terça-feira, 6 de abril de 2021

«Poderíamos compreender as suas mentes, quase nelas penetrar»



T. E. Lawrence - Os Sete Pilares da Sabedoria
Em Novembro de 1917, Allenby estava pronto a iniciar um ataque geral contra os Turcos em toda a sua extensão da sua frente. Os Árabes deveriam ter feito o mesmo no seu sector; mas eu receava arriscar tudo numa única jogada, e, em vez disso, planeei a capciosa operação do corte do caminho-de-ferro do vale de Yarmuk, para provocar a desordem na retirada turca prevista. Este meu passo teve o fracasso que merecia.
Nós, na frente árabe, estávamos em grande intimidade com o inimigo. Os nossos oficiais árabes tinham sido oficiais turcos e conheciam pessoalmente todos os chefes do outro lado. Haviam recebido o mesmo treino, pensavam da mesma maneira, tinham o mesmo ponto de vista. Sondando os métodos de abordagem dos árabes, poderíamos explorar os Turcos: poderíamos compreender as suas mentes, quase nelas penetrar. O relacionamento entre nós e eles era universal, porque a população civil da área inimiga estava inteiramente do nosso lado, sem subornos nem persuasão. Em consequência, o nosso serviço de espionagem era o mais amplo, o mais completo e o mais seguro que era possível imaginar.

Esse aliado era Meinertzhagen, um estudioso de aves, que fora parar ao Exército e cujo ardente e imoral ódio ao inimigo se traduzia tão depressa na astúcia como na violência. Não era homem de meias medidas. Era lógico, profundamente idealista e tão compenetrado das suas convicções que não se importava de atrelar o mal ao carro do bem. Era um estratego, um geógrafo e um homem dominador de riso silencioso, que sentia tanto prazer em enganar um inimigo (ou um amigo) com qualquer manobra pouco escrupulosa como em esmagar os miolos de um bando de alemães encurralados, um a um, com a sua clava africana. Os seus instintos eram estimulados por um corpo imensamente poderoso e um cérebro selvagem, que decidia qual a melhor maneira de atingir os seus fins, sem qualquer impedimento de dúvida ou hábitos. Meiner preparou falsos documentos do Exército, elaborados e confidenciais, que indicariam a um experiente oficial de estado-maior posições erradas da formação principal de Allenby, uma direção errada do ataque iminente e uma data com alguns dias de atraso. Esta informação foi transmitida através de cuidadosas insinuações, por meio de mensagens telegráficas. Quando soube que o inimigo as captara, Meinertzhagen partiu em missão de reconhecimento, com o seu livro de anotações. Foi avançando sempre, até que o inimigo acabou por vê-lo. Na sua fuga a galope, perdeu todo o seu equipamento, e por pouco não perdia a vida também, mas sentiu-se recompensado por ter observado as reservas inimigas por detrás de Gaza e todos os seus preparativos na deslocação para a costa efetuados com menos urgência. Simultaneamente, uma ordem do Exército, dada por Ali Fuad Paxá advertia o seu Estado-Maior contra o transporte de documentos de documentos pela linha férrea.


 
Lawrence (Peter O'Toole) com Ali ibn Hussein (Omar Sharif) no filme Lawrence da Arábia, 1962, dirigido por David Lean, roteiro de Robert Bolt e Michael Wilson baseado nos Sete Pilares da Sabedoria de T. E. Lawrence.
Eu estava mais bem montado que a maior parte deles, na camela vermelha que encabeçava a nossa procissão a Beidha. Era um animal longo e inclinado, com uma passada enorme, como o avanço de um êmbolo, e difícil de suportar; vigorosa, mas não inteiramente mecanizada, pois havia coragem no esforço persistente que a levava a esforçar-se para chegar sempre à linha da frente. Aí, depois de ultrapassados todos os concorrentes, a sua ambição morria numa passada sólida, mais longa alguns centímetros que a dos camelos normais, mas muito semelhante à dos outros animais, excetuando o facto de proporcionar uma sensação de confiança na imensa reserva da sua força e da sua resistência. Os indianos, muito rígidos na sela, como se montassem a cavalo, faziam o melhor que podiam. Juntei-me a Ali ibn Hussein, que montava uma rara e velha camela de corrida. O animal devia ter uns 14 anos, mas nunca enfraqueceu o passo nem se sacudiu durante toda a noite. Com a cabeça baixa, avançava naquele passo rápido, de joelhos pendentes, próprio de Nejd, que tanto facilitava a vida do cavaleiro. Começou a chuviscar, e o solo tornou-se escorregadio. Um camelo sirhani caiu. Um dos beni sakhrs caiu. A chuva parou e começámos a andar mais depressa.

Os beni sakhrs queriam honra, e os serahins tinham feito uma tão triste figura que reclamavam mais aventuras. Fazer rebentar comboios era uma ciência exata, quando o atentado era feito deliberadamente, com um grupo suficiente, com metralhadoras em posição. Feito de improviso, podia tornar-se perigoso. A dificuldade, desta vez, residia nos artilheiros indianos, que embora fossem bons quando devidamente alimentados, perdiam grande parte das suas qualidades quando tinham frio e fome. Não queria arrastá-los sem rações para uma aventura que poderia demorar ima semana. Não havia crueldade alguma em fazer os árabes passarem fome; não morriam por causa de uns dias de jejum. E lutavam tão bem como sempre, mesmo de estômago vazio. E, se as cousas se tornassem muito difíceis, podiam sempre matar e comer os seus camelos. Mas os indianos, embora fossem muçulmanos, por princípio recusavam-se a comer carne de camelo.

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