quarta-feira, 29 de abril de 2020

Uma mudança colossal em curso, pela nossa saúde


Em termos de disciplina, não há pior doente que um médico possa ter senão outro médico. Por isso J.C. ficou bem impressionado com a enfermeira dos cuidados paliativos no primeiro dia que o foi ver, porque deixou bem claro que aquilo que lhe interessava era ele e como é que ele se sentia, e não a doença dele nem o diagnóstico. Disse que tinha vindo para saber se o Dr. J.C. sempre estava disposto a encetar os cuidados paliativos em sua casa: "o que é que lhe parece?" J.C. ficou calado uns instantes. A enfermeira esperou. Sabia remeter-se ao silêncio. "Acho que é capaz de ser melhor", disse ele, "porque não quero fazer a quimioterapia".
A experiência com a oncologista tinha sido uma desolação, porque apesar de ser muito conceituada, carecia de outras capacidades, como por exemplo, para entender as idiossincrasias dos doentes. Apresentou oito ou nove opções de quimioterapia em cerca de dez minutos. Foi estonteante. A única hipótese que não colocou foi não fazer nada. Apesar de ter dito que a probabilidade de o tumor reagir à ‘químio’ ser de trinta por cento, não quis ser desanimadora, acrescentando que ele podia voltar a jogar golfe nesse verão. Ora, J.C., sendo médico, não queria acreditar no que acabara de ouvir. A ideia pareceu-lhe completamente disparatada, não era uma esperança minimamente realista. A partir daí tornou-se difícil para ele continuar a conversa. Eram demasiadas opções, demasiados riscos. E a conversa nunca mais chegava ao ponto que mais lhe interessava: que era encontrar um caminho que lhe permitisse manter um tipo de vida que ele considerasse digno para si. À pergunta acerca de prazos, a especialista foi evasiva. Ele ficou com a sensação que era igual com ou sem ‘químio’, ou seja, com a agravante dos efeitos indesejáveis da ‘químio’ que ele tinha de suportar. Então, J.C., pediu um tempo para ponderar.
Houve um tempo em que a maior parte das mortes ocorria em casa. A maior parte da população não tinha acesso generalizado a diagnósticos e tratamentos hospitalares. Os meus avós morreram todos em casa, já velhos, devido a doenças do sistema vascular cerebral. Depois os níveis de saúde em Portugal deram um salto gigantesco com o Serviço Nacional de Saúde, depois de uma fantástica experiência que foi o Serviço Médico à Periferia. E então, gradualmente, as pessoas passaram a morrer invariavelmente no hospital. O meu pai morreu no hospital há onze anos, com um cancro pulmonar. A minha mãe ainda é viva, com 91 anos. Não faço ideia o que vai acontecer a partir deste momento, numa altura em que ainda ninguém sabe qual vai ser o desfecho desta pandemia SARS-CoV-2, antes de se voltar a um estado de eufemística "normalidade". 

Antes desta crise sanitária as pessoas com literacia para se preocuparem com a qualidade de vida estavam a começar a passar por unidades de cuidados paliativos, ou por unidades de cuidados continuados antes de morrer. E a ter em casa cuidados paliativos, no conforto do próprio lar rodeadas de afetos familiares e amigos, antes de morrer. Mais pessoas estavam a ter a possibilidade de receber cuidados paliativos no seu domicílio. Mas agora, esta instabilidade nos cuidados de saúde, e na economia, que não se sabe por quanto tempo ainda vai durar, vai-nos obrigar a regressar a paradigmas de saúde de outros tempos, provavelmente os tempos dos meus avós. Por mais precário que tenha sido o tempo deles, no que respeita a cuidados de saúde, e por mais feliz que eu tenha sido no tempo do Serviço Médico à Periferia - 1979/80/81/82 - vamos ter de estar prontos para enfrentar a realidade tal como ela é. O meu pai tinha 84 anos e eu 56 quando me rendi à evidência da sua mortalidade, apesar de para a safra da última colheita ter feito a poda e as sulfatações completamente sozinho, e eu ter-lhe dado os parabéns Nada previa. Numa conversa com dois colegas médicos de outro país, falei-lhes da quimioterapia e da radioterapia a que o meu pai se habilitou a título paliativo, pro bono. Aos olhos deles, o que lhe foi oferecido pareceu-lhes desmesurado. No país deles, a maior parte das pessoas com uma doença terminal nunca teria passado por esse martírio de múltiplos tratamentos e internamentos hospitalares desnecessários, uma vez que o resultado era bem claro. Além do mais, o sistema de saúde do país deles não teria meios para tal benemerência.
Nem todos os velhos têm a sorte, ou a astúcia, de fintar a sua inteligência com enganos ledos e cegos para não sentirem a solidão como destino. Poucos são aqueles: que continuam a saber amar; a saber como pôr a vida a correr nas veias; a não estarem sempre a dizer as mesmas coisas; a não repetir constantemente todos os antigos lugares comuns; a não pensarem apenas no dinheiro; a terem alguém com paciência para os ouvir. Poucos são os velhos: que têm a sorte de ter alguns dos seus grandes amigos ainda vivos; de não terem de duplicar a dose dos remédios por a tensão se ter descontrolado; que se dão ao luxo de terem uma médica de família; e de receber da médica um metafórico “abraço!” na despedida. Nem todos têm o privilégio de ter uma filha com coragem para lhes dizer que já não têm idade para viver sozinhos, ficando ao pé para o caso de lhes dar alguma coisa má durante a noite. 

Sem comentários:

Enviar um comentário