quinta-feira, 29 de abril de 2021

A comunicação mimética, a propósito de pacientes com afasia


Vou espalhar-me por aquilo que conhecemos por pantomima, ou por mímica, como arte de comunicação humana, que pode ser muito útil aos pacientes que sofreram um AVC (Acidente Vascular Cerebral) e ficaram afásicos. Na pantomima, praticamente não se fala. No teatro gestual não há palavras. É a arte de narrar só com gestos e contorções performativas do corpo. Uma modalidade cénica muito apreciada quando é bem feita. É uma arte de excelência para comediantes, cómicos, palhaços, enfim atores de stand-up comedy. Mas não só.




Relatos de histórias clínicas, feitas por neurologistas, de doentes que ficaram afásicos, alguns deles com afasia expressiva, em que ficou preservada a afasia compreensiva, descrevem que através da sua capacidade para cantar conseguiram superar essa dificuldade recuperando parte da linguagem. E isso deixou-os mais tranquilos para melhor enfrentarem as suas vicissitudes. Em algum lugar dentro de seu cérebro ainda havia onde ir buscar as palavras. A questão passa a ser, então, se as capacidades de linguagem embutidas na canção podem ser removidas do seu contexto musical e usadas na comunicação. Em alguns casos isso é possível, em grau limitado, essas pessoas podem falar cantarolando. 




Mas ainda melhor do que cantarolar, é as pessoas descobrirem o seu dom ou virtuosismo para a expressão mimética, outra aptidão que pode estar escondida e as pessoas nem saberem que a têm. Algumas pessoas apresentam uma habilidade e uma intuição próxima da genialidade. A expressão facial é de extrema importância na pantomima, uma vez que grande parte da mensagem é transmitida pelo rosto. Por isso, é importante conhecermos o nosso rosto. Por isso, vale a penas as pessoas treinarem expressões faciais em frente a um espelho de: felicidade, tristeza, raiva, amor, compaixão, medo, angústia, espanto - como fazem os atores de teatro.
O meu Mestre tinha uma paixão pela tagarelice, e até para uma certa bisbilhotice e indiscrição. Por isso, não podia ter tido maior asar quando teve um AVC trombótico que lhe apanhou toda a área da artéria cerebral média do lado esquerdo, tendo ficado irremediavelmente afásico. A afasia caracterizava-se por dificuldade em se expressar verbalmente embora compreendesse quase tudo o que era dito. No entanto, nunca o vi furioso por causa disso. Todos ficávamos assombrados com a sua resiliência. Como é que não ficava deprimido, só podia ser explicado pelo seu feitio de sempre bem-disposto, e calejado pela sua experiência de sofrimento derivada da sua paralisia devida à poliomielite desde a infância. Por outro lado, devido à sua inteligência, e profissão de médico, tendo-lhe passado pelas mãos centenas de pessoas vítimas de AVC, tinha a noção de que, em certo sentido, tivera muita sorte, apesar de metade do seu corpo estar paralisada. Tinha sorte porque a lesão em seu cérebro, embora extensa, não lhe minara a força de vontade, nem a inteligência. Além disso, porque a sua mulher, que era fisioterapeuta, se empenhara arduamente desde o início para mantê-lo ativo. Só não teve a sorte de encontrar nenhuma terapeuta da fala, porque nessa altura não havia nenhuma por perto.
Os primeiros estudos científicos sobre o sorriso que se tem notícia foram os do neurologista francês Guillaume Duchenne. Ele descobriu que os sorrisos são controlados por dois conjuntos de músculos: os zigomáticos maiores, que percorrem todo o lado do rosto e se conectam com os cantos da boca, e os orbiculares, que puxam os olhos para trás. Os zigomáticos maiores puxam a boca para os lados, expondo os dentes e alargando as bochechas, ao passo que os orbiculares estreitam os olhos e produzem os pés-de-galinha. É importante entender o funcionamento desses músculos. Os zigomáticos maiores são conscientemente controlados, isto é, obedecem à nossa vontade, – podendo ser , por isso, usados para produzir os falsos sorrisos e dar boa impressão, ou satisfazer a cordialidade, ou qualquer outra necessidade social, mas que é fácil de topar. É aquilo que popularmente se designa por "sorriso amarelo". Em contrapartida, os orbiculares atuam independentemente da nossa vontade, e por isso são eles os reveladores de um sorriso genuíno, ou seja, puxado pelo sentimento ou emoção. Portanto, os músculos orbiculares revelam os verdadeiros sentimentos que há por trás de um sorriso.

A mimese, representação deliberada e consciente de cenas, pensamentos, intenções por meio de mímica e ações, parece ser uma aquisição especificamente humana, como a linguagem (e talvez a música). Nos grandes primatas, que são capazes de “macaquear” ou arremedar, é ínfima a capacidade de criar representações miméticas de maneira consciente e deliberada. Uma “cultura mimética” pode ter sido uma etapa intermediária, mas crucial da evolução humana, entre a cultura “episódica” dos antropoides e a cultura “teórica” do homo sapiens sapiens. E acontece que a mimese tem uma representação cerebral muito mais extensa e profunda do que a linguagem falada. E isso talvez explique porque é preservada em muitos pacientes que deixaram de falar depois de um Acidente Vascular Cerebral. Essa preservação pode permitir uma comunicação notavelmente rica, ainda mais se for elaborada e intensificada pelo exercício de aprendizagem. Um bom desempenho nas atitudes corporais e no gesto pode dizer muita coisa. Uma boa pantomima, obviamente, para uma boa transfiguração, requer: interpretação; habilidade; e treino.

A pantomima é muito antiga, tendo acompanhado o desenvolvimento da dramaturgia na Grécia Antiga. Mas já há indícios de pantomima - em rituais religiosos egípcios, sumérios e hindus - há mais de cinco mil anos. Mas foi no século IV a.C. que a pantomima teve o seu apogeu nos festivais dionisíacos. Aparentemente a mímica era prodigiosa no Teatro de Dioniso. Nessa época, a forma mais elaborada de mímica, a "hypothesis", era representada por atores que incorporavam dentro de si as personagens propriamente ditas. Aristóteles na sua Poética, sobre a Tragédia, cita no primeiro parágrafo os mimos de Sófron de Siracusa. Sófron de Siracusa foi um poeta grego, que viveu na segunda metade do século VI a.C. Conhecido pela sua prosa ritmada escrita em dialeto dórico, exerceu influência sobre Platão na estruturação dos seus Diálogos. Conhecem-se apenas alguns fragmentos da sua obra, com cenas da vida quotidiana. A pantomima era, em todo o caso, uma expressão teatral à parte. Nos vasos jónicos encontram-se pinturas retratando pantomimas aos governantes locais, e a figuras típicas populares.  

A pantomima foi de novo provida no tempo do Império Romano de Augusto. Nos festivais realizados no Palácio dos Desportos podiam assistir 40.000 pessoas. Muito foi escrito sobre esse apogeu da pantomima. O poeta Lívio Andrónico, é considerado o primeiro one-man-show da história do teatro. O principal nome da pantomima romana ao incorporar a pantomima grega. Também vale reportar a citação de Cícero sobre a interpretação de dois grandes pantomímicos romanos, Bathylle e Pylade, com as suas versões de Ésquilo. Como se existisse uma língua em cada ponta dos dedos.

Com a queda do Império Romano, vieram para Roma os Papas, e os teatros não tardaram em fechar, e a pantomima foi proibida. Mas tarde veio a Inquisição, e então nem se fala, ao ponto de ser proibida qualquer livre manifestação artística. Os atores da chamada "commedia dell'arte" precisaram de adotar uma nova "conceção plástica de teatro". E assim, com o Renascimento a mímica voltou à cena, sendo representada basicamente nas praças e mercados. Espetáculo teatral e circense, tanto mais intensificado pela presença das máscaras. lembremo-nos de Veneza, que determinavam papéis mais ou menos estereotipados para toda a forma de representação com o gesto mímico, dança, acrobacia, consoante as circunstâncias. O que exigiu um conhecimento mais profundo da gramática plástica.




Em França, no início do século XIX, surgiu um genial pantomímico - Jean-Gaspard Deburau, que criou o personagem Baptiste oriundo da família dos Pierrots. Daí uma efervescência da pantomima romântica nos anos posteriores por toda a Europa. Muitos artistas aprimoraram o estilo apresentando-se em teatros, music-halls, circos, e até nas ruas. A famosa Boulevard du Temple marcou a Era de Ouro da Pantomima de 1825 a 1860. Mais tarde, 1945, imortalizado no cinema pelo filme de Marcel Carné "Les Enfants du Paradise" - protagonizado pelo grande ator e mímico francês Jean Louis BarraultFalava da biografia ficcional de Deburau, junto aos "Funâmbulos". E depois vieram os filmes de cinema mudo com os pantomimos: Charles Chaplin e Buster Keaton. Estes foram à época os mais expressivos herdeiros da pantomima. 




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