ao sacrifício. Aliás, foi assim que os ingleses, inspirados por Churchill, se comportaram aquando dos bombardeamentos alemães a que estiveram sujeitos durante a 2ª Guerra Mundial. Ora, pela parte que nos toca, os portugueses livraram-se da morte e da insegurança na 2ª Guerra Mundial, inspirados por um primeiro-ministro medricas, mas astuto, que na época se designava por presidente do conselho, e de nome Salazar. E a verdade é que os portugueses não são dados muito ao risco, como os ingleses, a maioria das pessoas não se sente bem em situações inseguras. É por isso que as evitam sempre que podem, acabando por privar-se de inúmeras oportunidades. Mas, num mundo cada vez mais complexo e intrincado, somos constantemente obrigados a tomar decisões sem estar na posse de todas as informações necessárias. Não vale apenas sonhar com a crença de que está nas nossas mãos o poder de planear a nossa vida até ao mais ínfimo pormenor. 

De qualquer forma, os riscos ocupam um espaço maior nas nossas cabeças, do que as oportunidades. A evolução da teoria darwinista produziu o medo como sinal para nos proteger dos perigos. Por isso, o sentimento negativo é o que predomina. Ainda que racionalmente, e do ponto de vista objetivo, tenhamos mais razões para termos esperança no futuro, do ponto de vista subjetivo o que predomina é o pessimismo, a preocupação, o senhor Seguro morreu de velho e a dona Prudência fez-lhe o enterro.

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