quinta-feira, 9 de abril de 2020

Ser Mortal



Há pessoas que mudam o nosso imaginário. Encontramo-las nos lugares mais inesperados. E neste momento, nos meios que aparentemente estavam adormecidos aos olhos mundanos, saltaram para o mundo numa vibração clamorosa. 
Refiro-me às Unidades de Cuidados Intensivos (UCI), e às Residências para idosos. Essas pessoas estão a agora a aparecer em todo o lado, e bem. A nossa batalha, por sermos mortais, é a batalha para preservarmos a integridade da vida. A doença e a velhice já tornam a luta suficientemente difícil. Por isso, os profissionais e as instituições, a quem pedimos ajuda, têm bem a noção que não estão lá para dificultar ainda mais as coisas. Isto não significa que temos de sacrificar a nossa autonomia, só porque precisamos de ajuda, embora existam diferentes noções de autonomia. Uma delas é a autonomia como liberdade de ação: viver de maneira totalmente independente, sem coação e limitações.

De resto, devo lembrar que as nossas vidas estão inerentemente dependentes umas das outras, e sujeitas a forças e circunstâncias que escapam ao nosso controlo. A quantidade de liberdade que temos na vida não serve de bitola para aferir o valor dessa mesma vida. Assim como a segurança é um objetivo vazio, e inclusive contraproducente para nos servir de rumo na vida, o mesmo acaba por acontecer com a autonomia. O importante é que a autonomia nos proporcione a liberdade necessária para sermos os próprios autores do rumo das nossas vidas. Aconteça o que acontecer, queremos manter a liberdade de moldarmos a nossa vida de maneira coerente com o nosso feitio e lealdades.

Quem melhor tem idealizado e posto a funcionar casas de repouso para idosos, tem verificado que as melhores são casas pequenas e comunitárias, não mais de doze residentes, o mais aproximado das casas de família alargada, em que convivem no mesmo espaço os avós, filhos e netos. A sala as refeições é comum, mas os quartos são individuais. Refeições familiares tomadas à volta de uma mesa grande. E este modelo é compatível com a privacidade que cada um precisa. Perder a privacidade é uma das coisas, para a maioria das pessoas, que mais as assusta. As pessoas gostam de ter os seus momentos de solidão. Isso não significa isolamento. Há momentos em que as pessoas gostam de pensar assim: "Não tardará muito, mas também não há nada que eu possa fazer”. Às vezes as pessoas ficam fartas da doença e da velhice: “Vou morrer, e daí?”

À medida que as capacidades das pessoas se deterioram, por causa da idade, ou da progressão de uma qualquer patologia, a nossa tentação é fazer tudo para o medicalizar em excesso. Mas é preciso refrear a obstinação para mexer, consertar, controlar, isto é, usando uma metáfora corriqueira, para fazer obras num corpo em ruínas por dá cá aquela palha. O raciocínio chave é: quando é que devemos tentar reparar e quando é que devemos deixar o corpo sossegado.

O dia-a-dia numa UCI dos dias de hoje é muito semelhante em todas elas. Mas muito diferente dos outros dias antes da pandemia. Vejamos a descrição de outros dias passados de uma médica de uma UCI, a inteirar outro colega não intensivista da situação: "Estou a gerir um armazém de moribundos. Dos dez doentes aqui internados só dois têm hipótese de sobreviver e ter alta para suas casas. De resto é uma senhora de oitenta com uma pneumonia; outra de setenta com cancro e metástases pulmonares; outra de oitenta e muitos com insuficiência respiratória e renal, já estando aqui há duas semanas. A doente do cancro, tinha decidido não fazer mais tratamentos, mas o oncologista insistiu para que mudasse de ideias.”

As pessoas com uma doença grave e terminal têm prioridades além de simplesmente prolongarem a vida. As suas principais preocupações incluem evitar o sofrimento, reforçar laços com a família e os amigos, estar mentalmente alerta, não ser um fardo para os outros e alcançar uma sensação de que a sua vida valeu a pena porque teve um sentido. Mas muitas vezes acontece que são os filhos que se recusam a deixar morrer um seu familiar nessa situação, pedindo aos médicos que façam tudo: cânulas, tubos, traqueotomia …

A questão, que não é apenas de custos, que é, também é de criar um sistema de cuidados de saúde que ajude efetivamente as pessoas a alcançarem o que é mais importante para elas no fim da vida. Países que costumam ter boas estatísticas, e que fazem contas como a Holanda, a Suíça ou os Estados Unidos, chegam todos a números semelhantes: no último ano de vida das pessoas, 5% gasta 25% do orçamento da saúde; as doenças incuráveis representam uma grande parte desses custos.

À medida que o nosso tempo se começa a esgotar, todos procuramos conforto em pequenos prazeres: companheirismo, rotinas diárias, o sabor de boa comida, o calor do sol no rosto. Passamos a interessar-nos menos pelas recompensas de conquistar e acumular. São recompensas mais simples como ser e estar. Mas apesar de nos sentirmos eventualmente menos ambiciosos, há uma preocupação: o nosso legado. E temos uma necessidade profunda de identificar objetivos fora de nós próprios que nos deem a sensação de que a vida valeu a pena ser vivida porque teve um sentido. Todos buscamos causas, umas maiores do que nós, outras nem tanto: família, país, valores morais; ou apenas uma casa, uma árvore, um animal de estimação. O importante é ao atribuirmos valor à causa, e ao considerarmos que ela merece sacrifícios, darmos um sentido à nossa vida. Isto é o oposto do individualismo. O individualista coloca os seus próprios interesses acima de tudo. Para um individualista a lealdade a uma causa, que não tenha nada a ver com o interesse próprio, é uma noção estranha.

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