quarta-feira, 8 de abril de 2020

O espaço do nosso confinamento, na perspetiva do xamã e Michel Foucault



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Com o espaço aéreo mais limpo, não apenas de poluição, mas também de aeronaves, já se ouve de novo o clamor dos xamãs. O espaço para os xamãs é uma região onde decorre toda a sua atividade. Para nós outros uma região abstrata, bem entendido, para eles mais acessível, alguma coisa da realidade. Os xamãs nunca viram o tempo e o espaço como abstrações obscuras, como nós os vemos. Para eles, tanto o tempo como o espaço, ainda que incompreensíveis em suas formulações, eram uma parte integrante do viver humano. Os xamãs têm uma outra unidade cognitiva chamada a "roda do tempo". O tempo, como um túnel de comprimento e largura infinitos, um túnel com sulcos de reflexão. Um número infinito deles. As criaturas vivas obrigadas, pela força da vida, a seguir um determinado sulco. Ligado a ele, para viver através dele. O xamã e o guerreiro, por meio de um ato de profunda disciplina, focalizam a sua atenção plena na "roda do tempo", com o propósito de fazê-la girar. Os guerreiros que conseguirem fazer girar a "roda do tempo" podem olhar em qualquer sulco e tirar dele o que quiserem. Estar livre da força enfeitiçadora de olhar somente num desses sulcos significa que os guerreiros podem olhar em qualquer direção: quer o tempo recue ou avance sobre eles. 

Michel Foucault trata a questão do espaço como uma espacialidade ambivalente. Toda essa abordagem está patente - desde a “História da loucura na idade clássica” (1961) até às suas últimas obras sobre a “História da sexualidade” (1978), embora ele tenha resistido
 a ser chamado de geógrafo pós-moderno. Em todo o caso, as suas observações mais explícitas, e reveladoras da importância relativa do espaço e do tempo, entretanto, aparecem, não nas suas grandes obras publicadas, mas sim, de maneira quase inócua, nas palestras e, após algumas indagações persuasivas, em duas entrevistas reveladoras: “Questions on Geography” [Perguntas sobre geografia], 1980; e “Space, Knowledge, and Power” [Espaço, saber e poder], 1984.

Afastando-se do “espaço interno” da brilhante poética de Bachelard (1969), e das descrições regionais intencionais dos fenomenólogos, Foucault concentrou a nossa atenção numa outra espacialidade da vida social, num “espaço externo” - o espaço efetivamente vivido (e socialmente produzido) dos locais e das relações entre eles: o espaço em que vivemos, que nos retira de nós mesmos, no qual ocorre o desgaste da nossa vida, nossa época e nossa história, o espaço que nos dilacera e corrói, é também, em si mesmo, um espaço heterogéneo. Em outras palavras, não vivemos numa espécie de vazio dentro do qual possamos situar indivíduos e coisas. Não vivemos num vazio passível de ser colorido por matizes variados de luz, mas num conjunto de relações que desenham localizações irredutíveis umas às outras, que não se sobrepõem entre si. 

Esses espaços heterogéneos de localizações e relações – as heterotopias de Foucault – são constituídos em todas as sociedades, mas assumem formas muito variadas e se modificam ao longo do tempo, à medida que “a história se desdobra” na sua espacialidade inerente. Foucault identifica muitos desses locais: o cemitério e a igreja, o teatro e o jardim, o museu e a biblioteca, a feira e a “cidade das férias”, o quartel e a prisão, a sauna escandinava e o bordel. Ele contrasta esses “lugares reais” com os “espaços fundamentalmente irreais” das utopias, que apresentam a sociedade numa “forma aperfeiçoada” ou “virada de cabeça para baixo”. O seu papel consiste em criar um outro espaço real, tão perfeito, meticuloso e bem-disposto, quanto o nosso é desarrumado, mal construído e confuso. Este último tipo seria a heterotopia, não da ilusão, mas da compensação. Com esses comentários, Foucault expôs muitos dos instigantes rumos que iria tomar no trabalho de sua vida inteira e, indiretamente, levantou um poderoso argumento contra o historicismo – e contra as abordagens vigentes do espaço nas ciências humanas.

Voltando ao clamor do xamã, a roda do tempo é uma influência poderosa que atinge a sua vida. Vida, espaço e tempo, parecem ligados por uma conexão semelhante a uma mola que tem vida própria. Essa conexão, conforme a explicação dada pelo conhecimento dos xamãs, é precisamente aquilo a que eles chamam a "roda do tempo". Esse é o entendimento dos xamãs, não somente o entendimento do Universo, mas os processos de viver e coexistir num Mundo. E mais importante ainda, apontam para a possibilidade de usar dois sistemas de cognição: Universo e Mundo. Ora aqui está, o espaço heterogéneo e relacional das heterotopias de Foucault. Não é nem um vazio desprovido de substância, a ser preenchido pela intuição cognitiva, nem um repositório de formas físicas a serem descritas em toda a sua resplandecente variabilidade fenomenológica. Trata-se de uma espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada no contexto das práticas sociais, simultaneamente concreta e abstrata. É um espaço raramente visto, pois tem sido obscurecido por uma visão bifocal que, tradicionalmente, encara o espaço como uma construção mental ou uma ilusão dual.

Para ilustrar a sua interpretação inovadora do espaço e do tempo, e para esclarecer algumas das polémicas, amiúde confusas, que vinham surgindo em torno dela, Foucault voltou-se então para os debates corriqueiros sobre o estruturalismo, uma das mais importantes vias do século XX para a reafirmação do espaço na teoria social crítica. Foucault reconhecia, no desenvolvimento do estruturalismo, uma visão diferente e instigante da história e da geografia, uma reorientação crítica que estava vinculando o espaço e o tempo de maneiras novas e reveladoras. O estruturalismo, ou, pelo menos, aquilo que se reúne sob essa denominação um tanto genérica demais, é o esforço de estabelecer, entre elementos que poderiam ligar-se num eixo temporal, um conjunto de relações que faz com que eles apareçam justapostos, contrabalançados uns com os outros, em suma, como uma espécie de configuração.

Na verdade, o estruturalismo não implica uma negação do tempo; implica uma certa maneira de lidar com o que chamamos tempo e com o que chamamos história. Essa “configuração” sincrónica é a espacialização da história, a feitura da história entremeada com a produção social do espaço, a estruturação de uma geografia histórica. Isso não constituiu uma simples mudança de preferência metafórica, como frequentemente parecia acontecer com Althusser e outros, que estavam mais à vontade com o rótulo de estruturalistas do que Foucault. Tratou-se da abertura da história para uma geografia interpretativa. No intuito de enfatizar o caráter central do espaço para o olhar crítico, especialmente no tocante ao momento contemporâneo.

Seja como for, a angústia do nosso tempo de confinamento está fundamentalmente relacionada com o "espaço", sem dúvida muito mais do que com o "tempo". Provavelmente, o "tempo" se nos afigura como sendo apenas uma das várias operações distributivas possíveis dos elementos dispostos no "espaço".

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