terça-feira, 7 de abril de 2020

A minha esperança é que seja possível, ao menos, reconstruir a memória do futuro a partir daqui


Esta epígrafe é uma metáfora a evocar Borges – Jorge Luís Borges. Borges, em conversa com um escritor português, lembrou um seu poema que termina assim: sou o rei que no místico deserto / se perdeu, e sou o que jura que ele não morreu. Perguntou que idade tinha D. Sebastião quando morreu em Alcácer Quibir. Ao ser-lhe dito que morreu com vinte e quatro anos, ficou admirado. “Tem a certeza?” – insistiu. Foi-lhe dito que era a certeza que se podia ter quando se falava do Desejado. De seguida Borges disse: “Mas então tudo muda! Não é o 'místico' deserto de que falo. Devia ter escrito: o rei que o 'mágico' deserto se perdeu e não o 'místico' deserto. Com essa idade há mais de mágico do que de místico na atitude de um rei.”

Noutro dia, antes deste estado de incerteza em quarentena, dizia uma amiga para outra amiga na sala dos professores: "É que por brincadeira fui a um astrólogo. Para aí em setembro. E então eu contei ao astrólogo que andava muito triste com o meu marido, e andava a precisar de elevar o astral." Era o seguinte: apesar de já não fazer nada, o marido ou passava o tempo no escritório a ler, ou com os amigos a jogar bridge. Um intelectual, portanto, que ainda por cima, para além do ordenado que recebia do estado, sem fazer nada, vivia dos rendimentos de uma herança paterna. O problema era que ele tinha resolvido requerer a reforma antecipada. E ela estava farta de tratar de tudo, desde o governo da casa à educação dos filhos. Para abreviar, o astrólogo disse-lhe a certa altura que em breve ia fica viúva. Ou que, pelo menos, o marido iria ficar inutilizado. E ela tinha que se ir preparando para ficar a tomar conta dele. É claro que não o levou a sério. Chegou a casa e disse ao marido e aos filhos onde tinha ido, por causa de uma amiga. E numa grande risota começou a contar o que lá se tinha passado, até que disse: "só vos digo que vou ficar viúva! Disse-me ele!" A verdade é que em novembro o marido morreu, de enfarte do miocárdio, a dar cartas para mais uma rodada de bridge. Ela ficou muito abatida com aquela morte. Não descansou enquanto não telefonou ao astrólogo, para lhe contar o que sucedeu, e para saber mais das razões daquilo tudo. Ela ligou, e identificou-se, perguntando-lhe se se lembrava dela. E ele respondeu logo que sim, que se lembrava. E de seguida perguntou-lhe se o marido tinha morrido. Ela disse que sim. O outro comentou de lá como se fosse evidente: “Pois é. Mas ele também já não andava cá a fazer nada…"

Por cá, às vezes, penso nas motivações da juventude da Europa. A Europa podia ser algo de muito mais entusiasmante se possuísse uma juventude disposta a entusiasmar-se. Mas a Europa continua a perder jovens. E as elites de qualidade estão a emigrar. De Portugal vão para a Inglaterra ou a Alemanha. E os da Alemanha altamente qualificados partem para outras paragens do mundo, incluindo a China, porque estão insatisfeitos com o tipo de trabalho que lhes é oferecido. A estagnação demográfica da Europa é acompanhada por uma espécie de diminuição do papel e do potencial intelectual deste continente. Isto é o que explica a melancolia generalizada que percorre os europeus. Estamos demograficamente em queda livre e, nesta situação, não podemos imaginar como é que a Europa pode falar de um novo papel no teatro do mundo. Os intelectuais da política, que nos anos de 1960 se agitavam, como peixes na água, agora estão em terreno seco. 
Eu procuro não começar estas conversas com aquela velha frase : "No meu tempo é que era", ou "Eu sou do tempo em que ...". Mas, nos anos sessenta, nós éramos uma minoria em Braga. Os que liam livros e conversavam a caminhar às voltas - da rua do Souto, rua da Lusitana, rua dos Capelistas à Arcada. E dia-sim-dia-não ao cinema à noite - no "galinheiro" do Teatro Circo e na plateia do São Geraldo. A Rodovia era o limite, um deserto que para lá só havia campos de milho e as fábricas, para além das motorizadas da Pachancho, e dos sabonetes da Confiança do lado de cá, havia a Sarotos e a Grundig do lado de lá. Nos finais dos anos de 1960 já se via aqui e ali um ou outro sem um pé, sem uma perna, perdidas em África no estouro das minas. Toda a explosão do comunismo vem um pouco daí.


Por estes dias ninguém pensa em comprar o supérfluo. Só apenas os produtos de primeira necessidade. O que é absolutamente essencial. Só se pode despojar quem já conheceu a abundância. Seria bom para futuro, que esta experiência nos levasse a ter outra relação com as coisas. Um novo espírito do tempo.

Sem comentários:

Enviar um comentário