quarta-feira, 1 de abril de 2020

Um inimigo invisível - [1]


Um inimigo invisível chegou de rompante às nossas vidas e obrigou-nos a mudar muitos hábitos. Mas, em caso de infeção, como é que o coronavírus SARS-Cov-2 nos afeta? E porque é que pode afetar as pessoas de forma diferente? Ou por que razão as crianças têm uma forma menos grave da infeção? Ainda são muitas as questões que se colocam aos cientistas sobre este vírus. Mas as perguntas ainda são mais embaraçosas, tanto para cientistas como para teólogos, se quisermos saber como é que o Universo chega a uma situação destas, em que um objeto tão minúsculo, praticamente invisível, inferniza tanto a vida humana. A ignorância científica atual, para uma pergunta destas, é da mesma grandeza da ignorância teológica acerca dos desígnios do Ser Supremo. É inabarcável, insondável, inefável, imprevisível ... os seus desígnios são para os teólogos incompreensíveis, pelo que louvá-lo como bom ou justo é submetê-lo ao leito de Procustes da nossa contingência axiológica. A única descrição que assenta no Ser Supremo é pela via da negativa, que na sua linguagem os teólogos chamam apofática.


O cancro, a inundação ou o incêndio são fenómenos naturais eticamente neutros, ainda que constituam ameaças para os humanos. Nós sermos atacados por um leão é em si mesmo uma coisa boa, na medida em que nós não somos mais do que uma refeição para o leão que precisa de se alimentar para sobreviver, segundo a lógica do Ser Supremo. O capitão Ahab comete uma loucura quando confunde a Moby Dick com a essência do Mal. A sua perseguição é uma blasfémia aberrante, como o censura Starbuck numa célebre passagem do grande romance de Melville. Tudo isto faz parte das causas e efeitos naturais, pelo que não comprometem de modo algum a justiça divina. Mais difícil, porém, é alargarmos este critério até às enfermidades provocadas pela pandemia de um vírus que atingem os mais velhos indefesos sem misericórdia. A degeneração humilhante imposta pela velhice.


Tudo isto é natural e o decurso da Natureza, ao que parece, não pode prescindir de tantos horrores. Mas o que não se percebe é porque outros males que correspondem inequivocamente à perversidade intencional: a tortura, a escravidão, os campos de concentração, as chacinas constantes que ensanguentam as páginas da História escapam à justiça divina. Será que o Ser Supremo preservou Estaline e Hitler para que não percamos a referência do que é o bem e do que é o mal? Simon Blackburn, filósofo britânico, chamou a isto o argumento 007. Na primeira novela de James Bond- Casino Royal - a personagem criada por Ian Fleming, lamenta ter acabado com o seu inimigo Le Chiffre, pois assim privara o Diabo de um dos seus mais distintos divulgadores. Ao pobre Diabo não lhe damos nem uma oportunidade. Existe um Livro de Deus sobre o bem, como ser bom e tudo isso. Mas não existe um Livro do Mal sobre o mal e como ser mau. O Diabo não tem profetas que redijam os seus Dez Mandamentos, nem uma equipa de autores para escrever a sua biografia. De maneira que, os malfeitores deste mundo são como apóstolos bravios do Maligno, cuja função é a de não nos deixar esquecer em que consiste o mal. Acabar com eles levar-nos-ia a perder as referências. Talvez Deus partilhe este critério de James Bond.

Um pequeno milagre que fizesse desaparecer do mapa os Hitlers e os Estalines pareceria muito mais útil do que transformar a água em vinho num festejo matrimonial particular, argumenta um humorista quando lhe apresentam o milagre das Bodas de Caná. Porquê esses milagres, e porquê precisamente nessa altura. Todas estas questões muito sérias, apesar de tudo, não escapam ao bom humor das anedotas. Em finais do século XIX, o evangelista inglês George Borrow viajou por Espanha distribuindo bíblias protestantes às pessoas mias humildes do campo. Mas um dia teve de enfrentar um camponês andaluz; quando este soube a que Igreja pertencia, negou-se a continuar a escutá-lo com o seguinte argumento irrefutável: "Escute, eu não acredito na religião católica que é a verdadeira, muito menos vou acreditar na sua, que é falsa. Confrontados com objeções, os crentes refugiam-se no mistério inescrutável da vontade divina, esse asilo de toda a ignorância, como disse Espinosa. Os crentes mais ingénuos aceitam-na sem especial dificuldade. Basta praticar os rituais e cultos tradicionais, sem enveredar por estudos teológicos muito complexos.


Termino com a mesma interpelação em relação ao inimigo invisível, ser invisível é incomparavelmente mais interessante do que toda a essência palpável que conhecemos por mais inenarrável e indizível que seja.


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