Mas a entrada dos três dispensou a sobrinha desse trabalho. Mal os viu, Dom Quixote disse: “Felicitai-me, bons senhores, porque já não sou Dom Quixote de la Mancha, mas Alonso Quijano, a quem meus costumes deram fama de “bom”. Agora sou inimigo de Amadis de Gaula e de toda a inumerável corja de sua família; agora me são odiosas todas as histórias profanas da cavalaria andante, e reconheço minha estupidez e o perigo em que me puseram tê-las lido; agora, pela misericórdia de Deus, aprendi a lição na própria carne e as abomino”.
Quando os três ouviram isso, sem dúvida imaginaram que alguma nova loucura havia tomado conta dele. Sancho disse: “Agora, senhor Dom Quixote, que temos notícias de que a senhora Dulcineia está desencantada, vossa mercê se sai com essa? E agora que estamos a pique de ser pastores, para passar a vida cantando como uns príncipes, vossa mercê quer se tornar eremitão? Cale-se, por Deus, volte a si e deixe de histórias.”
“As histórias que vivi até aqui foram verdadeiras apenas em meu prejuízo, mas minha morte, com a ajuda do céu, deverá torná-las proveitosas para mim” replicou Dom Quixote. “Senhores, sinto que estou morrendo rapidamente: deixem as brincadeiras para lá e me tragam alguém para me confessar e um escrivão para fazer o meu testamento, que em situações como esta um homem não deve brincar com a sua alma. Assim sendo, suplico que, enquanto o senhor padre me confessa, vão buscar o escrivão.” Olharam uns para os outros, pasmados com as alegações de Dom Quixote e, apesar de duvidarem, quiseram acreditar. E um dos sinais que os levaram a deduzir que morria mesmo foi ter ele passado da loucura à sanidade tão facilmente, porque, às já mencionadas alegações, acrescentou muitas outras tão bem articuladas, tão cristãs e com tamanho bom senso que por fim não duvidaram mais, e acreditaram que havia sarado. O padre fez todos saírem e, ficando sozinho com ele, confessou-o. O bacharel foi atrás do escrivão e dali a pouco voltou com ele e com Sancho Pança. O dito Sancho, que já sabia pelas notícias do bacharel do estado de seu senhor, achando a criada e a sobrinha chorosas, começou a fazer beicinho e a derramar lágrimas e mais lágrimas. Acabada a confissão, o padre saiu e disse: “Realmente está morrendo e realmente está curado Alonso Quijano, o Bom. Podemos entrar para que faça seu testamento.”
Essas palavras foram um terrível estímulo para a criada, a sobrinha e Sancho Pança, seu bom escudeiro, de tal maneira que fez rebentar os olhos deles em lágrimas e os peitos em profundos suspiros. Realmente, como se disse uma vez, enquanto Dom Quixote foi apenas Alonso Quijano, o Bom, e enquanto foi Dom Quixote de la Mancha, sempre foi de temperamento ameno e trato agradável, e por isso não só era amado pelos de sua casa, como por todos os que o conheciam. O escrivão entrou com os demais e, depois de Dom Quixote ter encomendado a sua alma, com todos aqueles ritos cristãos necessários, fez o cabeçalho do testamento, chegando à disposição de última vontade. Então Dom Quixote disse:
“Item. É minha vontade que certa quantia de dinheiro que está de posse de Sancho Pança, que em minha loucura fiz meu escudeiro, continue com ele, sem que o culpem ou lhe peçam conta alguma, porque houve entre nós certas coisas, uns-toma-lá, dá-cá. E, se sobrar algum dinheiro depois de ele ter recebido o que lhe devo, que o troco seja seu, pois não deve ser muito, e que faça bom proveito. E assim como eu, estando louco, ajudei que lhe dessem o governo de uma ilha, se pudesse agora, que estou em meu juízo, lhe daria o de um reino, porque a simplicidade de seu caráter e a fidelidade de sua conduta merecem-no.” E, virando-se para Sancho, lhe disse: “Perdoa-me, meu amigo, tê-lo levado a passar por louco como eu, fazendo-o cair no erro em que eu caí: acreditar que houve cavaleiros andantes no mundo.”
“Ai meu senhor não morra!” respondeu Sancho, chorando. “Ouça meu conselho: viva muitos anos, porque a maior loucura que um homem pode fazer nesta vida é se deixar morrer assim sem mais nem menos, sem que ninguém o mate nem que outras mãos lhe deem cabo além das da melancolia. Vamos, não seja preguiçoso, levante-se desta cama, e vamos para o campo vestidos de pastores, como tínhamos combinado: quem sabe encontremos em alguma mata a senhora dona Dulcineia desencantada e formosa como ela só. Se vossa mercê morrer de pesar por ter sido derrotado, bote a culpa em mim, dizendo que o derrubaram por eu ter apertado mal a cincha do Rocinante, sem falar que vossa mercê deve ter visto em seus livros de cavalaria ser coisa bastante comum uns cavaleiros derrubarem outros e o que é derrotado hoje ser vitorioso amanhã.”
“É verdade” disse Sansão, “o bom Sancho Pança conhece bem esses casos.”
“Vamos com calma, senhores — disse dom Quixote —, pois águas passadas não movem moinhos. Eu fui louco, mas agora tenho juízo; fui Dom Quixote de la Mancha, mas agora, como já disse, sou Alonso Quijano, o Bom. Possam meu arrependimento e minha sinceridade me devolver à estima que vossas mercês tinham por mim. E vamos adiante, senhor escrivão. Item. Deixo todas as minhas posses, sem necessidade de enumeração, a Antónia Quijana, minha sobrinha, aqui presente, tendo antes tirado do que for mais fácil dispor o que se necessitar para cumprir meu legado. Quero, em primeiro lugar, que se pague o salário que devo a minha criada pelo tempo que me serviu, e mais vinte ducados para um vestido. Nomeio meus testamenteiros o senhor padre e o senhor bacharel Sansão Carrasco, aqui presentes. Item. É minha vontade que, se Antónia Quijana, minha sobrinha, quiser se casar, case com homem de quem primeiro se averiguou não saber o que são livros de cavalaria. Mas, no caso de se averiguar que ele sabe e, mesmo assim, minha sobrinha se quiser casar e efetivamente se casar, é minha vontade que perca o direito a toda a herança que deixei, e que meus testamenteiros distribuam esses bens em obras de caridade à sua vontade. Item. Suplico aos senhores meus testamenteiros que, se a boa sorte os levar a conhecer o autor que dizem que escreveu uma história que anda por aí com o título de Segunda parte das façanhas de Dom Quixote de la Mancha, peçam-lhe, de minha parte, o mais encarecidamente que se possa, que me perdoe a oportunidade que sem pensar eu lhe dei de ter escrito tantos e tamanhos disparates como nela descreve, pois parto desta vida com o escrúpulo de lhe ter dado motivo para escrevê-los.”
Com isso encerrou o testamento, mas de repente desmaiou e se estendeu ao comprido da cama; todos se agitaram e correram em sua ajuda. Nos três dias que ainda viveu, depois da assinatura do testamento, desmaiava muito seguido. A casa andava sobressaltada, mas mesmo assim a sobrinha comia, a criada brindava e Sancho Pança se divertia, pois isso de herdar alguma coisa apaga ou ameniza na memória do herdeiro a tristeza que é natural que o morto deixe. Por fim, chegou a hora derradeira de Dom Quixote, depois de receber todos os sacramentos e depois de ter abominado com muitas e eficazes palavras os livros de cavalaria. O escrivão estava presente e disse que nunca tinha lido, em nenhum livro de cavalaria, que algum cavaleiro andante houvesse morrido em seu leito tão calma e cristãmente como Dom Quixote, que, entre os lamentos e as lágrimas dos que se achavam ali, entregou a sua alma, quero dizer, morreu.
Vendo isso, o padre pediu ao escrivão que testemunhasse que Alonso Quijano, o Bom, chamado comumente de “Dom Quixote de la Mancha”, havia deixado a presente vida e morrido de causas naturais; e que pedia esse testemunho para eliminar a oportunidade de que algum outro autor que não fosse Cide Hamete Benengeli lhe ressuscitasse falsamente e escrevesse intermináveis histórias de suas façanhas. Este foi o fim do engenhoso fidalgo da Mancha, cuja aldeia Cide Hamete não quis lembrar, para que todas as vilas e povoados da Mancha pudessem disputar entre si para adotá-lo e tê-lo como filho, como as sete cidades da Grécia disputaram por Homero. Deixam-se de incluir aqui os prantos de Sancho, da sobrinha e da criada de Dom Quixote, e os novos epitáfios de sua sepultura, embora se inclua este de Sansão Carrasco:
Aqui jaz o fidalgo forte que a tal extremo chegou de bravura, que se adverte que a morte não triunfou sobre sua vida com sua morte. De todo o mundo fez pouco, foi o espantalho e o papão do mundo, mas de tal modo, que favoreceu a sua aventura morrer são, depois de viver louco.
E o prudente Cide Hamete disse a sua pena: “Aqui ficarás, minha pena, pendurada neste gancho, por um fio de arame, nem sei se bem cortada ou mal aparada, onde viverás longos séculos, se historiadores presunçosos e velhacos não te pegarem para te profanar. Mas, antes que se aproximem de ti, podes adverti-los, dizendo da melhor forma que puderes: — Alto lá, seus patifezinhos!
Por nenhum seja tocada, porque esta empresa, bom rei, para mim estava guardada. Apenas para mim nasceu Dom Quixote, e eu para ele: ele soube agir e eu escrever. Nós dois somos um só, a despeito e apesar do escritor falso e tordesilhesco que se atreveu ou haverá de se atrever a escrever com pena de avestruz grosseira e mal aparada as façanhas de meu bravo cavaleiro, porque não é carga para seus ombros, nem assunto para seu espírito insosso. Se por acaso chegares a conhecê-lo, diz-lhe que deixe repousar na sepultura os cansados e já podres ossos de Dom Quixote, e não queira levá-lo para Castela, a Velha, contra todas as prerrogativas da morte, fazendo-o sair do cemitério onde real e verdadeiramente jaz estendido de fora a fora, impossibilitado de empreender uma terceira jornada e nova saída, pois para zombar de tantas como fizeram tantos cavaleiros andantes, bastam as duas que ele fez, com tanto prazer e beneplácito das pessoas a cujo conhecimento chegaram, tanto neste como em reinos estranhos. “E com isso cumprirás com o que pede a fé cristã, aconselhando bem a quem te quer mal, e eu ficarei satisfeito e orgulhoso de ter sido o primeiro que gozou inteiramente do fruto de seus escritos, como desejava, pois não foi outro meu desejo que execrar para os homens as falsas e disparatadas histórias dos livros de cavalaria, que já tropeçaram nas de meu verdadeiro Dom Quixote e haverão de cair de todo sem dúvida alguma.”
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