domingo, 5 de abril de 2020

Hegel de volta


A pandemia começou no Extremo Oriente, onde somente um homem é livre, o déspota. Depois ela expandiu-se pelo Médio Oriente, onde apenas uns poucos são livres, os senhores de escravos e as oligarquias, para finalmente chegar ao Ocidente, artificialmente nivelado de igualdade, conforme demandado pelos democratas, não apenas uma categoria económica.

O mundo de Hegel é um mundo do Estado, leis, disciplina, de obediência àqueles que a História designou para serem líderes: e ele faz soar uma nota que então reverberou cada vez mais alto nos séculos XIX e XX : desprezo por aqueles que se revoltam contra os sistemas como tais, que desejam opor o seu senso moral pessoal e privado à marcha da História. Ele fala do destino terrível mas inevitável de gente trivial que busca a felicidade pessoal, pessoas benévolas e mentalmente confusas de todo o tipo, que prepararam para si um vulcão condenado pela História. Hegel está ao lado da lava, e contempla-a com uma alegria perversa. 

As regras metafísicas de Hegel foram desacreditadas por muitos anos. A sua identificação da causa e efeito com a vontade e consequência foi um erro lógico. Sua pressuposição de que as instituições podiam ser racionais no sentido em que as pessoas o são, que existe um espírito histórico real - uma personalidade - que se encarna no mundo das coisas tanto quanto no mundo das pessoas, é uma peça de mitologia difícil de ser levada a sério hoje em dia. Mas a perspectiva geral de Hegel é uma força muito poderosa, talvez ainda mais no presente que em seu próprio tempo. As suas categorias históricas levaram certamente a grandes avanços no tratamento histórico de muitos temas. Ao representar tudo evoluindo de acordo com a razão, e inteligível apenas nesses termos, ele aumentou enormemente a importância do conceito de História. Hoje nas academias ninguém liga às perguntas daquelas pessoas que insistem naquela frase batida: "isto anda tudo ligado", ou naquele slogan bacoco: "não há coincidências". Há pessoas que estabelecem um fio condutor que liga a viragem do século e do milénio com a queda simbólica das torres gémeas no 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque; seguido da série de atentados terroristas e a guerra na Síria; a aceleração do degelo e o aquecimento global; e agora a pandemia. 

Parece-me que a “discussão sobre os direitos” tem a função de permitir que as pessoas exijam uma esfera de soberania pessoal, no qual a sua escolha se torna a lei. E, por sua vez, as esferas de soberania pessoal têm uma função que, mais precisamente, é a de nos possibilitar aceitar obrigações de forma livre quando se estabelecem por relações consensuais. São os limites atrás dos quais as pessoas se podem posicionar, não podendo ser ultrapassados sem transgressão. Portanto, a função primária da ideia de um direito é identificar algo como dentro do limite do que se é e do que se tem. Se eu tenho o direito de andar na rua, então Vossa excelência não me pode mandar fechar em casa sem uma causa de força maior e justificável. Ao determinar tais direitos, definimos os pontos fixos, os lugares de segurança, dos quais as pessoas podem acatar e concordar. Sem esses pontos fixos, acordo livre dificilmente ocorreria. Logo, os direitos nos permitem estabelecer uma sociedade em que as relações consensuais são a norma, e elas fazem isso definindo para cada um de nós a esfera de soberania pessoal. Um direito é parte da cerca que define o território em que tenho de ficar confinado.

O conceito de um direito é baseado na metafísica do Self. É um instrumento fundamental de compreensão humana, definindo um caminho de conflito e de conciliação que ocorre no Lebenswelt (o mundo em que vivemos). O quadro final é este: eu existo como um sujeito, isto é, como um ser autoconsciente, com conhecimento imediato de um domínio interior. Mas isso pressupõe que eu existo num mundo com o qual eu me identifico. Por sua vez, a referência ao redor pressupõe outras pessoas com as quais eu compartilho uma linguagem e, portanto, uma perspetiva em primeira pessoa. E a linguagem pressupõe um mundo compartilhado (Lebenswelt), no qual os outros são representados como sujeitos, como eu. Em suma, a autoconsciência pressupõe todos aqueles estágios “tardios” de alienação do outro, e de reconciliação com o outro, como eles são descritos na narrativa de Hegel.

Para Hegel, o Universo é uma entidade panteísta que pensa, sente e deseja, cheio de ideias com tudo aquilo que contém: pedras, plantas, animais, homens, comunidades, Igrejas, Estados. Mas é no processo histórico que o Universo se autorreconhece. Toda a mudança, toda a ação ocorre de acordo com leis, e todas as leis são em última análise, como as leis da lógica, transparentemente inteligíveis. Como são as leis que regem aqueles processos pelos quais o Universo se realiza e obtém o que quer, elas são autoimpostas. Compreender tudo é compreender por que tudo deve ser como é. Agir livremente é agir de acordo com uma vontade que persegue fins para os quais não há alternativas.

Hegel traça a ascensão do homem desde a condição em que ele é guiado pelas operações ocultas da razão ainda não plenamente consciente de si mesma, assumindo assim que no princípio eram os instintos puramente apetitivos, que mais tarde se submeteram aos princípios da razão. Só o que é verdadeiramente racional é verdadeiramente real. E por "racional" Hegel quer dizer algo muito maior que a razão que rege o pensamento consistente, ou o tipo de compreensão que ocorre com o senso comum ou com a ciência. A razão move-se por contradições dialéticas: entre o conhecimento acumulado que se consolida gradualmente; e o conhecimento que se dá por saltos revolucionários. A razão é a senhora do Universo, ao mesmo tempo o fundamento no qual todos os acontecimentos, estados e situações se explicam. O padrão em termos do qual tão somente algo possui significado, em termos do qual a sua função pode ser discernida, de modo que em última análise tudo está interligado e forçado a ser o que é por sua posição única no sistema.

A lei, é o que cria aqueles sentimentos de lealdade às instituições. Se torna obediência racional à marcha da História, da qual somos uma parte intrínseca, e à qual damos o nosso contributo. A célebre proposição de que o real é o racional e o racional o real deve ser compreendida nesse sentido: que só o que pertence ao plano global é racionalmente necessário. Esse processo de reconhecimento é sempre a perceção das relações inevitáveis que tornam as coisas e as pessoas o que elas são em termos de algum sistema ou contexto mais amplo a que pertencem e a que são intrínsecas.

Usando essa distinção nítida entre o nível racional e a consciência meramente utilitária ou outras formas de consciência pré-racional, Hegel desenvolve a sua noção de Estado e o seu conceito de grandeza. Como a liberdade é para ele a expansão da personalidade, o Estado parece-lhe ser a organização totalmente racional das vidas dos seres humanos. Cada um condiciona a vida dos outros e ocupa um lugar único no sistema social. Conhecemos as leis, compreendemos o conjunto social de que fazemos parte. O Estado é a estrutura perfeitamente racional em que os homens compreendem de forma plena as suas relações inevitáveis entre si e com tudo o mais, e que eles perpetuam desejando-o livremente, porque são seres racionais com vontades racionais, isto é, que só desejam o que verdadeiramente satisfaz as suas naturezas. De acordo com Hegel, a dialética é uma estrutura que podemos elucidar em todas as práticas em que há liberdade, consciência ou conhecimento como metas a serem alcançadas. Tais práticas “começam” de um momento de imersão, no qual o sujeito tem uma consciência que é “imediata” e “abstrata”. O sujeito avança em direção ao conhecimento concreto apenas por meio de um movimento que vai para fora, em direção àquilo que “limita” e “determina” as fronteiras do Self. O sujeito experimenta esse fator limitador como alguma coisa que é um outro, um objeto genuíno de conhecimento e não simplesmente como um aspeto do Self.

A procura por conhecimento gera conflito, sem o qual não pode haver nenhum reconhecimento de um mundo objetivo, ou do lugar do sujeito dentro desse mesmo mundo. O conflito é então superado, transcendido a um novo nível de liberdade, do qual o processo dialético pode começar novamente. A trajetória completa da vida consciente pode ser, e de facto deve ser descrita nesses termos, como movimentos sucessivos que vão do abstrato e do imediato ao concreto e ao determinado, indo através do conflito até o momento de transcendência quando a oposição é superada e reconciliada. Nesse quadro, o padrão de unidade inocente, seguida pela separação culposa, depois a reconciliação num estado de conhecimento, é apresentada como a estrutura fundamental da consciência.

Se olharmos a dialética hegeliana como um “mito de origem”, tudo isso passa a ter uma nova compreensão. Não se trata de ver as coisas descritas como “momentos” ou “estágios” que se sucedem no tempo, mas sim que eles se desdobram na mente, numa relação de dependência mútua. Segundo a narrativa dialética, a autoconsciência começa na perceção imediata (“sem critério”) de um mundo unificado, onde o interior e o exterior ainda não estão diferenciados. Mas essa perceção exige um objeto, e o objeto da perceção, uma vez “postulado”, está fora do Self e também entra em conflito com ele ao apresentar uma fronteira e um limite aos desejos subjetivos. Os objetos são “para serem usados”. E esse reconhecimento abre o caminho de volta para a alienação. Ou então para o caminho na direção de uma nova forma de unidade. Tal unidade não é a do Self no seu interior, a autoidentidade vazia da qual o processo se iniciou, mas uma unidade do Self e do Outro, a reconciliação nas condutas mútuas dos sujeitos que se reconhecem como seres livres. É nesse ponto que a vida moral, a vida em sociedade, começa.

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