segunda-feira, 13 de abril de 2020

Sobre a Natureza e o conceito de justiça natural sem culpa


All the best, bad is the best 

Até há muito pouco tempo, para a maior parte das pessoas, a morte só nos levava depois de uma longa luta médica. A morte era certa, mas a hora da sua chegada era disputada. A pandemia Covid-19 veio mostrar como tudo muda de um dia para o outro. A dada altura os médicos já não sabiam muito bem o que significava estar a morrer. Nas últimas décadas a ciência médica havia tornado obsoletos séculos de experiência, dificultando à humanidade a reverência especial ao ato de morrer. Enquanto na medicina curativa, se o objetivo já não ia a tempo de curar, ao menos prolongaria a vida; na medicina paliativa, o objetivo é fazer com que os últimos dias de vida do doente sejam passados com o menor sofrimento possível. Os cuidados paliativos têm tentado oferecer um novo ideal para a maneira como morremos. Embora nem toda a gente tenha aceitado de braços abertos os seus rituais, as pessoas que a aceitaram adotaram uma espécie de ars moriendi do nosso tempo. Para isso é necessário um conatus e uma equanimidade infinita para enfrentar a motivação imparável para a medicalização da morte nos últimos dias de vida.

Temos ainda alguns exemplos admiráveis, como o do senhor B.J., na fase terminal de um cancro. Morreu em casa, em paz e rodeado pela família depois de ter passado um mês nos cuidados paliativos, com um doseador de morfina instalado no seu corpo. Mas temos também, por outro lado, exemplos para dar no sentido oposto: M.L., também na fase terminal de um cancro, que nunca aceitou a incurabilidade da sua doença. Por isso, quando a família a encontrou em paragem cardíaca, ligou para o 112. Vieram: o INEM; os Bombeiros; e a Polícia. Arrancaram-lhe a roupa e fizeram as habituais manobras de ressuscitação: massagem cardíaca; intubação na garganta; e tentaram reanimá-la com um desfibrilador. Mas estes esforços raramente resultam em doentes terminais. E ela não foi exceção.

Mas a história da Sofia toca-nos comoventemente, dada a sua ainda jovem idade, e um bebé de poucos meses nos braços. Na manhã em que o marido acordou a vê-la sentada na cama, com uma falta de ar descomunal, que parecia que se estava a afogar, ele não teve dúvidas que tinha de a levar para o hospital. No hospital diagnosticaram uma pneumonia. A família ficou muito pesarosa por não o terem evitado, porque pensaram que tinham feito tudo ao retirar-lhe o bebé ao mais pequeno sinal de pingo no nariz; e terem lavado as mãos com frequência. Mas o sistema imunitário da Sofia, e a sua capacidade para expelir a expetoração ficara muito enfraquecida com a radioterapia e a quimioterapia, bem como a própria neoplasia, claro está, com metástases por todo o corpo, incluindo o cérebro. Ainda chegou ao dia seguinte. Mas, ao chegar a noite, ela disse: “já não consigo pensar em mais nada de esperançoso”. Só mais tarde é que a família reflectiu que estas foram as últimas palavras que ela proferiu. A equipa médica só tinha uma opção: ligá-la a um ventilador. A Sofia era uma lutadora, não era? Então, o próximo passo para os lutadores é passar para os Cuidados Intensivos. Mas os médicos decidiram que não.

Estas são as tragédias modernas, repetidas milhões de vezes, pelo menos nos países do dito "primeiro mundo ocidental". Quando não sabemos quanto tempo a nossa vida vai durar - e quando imaginamos que dispomos de muito mais tempo do que é verdade -, todos os nossos instintos nos impelem a lutar, a morrer com quimioterapia nas veias; ou com um tubo na garganta; ou com feridas suturadas na carne ainda recentes. São os familiares, mais do que os próprios doentes, a pedir aos médicos que façam mais alguma coisa. E eles fazem porque não se prepararam para dizer que já não há mais nada a fazer. Há sempre mais uma coisa a fazer. Até que venha finalmente a Natureza ditar a última sentença.

Nesta crise pandémica que estamos a atravessar, há um aspecto a termos em conta: a capacidade de toleramos a incerteza, a ambiguidade e a dificuldade para encontrarmos a melhor opção. É improvável que haja alguém, nesta crise, que tenha acertado à primeira a melhor maneira de lidar com as situações. Pelo contrário, ainda vão ser necessárias várias tentativas e muitos erros até acertarmos. Para isso são precisas duas coisas: paciência e flexibilidade. Quem não tolera a incerteza e o fracasso, tem menos hipóteses de sair disto sem traumatismo. Uma personalidade flexível ajuda muito em tempos de crise. Quem pensa que só há uma maneira de fazer as coisas, terá mais dificuldades em vencer sem ajuda. Por exemplo, é bom que enquanto crianças tenhamos tido a liberdade de dizer coisas fora da caixa sem grande ridicularização, e de fazer experiências fora das normas sem grande obstrução. A flexibilidade pode advir do facto de se ter podido fazer escolhas próprias ao longo do nosso amadurecimento antes da vida adulta.

Há atitudes que certos líderes políticos têm tomado nesta crise da pandemia que se têm revelado péssimas na minimização dos danos. É o caso do presidente dos EUA, Donald Trump, ao se eximir às suas responsabilidades de tomar medidas que devia te tomado em devido tempo e não tomou, por mera tática populista. Posteriormente, quando já era tarde, teve a sua habitual desfaçatez de endossar a sua negligência a terceiros. Quando verificou que as coisas não estão a correr bem. Confrontado com a necessidade da ajuda da China, escolheu a OMS como bode expiatório de todos os males. Uma outra atitude negativa, que tem a ver com a inflexibilidade para a resolução da crise económica, secundária à crise sanitária da pandemia, é a de alguns líderes europeus, em particular o ministro holandês da economia, ao ser demasiado rígido em viabilizar a solução que melhor serve a maioria dos países da zona euro, e que consiste na mutualização das dívidas soberanas. Há quem encontre na cultura calvinista dos Países Baixos a razão para uma atitude dessas. Portugal ainda mal se havia refeito da crise financeira de 2008. É claro que as nações também podem aprender com a experiência de crises anteriores, e com os erros alheios. Tal como os indivíduos, as nações podem, ou não, ser honestas nas suas autoavaliações. Para isso, um certo grau de consenso nacional ajuda. Felizmente, para já, é o que está a acontecer em Portugal.

Miguel Monjardino, na crónica do Expresso desta semana, pergunta se a Covid-19 é um sinal do recomeço ou da continuidade da História. Diz que há duas maneiras de tentar responder a esta pergunta. Uma delas, que parece dominante nesta fase inicial da pandemia nos países europeus, Estados Unidos e Canadá, aponta para a convicção de que a pandemia é um momento de rutura. A partir deste ponto singular, a História recomeçará. Henry Kissinger defendeu que “o mundo nunca mais será o mesmo depois do coronavírus”. Para lá de ser urgente gerir eficazmente a crise de saúde pública, é urgente começar a pensar na transição para uma nova ordem internacional pós-coronavírus. A outra maneira de ver o problema sugere que, depois da pandemia passar, haverá mais continuidade do que rutura. Washington tem vindo a executar uma estratégia de adaptação ao que considera ser o desafio chinês à sua posição dominante. No centro desta estratégia tem estado a proteção à sua base tecnológica e uma maior presença naval avançada no Pacífico Ocidental, Mar do Norte e Ártico. A prioridade no ocidente atlântico deverá ser a saúde pública e a defesa das bases tecnológicas e logísticas nacionais ou regionais. Em certas regiões do mundo haverá mais espaço estratégico disponível. Resta saber como e por quem será aproveitado.

Salvamos a vida, mas não salvamos a saúde dessas pessoas, dizem os intensivistas. Porque é que 80% das pessoas infetadas passam incólumes sem sintomas? E, porque é que dos restantes 20% de infetados, que são sintomáticos, uma minoria desses entra nos Cuidados Intensivos? Se não morrerem, quando saírem de lá vão ter de continuar por muito tempo, se calhar para sempre, com uma péssima qualidade de vida, não apenas com dificuldade respiratória, mas também com debilidades orgânicas de toda a ordem. Agora é preciso tempo e atenção, porque ainda é muito cedo para prognósticos. Os doentes, sobretudo os graves, têm de ser monitorizados nos 6 a 12 meses subsequentes. Para avaliar os efetivos estragos da doença, as ditas sequelas, é preciso realizar repetidamente muitos exames dispendiosos. E isso é um problema, porque não há sistema de saúde que consiga acomodar tanta solicitação num período tão curto de tempo.

Nas tradicionais fábulas, habituamo-nos a não levar a sério as cruas mensagens, acerca da "sábia Natureza", na forma de alegoria ou metáfora. É assim: a Natureza arranjou este vírus para o utilizar como vassoura demográfica, para corrigir o atrevimento que a espécie humana andou a fazer no último século, com o seu artifício, errado, de se autoprolongar em tempo de vida para além do que lhe era devido. E essa loucura fez com que a Terra se fartasse de tanta gente geronte, porque isso ia contra as "leis da Natureza". Assim, havia que repor o certo estado das coisas. Um homem velho no leito de morte revela aos filhos que há um tesouro escondido na sua vinha. Tudo o que tinham a fazer era cavar. Os filhos puseram-se a cavar, mas do tesouro nem sombra. Quando o outono chegou, porém, a vinha deu uma colheita como nunca se tinha visto. E foi então que os filhos perceberam que o pai lhes legara uma experiência: a bênção não está no ouro, mas no trabalho. Onde é que se encontram ainda pessoas capazes de contar histórias como deve ser? Quem é que ainda acha que pode deixar como legado para os vindouros a sua experiência de indigente?


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