quarta-feira, 22 de abril de 2020

Dom Quixote: de como caiu doente; do testamento e morte



Como as coisas humanas não são eternas. É o declínio constante do começo ao fim da vida humana, e Dom Quixote não iria ter o privilégio de ser diferente. A narrativa da sua vida finalmente teve um desfecho, quando ele menos esperava.


Fosse pela melancolia que lhe causava se ver vencido, ou pela disposição do céu, que assim o ordenava, foi tomado por uma febre que o deixou seis dias de cama. Nesse entretanto recebeu muitas vezes a visita do padre, do bacharel e do barbeiro, dos amigos, sem que o seu bom escudeiro Sancho Pança saísse da cabeceira. Eles, julgando que era o abatimento da derrota, e a desesperança de ver Dulcineia livre e desencantada, a causa daquele estado, recorreram a todos os engenhos para o alegrar. O bacharel dizia que se animasse e levantasse para começar logo a sua vida pastoril, para a qual ele já tinha escrito uma écloga, que arrazaria todas as que Sannazaro havia escrito, e que já tinha comprado com o seu próprio dinheiro, de um fazendeiro de Quintanar, dois famosos cachorros para guardar o rebanho, um chamado Brasino e o outro Caramelão.


Mas nem por isso Dom Quixote deixava a tristeza. Chamaram o médico, que lhe tomou o pulso, não tendo ficado muito satisfeito e disse que pelo sim, pelo não, cuidasse da saúde de sua alma, porque a do corpo corria perigo. Dom Quixote ouviu-o com toda a calma, mas não o ouviram assim a criada, a sobrinha e o seu escudeiro, que começaram a chorar ternamente, como se já o dessem por morto. A opinião do médico foi que melancolias e amarguras davam cabo dele. Dom Quixote rogou que o deixassem sozinho, porque queria dormir um pouco. Obedeceram. E ele dormiu a sono solto, como se diz, por mais de seis horas, tanto que a criada e a sobrinha pensaram que havia de ficar no sono. Mas ele acordou no fim daquele tempo e disse com um grande brado: “Bendito seja Deus, todo-poderoso, que tanto bem me fez! Suas misericórdias realmente não têm limites, nem as reduzem nem as impedem os pecados dos homens. A sobrinha esteve atenta às palavras do tio e, parecendo-lhe mais razoáveis que de costume, pelo menos durante aquela doença, perguntou: “O que vossa mercê está dizendo, senhor? Há alguma novidade? Que misericórdias são essas? E que pecados? “As misericórdias, minha cara sobrinha”, respondeu dom Quixote, “são as que Deus me dispensou neste instante, e que meus pecados não impediram, como disse. Já tenho o juízo livre e claro, sem as sombras tenebrosas da ignorância que sobre ele puseram a minha amarga e contínua leitura dos detestáveis livros de cavalaria. Já reconheço os seus disparates e os seus logros, e só me pesa que este desengano tenha chegado tão tarde, pois não me sobra tempo para compensar lendo outros que sejam luz da alma. Eu me sinto às portas da morte, minha sobrinha, mas gostaria de encará-la de um modo que mostrasse que a minha vida não foi tão má a ponto de me deixar com fama de louco, porque, apesar de eu tê-lo sido, não gostaria de confirmar essa verdade em minha morte. Vamos, minha amiga, chame meus bons amigos, o padre, o bacharel Sansão Carrascos e mestre Nicolás, o barbeiro, que quero me confessar e fazer o meu testamento.

Mas a entrada dos três dispensou a sobrinha desse trabalho. Mal os viu, Dom Quixote disse: “Felicitai-me, bons senhores, porque já não sou Dom Quixote de la Mancha, mas Alonso Quijano, a quem meus costumes deram fama de “bom”. Agora sou inimigo de Amadis de Gaula e de toda a inumerável corja de sua família; agora me são odiosas todas as histórias profanas da cavalaria andante, e reconheço minha estupidez e o perigo em que me puseram tê-las lido; agora, pela misericórdia de Deus, aprendi a lição na própria carne e as abomino”.

Quando os três ouviram isso, sem dúvida imaginaram que alguma nova loucura havia tomado conta dele. Sancho disse: “Agora, senhor Dom Quixote, que temos notícias de que a senhora Dulcineia está desencantada, vossa mercê se sai com essa? E agora que estamos a pique de ser pastores, para passar a vida cantando como uns príncipes, vossa mercê quer se tornar eremitão? Cale-se, por Deus, volte a si e deixe de histórias.”

“As histórias que vivi até aqui foram verdadeiras apenas em meu prejuízo, mas minha morte, com a ajuda do céu, deverá torná-las proveitosas para mim” replicou Dom Quixote. “Senhores, sinto que estou morrendo rapidamente: deixem as brincadeiras para lá e me tragam alguém para me confessar e um escrivão para fazer o meu testamento, que em situações como esta um homem não deve brincar com a sua alma. Assim sendo, suplico que, enquanto o senhor padre me confessa, vão buscar o escrivão.” Olharam uns para os outros, pasmados com as alegações de Dom Quixote e, apesar de duvidarem, quiseram acreditar. E um dos sinais que os levaram a deduzir que morria mesmo foi ter ele passado da loucura à sanidade tão facilmente, porque, às já mencionadas alegações, acrescentou muitas outras tão bem articuladas, tão cristãs e com tamanho bom senso que por fim não duvidaram mais, e acreditaram que havia sarado. O padre fez todos saírem e, ficando sozinho com ele, confessou-o. O bacharel foi atrás do escrivão e dali a pouco voltou com ele e com Sancho Pança. O dito Sancho, que já sabia pelas notícias do bacharel do estado de seu senhor, achando a criada e a sobrinha chorosas, começou a fazer beicinho e a derramar lágrimas e mais lágrimas. Acabada a confissão, o padre saiu e disse: “Realmente está morrendo e realmente está curado Alonso Quijano, o Bom. Podemos entrar para que faça seu testamento.”

Essas palavras foram um terrível estímulo para a criada, a sobrinha e Sancho Pança, seu bom escudeiro, de tal maneira que fez rebentar os olhos deles em lágrimas e os peitos em profundos suspiros. Realmente, como se disse uma vez, enquanto Dom Quixote foi apenas Alonso Quijano, o Bom, e enquanto foi Dom Quixote de la Mancha, sempre foi de temperamento ameno e trato agradável, e por isso não só era amado pelos de sua casa, como por todos os que o conheciam. O escrivão entrou com os demais e, depois de Dom Quixote ter encomendado a sua alma, com todos aqueles ritos cristãos necessários, fez o cabeçalho do testamento, chegando à disposição de última vontade. Então Dom Quixote disse:

“Item. É minha vontade que certa quantia de dinheiro que está de posse de Sancho Pança, que em minha loucura fiz meu escudeiro, continue com ele, sem que o culpem ou lhe peçam conta alguma, porque houve entre nós certas coisas, uns-toma-lá, dá-cá. E, se sobrar algum dinheiro depois de ele ter recebido o que lhe devo, que o troco seja seu, pois não deve ser muito, e que faça bom proveito. E assim como eu, estando louco, ajudei que lhe dessem o governo de uma ilha, se pudesse agora, que estou em meu juízo, lhe daria o de um reino, porque a simplicidade de seu caráter e a fidelidade de sua conduta merecem-no.” E, virando-se para Sancho, lhe disse: “Perdoa-me, meu amigo, tê-lo levado a passar por louco como eu, fazendo-o cair no erro em que eu caí: acreditar que houve cavaleiros andantes no mundo.”

“Ai meu senhor não morra!” respondeu Sancho, chorando. “Ouça meu conselho: viva muitos anos, porque a maior loucura que um homem pode fazer nesta vida é se deixar morrer assim sem mais nem menos, sem que ninguém o mate nem que outras mãos lhe deem cabo além das da melancolia. Vamos, não seja preguiçoso, levante-se desta cama, e vamos para o campo vestidos de pastores, como tínhamos combinado: quem sabe encontremos em alguma mata a senhora dona Dulcineia desencantada e formosa como ela só. Se vossa mercê morrer de pesar por ter sido derrotado, bote a culpa em mim, dizendo que o derrubaram por eu ter apertado mal a cincha do Rocinante, sem falar que vossa mercê deve ter visto em seus livros de cavalaria ser coisa bastante comum uns cavaleiros derrubarem outros e o que é derrotado hoje ser vitorioso amanhã.”

“É verdade” disse Sansão, “o bom Sancho Pança conhece bem esses casos.”

“Vamos com calma, senhores — disse dom Quixote —, pois águas passadas não movem moinhos. Eu fui louco, mas agora tenho juízo; fui Dom Quixote de la Mancha, mas agora, como já disse, sou Alonso Quijano, o Bom. Possam meu arrependimento e minha sinceridade me devolver à estima que vossas mercês tinham por mim. E vamos adiante, senhor escrivão. Item. Deixo todas as minhas posses, sem necessidade de enumeração, a Antónia Quijana, minha sobrinha, aqui presente, tendo antes tirado do que for mais fácil dispor o que se necessitar para cumprir meu legado. Quero, em primeiro lugar, que se pague o salário que devo a minha criada pelo tempo que me serviu, e mais vinte ducados para um vestido. Nomeio meus testamenteiros o senhor padre e o senhor bacharel Sansão Carrasco, aqui presentes. Item. É minha vontade que, se Antónia Quijana, minha sobrinha, quiser se casar, case com homem de quem primeiro se averiguou não saber o que são livros de cavalaria. Mas, no caso de se averiguar que ele sabe e, mesmo assim, minha sobrinha se quiser casar e efetivamente se casar, é minha vontade que perca o direito a toda a herança que deixei, e que meus testamenteiros distribuam esses bens em obras de caridade à sua vontade. Item. Suplico aos senhores meus testamenteiros que, se a boa sorte os levar a conhecer o autor que dizem que escreveu uma história que anda por aí com o título de Segunda parte das façanhas de Dom Quixote de la Mancha, peçam-lhe, de minha parte, o mais encarecidamente que se possa, que me perdoe a oportunidade que sem pensar eu lhe dei de ter escrito tantos e tamanhos disparates como nela descreve, pois parto desta vida com o escrúpulo de lhe ter dado motivo para escrevê-los.”

Com isso encerrou o testamento, mas de repente desmaiou e se estendeu ao comprido da cama; todos se agitaram e correram em sua ajuda. Nos três dias que ainda viveu, depois da assinatura do testamento, desmaiava muito seguido. A casa andava sobressaltada, mas mesmo assim a sobrinha comia, a criada brindava e Sancho Pança se divertia, pois isso de herdar alguma coisa apaga ou ameniza na memória do herdeiro a tristeza que é natural que o morto deixe. Por fim, chegou a hora derradeira de Dom Quixote, depois de receber todos os sacramentos e depois de ter abominado com muitas e eficazes palavras os livros de cavalaria. O escrivão estava presente e disse que nunca tinha lido, em nenhum livro de cavalaria, que algum cavaleiro andante houvesse morrido em seu leito tão calma e cristãmente como Dom Quixote, que, entre os lamentos e as lágrimas dos que se achavam ali, entregou a sua alma, quero dizer, morreu.

Vendo isso, o padre pediu ao escrivão que testemunhasse que Alonso Quijano, o Bom, chamado comumente de “Dom Quixote de la Mancha”, havia deixado a presente vida e morrido de causas naturais; e que pedia esse testemunho para eliminar a oportunidade de que algum outro autor que não fosse Cide Hamete Benengeli lhe ressuscitasse falsamente e escrevesse intermináveis histórias de suas façanhas. Este foi o fim do engenhoso fidalgo da Mancha, cuja aldeia Cide Hamete não quis lembrar, para que todas as vilas e povoados da Mancha pudessem disputar entre si para adotá-lo e tê-lo como filho, como as sete cidades da Grécia disputaram por Homero. Deixam-se de incluir aqui os prantos de Sancho, da sobrinha e da criada de Dom Quixote, e os novos epitáfios de sua sepultura, embora se inclua este de Sansão Carrasco:

Aqui jaz o fidalgo forte que a tal extremo chegou de bravura, que se adverte que a morte não triunfou sobre sua vida com sua morte. De todo o mundo fez pouco, foi o espantalho e o papão do mundo, mas de tal modo, que favoreceu a sua aventura morrer são, depois de viver louco.

E o prudente Cide Hamete disse a sua pena: “Aqui ficarás, minha pena, pendurada neste gancho, por um fio de arame, nem sei se bem cortada ou mal aparada, onde viverás longos séculos, se historiadores presunçosos e velhacos não te pegarem para te profanar. Mas, antes que se aproximem de ti, podes adverti-los, dizendo da melhor forma que puderes: — Alto lá, seus patifezinhos!

Por nenhum seja tocada, porque esta empresa, bom rei, para mim estava guardada. Apenas para mim nasceu Dom Quixote, e eu para ele: ele soube agir e eu escrever. Nós dois somos um só, a despeito e apesar do escritor falso e tordesilhesco que se atreveu ou haverá de se atrever a escrever com pena de avestruz grosseira e mal aparada as façanhas de meu bravo cavaleiro, porque não é carga para seus ombros, nem assunto para seu espírito insosso. Se por acaso chegares a conhecê-lo, diz-lhe que deixe repousar na sepultura os cansados e já podres ossos de Dom Quixote, e não queira levá-lo para Castela, a Velha, contra todas as prerrogativas da morte, fazendo-o sair do cemitério onde real e verdadeiramente jaz estendido de fora a fora, impossibilitado de empreender uma terceira jornada e nova saída, pois para zombar de tantas como fizeram tantos cavaleiros andantes, bastam as duas que ele fez, com tanto prazer e beneplácito das pessoas a cujo conhecimento chegaram, tanto neste como em reinos estranhos. “E com isso cumprirás com o que pede a fé cristã, aconselhando bem a quem te quer mal, e eu ficarei satisfeito e orgulhoso de ter sido o primeiro que gozou inteiramente do fruto de seus escritos, como desejava, pois não foi outro meu desejo que execrar para os homens as falsas e disparatadas histórias dos livros de cavalaria, que já tropeçaram nas de meu verdadeiro Dom Quixote e haverão de cair de todo sem dúvida alguma.”

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