sexta-feira, 3 de abril de 2020

É de declínio que se fala, do nosso estado de incerteza


Depois de os especialistas analisarem a complexidade, ponderarem as suas razões, e apresentarem as suas conclusões, alguém tem de assumir o simples, e por isso mesmo muito difícil. Vamos atacar, vamos continuar à espera … sim ou não? Esse é o papel do chefe, cujos fundamentos nunca se esgotam nas razões dos especialistas. Cabe aos especialistas apresentar a situação na sua complexidade, e ao chefe simplificá-la sob a forma de uma decisão.

A necessidade do chefe faz-se sentir especialmente em situações de crise profunda como esta. Nesta, como em muitas outras situações, o rebanho divide-se: de um lado os que acham que se deve atacar já, que se deve mudar o que está, e coisa assim; e do outro lado os que acham que se deve esperar, que se deve manter tudo como está, e coisas assim. E a função do chefe é encarnar a divisão, como única via de uma verdadeira unidade. 


Os estados de emergência não podem durar muito por causa do cansaço. É um momento de intensa participação coletiva num espírito de comunidade. Mas o cansaço não é apenas da ordem psicológica, é também da ordem ontológica da vida em sociedade. Acresce a isso o facto de ainda não nos termos recuperado completamente da crise de 2008. O sistema entrou em colapso, e dirigiu toda a sua agressividade contra a sociedade. Poderá o Serviço Nacional de Saúde sobreviver? Tem de sobreviver, assim como o Estado Social. É hoje evidente que a forma tradicional do Estado Social tem de ser modificada, na medida em que, para além da deterioração do estado social, ficou patenteado nesta crise de pandemia vírica, que os privados na saúde, na educação e segurança, só têm a sua razão de ser numa concertação de coadjuvação. A defesa do Estado Social, e a garantia da sua sustentabilidade por meio de um financiamento justo, transparente e recíproco, é uma das necessidades fundamentais que devemos defender para uma verdadeira coesão social.

Em Alice do Outro lado do Espelho: A questão é – disse Alice – se se pode fazer com que as palavras queiram dizer tantas coisas diferentes. A questão é saber – disse Humpty Dumpty – quem é o chefe, e é tudo. A velha lição de Humpty Dumpty é a este propósito mais pertinente do que nunca. Em Portugal o chefe é o António Costa. Agora temos de saber quem é o chefe da Europa. Não podemos continuar por muito mais tempo com esta Europa. A Europa será democrática e social ou deixará de existir. Precisamos, portanto, de uma mudança de direção histórica. Para que isso aconteça, os povos da Europa, através das suas lutas de rupturas, precisam de mais solidariedade. Por isso têm de tomar em suas mãos o controlo da situação. Será através de todas as formas de resistência social que um rumo novo e alternativo se poderá afirmar para o conjunto da Europa.

Já não podemos continuar a pensar que o chefe é a Sra. Merkel. É necessária uma nova hegemonia. E torna-se agora evidente que a solução tem de vir do Sul da Europa. São os países do Sul da Europa, que para além dos tradicionais patos feios das crises, também deve envolver a França e os Balcãs ex - iugoslavos. Que são os que estão em melhores condições de encaminhar as lutas sociais e a indignação no sentido da construção de uma outra Europa. Uma Europa capaz de produzir novas linguagens políticas e novos imaginários culturais. 

São os movimentos sociais de resistência que reescrevem a história, pois, se assim não fosse, teríamos o mesmo sistema de relações de poder inalterado, durante séculos. Perante o Norte, os países do Sul equivalem-se enquanto igualmente indesejáveis. É esse o sentido da metáfora de Alice, se se pode fazer com que as palavras queiram dizer tantas coisas diferentes. O que temos aqui é uma versão inexcedível do tipo de humor e brincadeira que se fazia no tempo da União Soviética. Três recém-chegados ao Gulag começam a falar sobre as razões que ali os levaram: “Eu costumava chegar ao trabalho com cinco minutos de atraso, e fui acusado de sabotagem” – disse o primeiro. “Não admira, eu chegava ao trabalho cinco minutos adiantado, e acusaram-me de espionagem” – disse o segundo. A seguir, ficaram a olhar para o terceiro numa expectativa ansiosa. “Pois bem, eu sempre fui pontual, e eles suspeitaram que o meu relógio era suíço”.

Quando interrogam o oficial nazi responsável pelos campos de concentração na Polónia ocupada, ele explica: "Nós fazemos a concentração e os polacos dão o campo". Consta que Karl Radek teria criado diversas piadas políticas sobre Estaline. Daí haver muitas variantes desta anedota pondo em cena três prisioneiros numa cela do quartel-general do KGB: o primeiro pergunta ao segundo porque o prenderam, e o outro responde: “Porque critiquei Karl Radek”. Ao que o primeiro retorque: “Mas eu estou aqui por me ter pronunciado favoravelmente sobre Radek!” Depois os dois homens olham para o terceiro, que se mantém calado a um canto da cela. Perguntam-lhe por que motivo o prenderam também. E ele responde: “Eu sou Karl Radek.”

Durante a Primeira Guerra Mundial, Karl Radek envolveu-se em negociações secretas com o Estado-Maior alemão sobre financiamento aos bolcheviques e foram organizadores da Operação Copenhague, bem como mediadores entre Lenine e os alemães, que autorizaram a passagem do líder revolucionário num comboio blindado sob a promessa de retirar a Rússia da guerra. Radek viveu na Suíça e na Suécia durante a guerra, e apoiou os bolcheviques. Entrou para o partido em 1917. E esteve na Alemanha entre 1918 e 1920 para ajudar a organizar a Revolta Espartaquista com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Em 1920, Radek voltou para a Rússia e entrou para o Comintern, mas a sua influência diminuiu, tendo sido expulso do partido em 1927. Entretanto foi readmitido em 1930, para depois ser preso na grande purga estalinista. Terá morrido na prisão.

A hegemonia neoliberal está manifestamente em declínio. O neoliberalismo atual não faz mais do que imaginar que acredita em si próprio e exigir que o mundo imagine o mesmo. A maior parte dos montantes gigantescos que os governos do Sul da Europa tiveram que despender a título de resgate, voltou a ir parar às mãos dos génios da criatividade especulativa financeira que falhou. As escolhas são arriscadas, dizem eles. Mas a verdade é esta: os gestores financeiros fazem a escolha, enquanto é o zé pagode com os seus impostos, e as suas hipotecas que arrisca. 

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