segunda-feira, 19 de abril de 2021

A linha férrea do Hejaz






O principal propósito da Hejaz Railway foi estabelecer, com os seus quase 1.400 quilómetros de extensão, a ligação de Istambul, capital do Império Turco-Otomano, à cidade sagrada de Meca. Mas em decorrência dos conflitos na região, não foi além de Medina, a 400 quilômetros de Meca. A linha corta a região do Hejaz (a Oeste da Península Arábica), com um braço que se estende até Haifa, no Mar Mediterrâneo, e promoveria a integração económica e política do Império Turco com as províncias árabes, também facilitando o transporte de forças militares e de mercadorias. Os Turcos tinham-na como fonte vital de abastecimento aos seus 10 mil homens em Medina. Por isso, a ferrovia tornou-se a espinha dorsal da campanha militar.

A linha foi sugerida em 1864, para aliviar os peregrinos do Hejaz na sua viagem de 40 dias através das regiões inóspitas de Mediã e das montanhas do Hejaz. Era comum que 20% dos peregrinos morressem durante a viagem, de fome, sede e de doenças. Basicamente, a linha do Hejaz era um uma parte de um projeto muito mais ambicioso que ligava Berlim a Bagdade. A
 sua construção foi iniciada em 1900 por ordem do sultão Abdullamid II, com as obras dirigidas pelo engenheiro civil alemão Heinrich August Meissner, financiadas pelo Deutsche Bank, com forte apoio do Império Alemão. Foi aberta uma subscrição pública por todo o mundo islâmico para o financiamento da construção, mas em 1912 o Império Otomano devia 29 milhões de libras turcas ao Deutsche Bank. 

Antes da construção, o conselheiro militar alemão Auler Paxá estimou que o tempo de transporte de soldados entre Istambul e Meca seria reduzido para 120 horas. A linha de Bagdade foi construída ao mesmo tempo. Devido ao financiamento depender de doações e à pressão crescente do Reino Unido e da França, a construção avançou muito lentamente e demorou bastante mais do que o previsto. A linha chegou a Medina sob a supervisão do engenheiro chefe Mouktar Bei no dia 1 de setembro de 1908, dia do aniversário da subida ao trono do sultão. No entanto, para que a inauguração pudesse ocorrer nesse dia recorreu-se a vários artifícios, como alguns trechos da linha serem colocados sobre aterros provisórios em Wadi Rum. Em 1913 foi aberta a Estação do Hejaz no centro de Damasco, o terminal da linha.

E então voltamos ao tópico do Lawrence da Arábia e da Revolta Árabe no decurso da Primeira Guerra Mundial. Desde já se diga que, após a queda do Império Otomano, depois da Primeira Guerra Mundial, a linha não voltou a abrir a sul do que é hoje a fronteira entre a Jordânia e a Arábia Saudita. Em meados da década de 1960 foi feita uma tentativa de reabertura, a qual foi abandonada devido à Guerra dos Seis Dias, em 1967 (entre 5 e 10 de junho), um conflito que envolveu Israel e os países Árabes [Síria, Egito, Jordânia e Iraque, apoiados pelo Kuwait, Arábia Saudita, Argélia e Sudão], e em que Israel saiu vitorioso. Em 2018 só dois trechos da linha original estavam completamente funcionais. Um desses trechos - Amã a Damasco. 
Atualmente os comboios partem da estação de Qadam, nos arredores de Damasco, e não da Estação de Hejaz, que encerrou em 2004. Muitas das locomotivas originais foram restauradas: na Síria há nove locomotivas a vapor funcionais; na Jordânia há sete. 

A 9 de maio de 1917, partiram de Wejh. Não havia hipótese de os Turcos esperarem um ataque do deserto porque estava inexplorado e era raro lá passar alguém - não havia poços em centenas de quilómetros. Os Turcos sentiam-se seguros com as costas protegidas pelo deserto. Os dias passavam lentamente e a solidão do deserto abrasador e das noites gélidas apenas se alterava na textura da areia soprada pelo vento ou no cascalho que percorriam. Atravessaram a Linha dos Peregrinos perto da aldeia de Dizad. Os Turcos patrulhavam a via-férrea com tropas em camelos e vagonetas protegidas por metralhadoras, mas não viram sinais de atividade turca, pelo que Lawrence colocou cargas explosivas na linha. Auda ficou desiludido ao ver o tamanho delas, mas nunca tivera a experiência da dinamite. Lawrence ativou os detonadores e o grupo retirou para trás das dunas; Auda ficou ousadamente de pé, sem proteção. A explosão foi sonora e lançou bem alto muita areia e secções de carris e de chulipas. Auda, abalado, impressionado com a explosão, passou a dissertar liricamente sobre a dinamite. Receosos de que as explosões alertassem os Turcos, cortaram o telégrafo. Ouviram os Turcos a aproximar-se. Sem saberem o que tinha acontecido nem a causa das explosões, disparavam a torto e a direito para as colinas. O grupo de Lawrence escapuliu-se e desapareceu.

A 30 de maio, guerreiros da tribo Abu Tayi juntaram-se ao grupo. A caravana pôs-se em marcha, num espetáculo notável. A força de incursão de Lawrence seguiu o caminho-de-ferro para sul e deu com um posto turco que guardava uma estação de reabastecimento e um armazém ferroviário. Ao verem ovelhas amarradas a um poste, os Árabes, famintos, não precisaram de persuasão para atacar. Zaal apontou ao Turco mais próximo, um oficial refastelado numa cadeira. Ouviu-se um disparo e os soldados turcos, incrédulos, viram-no deslizar, atingido no coração. Foi o sinal para os homens de Lawrence carregarem sobre o posto. Os Turcos fugiram para o edifício de pedra e barricaram a porta, e os Árabes, sem interferência dos Turcos apavorados, apoderaram-se do rebanho. O edifício foi regado com parafina e incendiado. Nessa noite, regalaram-se com um festim de borrego assado. Em Bair, juntaram-se à força principal que continuava a avançar para sul, em direção a Aqaba.

Os Turcos não sabiam da aproximação das forças de Lawrence e que bloqueavam o único acesso a Aqaba. Com as provisões a escassear e sem possibilidade de se reabastecer, Lawrence viu-se confrontado com um inesperado contingente turco equipado com metralhadoras, artilharia e cavalaria. Só havia uma opção: atacar de surpresa ao alvorecer; caso contrário, a missão estava condenada ao fracasso ou, pior ainda, ficariam encurralados no deserto, à mercê dos Turcos. Quando o sol nasceu, já os Árabes tinham subido aos montes que dominavam o desfiladeiro de Aba el Lissan. Como os Turcos não tinham colocado sentinelas, Lawrence destruiu a linha de telefone para Maan. Apesar de em inferioridade numérica, os Árabes cercaram os soldados adormecidos. Aos primeiros raios de sol, abriram fogo. Sobreveio então a confusão. Com os sons dos disparos a reverberarem nas colinas, os Turcos não conseguiam identificar as posições dos atacantes nem determinar a sua força. Dispararam às cegas até começarem a ficar sem munições. Passada uma hora, os Árabes tinham dizimado a força turca, e o pânico instalou-se.

Os soldados tentavam escapar numa direção mas eram alvejados pela retaguarda; quando optavam por direção diferente, eram brindados com idêntico tratamento. A meio da manhã, os sobreviventes esconderam-se entre as rochas que pejavam o desfiladeiro, enquanto os Árabes continuavam a atirar sobre tudo o que mexia. O dia foi avançando e o calor começou a fazer vítimas entre Árabes e Turcos. Cada tentativa dos Turcos para obterem água do poço era saudada com tiros precisos e a crescente pilha de corpos em redor dos baldes de água era forte dissuasor para os sobreviventes, que começavam a perder as forças por causa da sede. Lawrence compreendeu que tinha de agir. Procurou Auda e o velho chefe árabe correu para o camelo e desceu a encosta até um barranco escondido onde concentrara os seus 300 melhores guerreiros. A um sinal seu, carregaram encosta abaixo sobre os Turcos, que estavam exaustos. Já os Árabes estavam a massacrá-los pela destruição da aldeia no dia anterior e, em menos de 5 minutos, jaziam em redor do poço mais de 400 mortos. Exaustos pelo esforço, os atacantes acederam ao apelo de Lawrence para porem fim à chacina e cerca de 100 turcos foram feitos prisioneiros. Admitiram que a guarnição de Maan ficara reduzida a menos de um regimento.

Estes acontecimentos excitaram os Howeitat, que quiseram avançar de imediato sobre Maan. A possibilidade de se apoderarem de uma cidade importante e de a pilharem era quase irresistível para os homens de Auda, que sabiam que a única coisa que existia em Aqaba era um porto em ruínas. Para os Árabes, a vantagem tática de Aqaba era insignificante comparada com a pilhagem de Maan. Mas Lawrence e Auda resolveram a questão com promessas de ouro em Aqaba. Os Árabes contentaram-se com os despojos dos turcos mortos e feridos.

Com 140 novos prisioneiros, seguiram caminho e ao anoitecer estavam a menos de 5 quilómetros de Aqaba. Do alto do desfiladeiro, olharam para o pequeno porto, onde não parecia haver muita atividade turca. A guarnição era comparável ao contingente árabe, mas os Turcos julgaram-se em inferioridade. Aceitaram render-se e Lawrence realizou o impossível: Aqaba fora conquistada, 
hoje uma cidade portuária da Jordânia, junto ao Mar Vermelho.

Depois do triunfo de Aqaba, a caminho para Damasco, há um episódio traumático que muitos têm apontado como o motivo da alteração de comportamento de Lawrence. Mais fechado, mais duro, mais secreto, com vontade de desistir, depois de ter sido capturado pelo exército turco e sujeito a tortura. Antes da violência de que seria alvo, o oficial fizera-lhe uma proposta. O papel de Lawrence na aliança estabelecida com o influente emir Faisal, na conquista de Damasco. 




Os comboios destruídos durante a Revolta Árabe de 1916 a1918 ainda podem ser vistos nos locais onde foram atacados. A estação de Madain Saleh foi restaurada e transformada num museu. O Sítio Arqueológico de al-Hijr ou Madaim Salé ("lugar da rocha"), é uma antiga cidade localizada a norte de Hejaz, Arábia Saudita, a 22 quilómetros da cidade de Al-Ula. Localiza-se a cerca de 320 quilómetros de Petra, na Jordânia, sendo que as duas localidades, no seu conjunto, representam um testemunho histórico da arquitetura dos povos da região, notadamente os Nabateus. Na Antiguidade, a região era habitada pelos povos tamudis e nabateus, sendo denominada como Hegra. Inscrições e gravações encontradas em vários desses monumentais tumulares datam do século II a.C. e a sequência de construção deles se estende até ao século I d.C., todos construídos pela civilização nabateia que habitava a região nesse período. Outros elementos arquitetónicos encontrados, posteriores, datam do período das civilizações tamudi e liane. É Património Mundial da Unesco.

Na leitura de "Os Sete Pilares da Sabedoria", deparamo-nos muitas vezes com um Lawrence contemplativo: “O exército morto das minhas esperanças, agora tornado real, confrontava-me, e a minha vontade, esse instrumento gasto que durante tanto tempo corroera o nosso caminho, partiu-se subitamente nas minhas mãos e parecia ser inútil. Dizia-me que esse capítulo oriental da minha vida chegara ao fim. Havia a manhã e o dia seguinte de cuidado implacável, em que quase de certeza o Faiçal conquistaria os frutos da batalha; e isso era tudo trabalho meu. Ou teria sido apenas um sonho, do qual eu voltaria a acordar sentado na sela, com mais meses de esforço, de pregação e de risco pela frente?” Acaba por ser uma narrativa poética sobre um encontro de culturas, uma obra ao mesmo tempo profundamente observadora e introspetiva, um olhar atento sobre o outro e sobre o próprio. Escrita por um homem em constante conflito interior com o seu papel ambíguo na chamada Revolta Árabe: de um lado os árabes, seus ‘irmãos’ de combate; do outro os ingleses, cheios de promessas que ele sabia que não seriam cumpridas.

Lemos, relemos, citamos e há sempre um silêncio que potencia o mistério, o enigma, ou como escreveu Churchill: nenhum extrato ou citação poderia transmitir a atmosfera que o leitor respirará. A vastidão do deserto, o peso do sol, o terrível cansaço das longas marchas de camelo, os restos de comida e as gotas de água que têm gosto de festas dos deuses, a tensão feroz e rígida das emboscadas, os cruéis e impiedosos combates, as grandes operações de guerra nas quais esse combate teve um papel notável, a aniquilação da coluna turca, a rutura das comunicações turcas, a tentativa perdida com um punhado de irregulares para impedir a retirada de um exército turco-alemão de 80.000 soldados, a entrada triunfante em Damasco, uma série inesgotável de quadros que prendem a mente e agitam a alma. A questão dos enigmas prende-se mais com as vicissitudes que rodearam a pré-publicação. Ele perdeu o manuscrito, teve de escrever outra vez tudo de memória. É claro que é a própria condição do autor que faz da narrativa um romance. Não há dúvida que Lawrence é uma personalidade excêntrica, mas ao mesmo tempo reservada. No texto perpassa mais uma inquietude do narrador, que constantemente se questiona se estará à altura da missão. Quis demitir-se várias vezes. 
Associado a uma simbologia entre o romântico e o pop, morre aos 46 anos, num acidente de mota. 

Mais uns excertos do livro - Os Sete Pilares da Sabedoria de T. E. Lawrence:
A batalha permanente despojava-nos de preocupações pela nossa vida ou pelas dos outros. Tínhamos a corda ao pescoço e as nossas cabeças estavam a prémio, por valores tais que revelavam que o inimigo nos preparava torturas hediondas se fôssemos apanhados. Todos os dias morriam alguns de nós; e os que continuavam vivos sentiam que não passavam de fantoches sencientes no palco de Deus; na realidade, o nosso capataz era impiedoso, impiedoso, enquanto os nossos pés doridos conseguissem arrastar-se pelo caminho. Os fracos invejavam aqueles que se cansavam suficientemente para morrer; pois a vitória parecia tão longínqua e o fracasso uma libertação próxima e garantida, embora dura, do sofrimento. Vivíamos sempre com os nervos ora retesados, ora bambos, ora no auge, ora na depressão das vagas do sentimento. Esta impotência era amarga e fazia que vivêssemos apenas para o horizonte que avistávamos, indiferentes ao mal que infligíamos ou suportávamos, visto que a sensação física se revelava mesquinhamente transitória. As rajadas de crueldade, perversões, desejos, passavam ao de leve sobre a superfície sem nos perturbarem; porque as leis morais que tinham parecido proteger-nos destes acidentes patetas deviam ser palavras ainda mais débeis. Tínhamos aprendido que havia dores demasiado agudas, mágoas demasiado profundas, êxtases demasiado elevados, para poderem ser registados pelos nossos seres finitos. Quando a emoção atingia o seu auge, a mente ficava sufocada; e a memória apagava-se até as circunstâncias regressarem à normalidade.
Tamanha exaltação do pensamento, embora deixasse o espírito à deriva e lhe conferisse permissão para vogar em estranhos ares, retirava-lhe o antigo domínio paciente sobre o corpo. O corpo era demasiado grosseiro para sentir o auge dos nossos desgostos e das nossas alegrias. Por isso, abandonávamo-lo como se fosse lixo; deixávamo-lo abaixo de nós para marchar em frente, um simulacro dotado de respiração, ao seu próprio nível, sem assistência, sujeito a influências das quais, em tempos normais, os nossos instintos nos teriam feito fugir. Os homens eram jovens e robustos; e a carne e o sangue quentes reclamavam inconscientemente um direito e atormentavam-lhes os ventres com estranhos desejos. As nossas privações e perigos acalmavam este ardor viril, num clima tão excessivo quanto se possa imaginar. Não tínhamos locais fechados onde pudéssemos ficar sozinhos, nem roupas espessas para ocultar a nossa natureza. Em todas as coisas, o homem vivia ingenuamente com o homem.

O Árabe era, por natureza, continente; e o uso do casamento universal tinha praticamente abolido relações irregulares nas suas tribos. As mulheres públicas das escassas povoações que encontrámos nos nossos meses de viagem não teriam chegado para nós, mesmo que a sua carne ocre tivesse sido aceitável para um homem de gostos saudáveis. Horrorizados ante esse comércio sórdido, os nossos jovens começaram a satisfazer indiferentemente as poucas necessidades uns dos outros nos seus próprios corpos limpos – uma conveniência fria que, por comparação, parecia assexuada e até pura. Posteriormente, alguns deles começaram a justificar este processo estéril, e juravam que amigos estremecendo juntos na areia macia, com os membros íntimos quentes no abraço supremo, encontravam aí, oculto na escuridão, um coeficiente sensual da paixão mental que fundia as nossas almas e espíritos num esforço ardente. Vários deles, suportando a sede para castigar apetites que não conseguiam evitar completamente, sentiam um orgulho selvagem em degradar o corpo e ofereciam-se ferozmente para qualquer tarefa que prometesse sofrimento físico ou imundície.

Fui enviado para o pé desses árabes como um estranho, incapaz de pensar como eles ou de aceitar as suas crenças, mas compelido pelo dever de os conduzir e de desenvolver ao máximo qualquer movimento deles que pudesse ser vantajoso para a Inglaterra na sua luta. Se não podia assumir o seu carácter, podia pelo menos ocultar o meu, e passar entre eles sem fricção evidente, sem discordar nem criticar, apenas como uma influência despercebida. Como fui seu companheiro, não posso ser seu apologista nem seu defensor. Hoje, nos meus trajos antigos, poderia passar por espectador, obedecendo às sensibilidades do nosso teatro… mas é mais honesto registar que essas ideias e atos eram então considerados naturais. Aquilo que agora parece dissoluto ou sádico parecia inevitável no terreno, ou apenas um hábito pouco importante.

Tínhamos sempre sangue nas mãos; estávamos habituados a ele. Ferir e matar pareciam-nos sofrimentos efémeros, tão breve e dorida era a vida para nós. Sendo tão grande a dor de viver, a dor do castigo tinha de ser implacável. Vivíamos para o dia de hoje e morríamos por ele. Quando havia razão e desejo de castigar, escrevíamos imediatamente a nossa lição com a espingarda ou o chicote na carne obstinada do desgraçado, e não havia hipótese de apelo. O deserto não permitia os lentos e requintados castigos dos tribunais e das prisões.

Evidentemente, as nossas recompensas e prazeres eram tão subitamente arrebatadores como os nossos sofrimentos; mas, para mim, em particular, era menor o seu volume. Os modos dos beduínos eram duros mesmo para os que neles tinham sido criados, e para os estrangeiros terríveis; uma morte em vida. Quando a marcha ou o trabalho terminavam, eu não tinha energia para registar as sensações, nem, enquanto duravam, tempo para ver a beleza espiritual que por vezes nos invadia no caminho. Nas minhas notas encontram-se mais coisas cruéis do que belas. Sem dúvida apreciávamos mais os raros momentos de paz e esquecimento; mas eu recordo-me melhor da agonia, dos terrores e dos erros. A nossa vida não se resumia àquilo que escrevi (há coisas que não podem ser repetidas a sangue-frio, tão vergonhosas são); mas o que escrevi existiu e fez parte da nossa vida. Queira Deus que quem ler estas páginas não decida, por amor ao fascínio da singularidade, prostituir-se a si e ao seu talento ao serviço de outra raça.

Um homem que se ponha à disposição de estranhos faz uma vida de animal, pois vendeu a alma a um treinador de animais. Não é um deles. Pode voltar-se contra eles, pode convencer-se de que tem uma missão, transformá-los em algo que eles, por sua própria vontade, nunca seriam. Assim explora o seu próprio ambiente antigo, para os forçar a sair do deles. Ou, segundo o meu modelo, poderá imitá-los tão bem que eles, simuladamente, o imitam também. Então está a sair do seu próprio ambiente, fingindo pertencer ao deles; e os fingimentos são coisas vãs, inúteis. Em nenhum dos casos faz uma coisa sua, nem uma coisa tão límpida que possa tornar sua (sem a ideia de conversão), permitindo aos outros que ajam ou tenham as reações que lhes agradem, a partir do exemplo silencioso.

No meu caso, o esforço feito durante estes anos para viver disfarçado de árabe, imitando as suas bases mentais, separaram-me do meu eu inglês e fizeram-me olhar para o Ocidente e para as suas convenções com novos olhos; destruíram-no completamente em relação a mim. Simultaneamente, não podia sinceramente meter-me na pele dos Árabes; era apenas uma imitação. Era fácil fazer de um homem um infiel, mas dificilmente se poderia convertê-lo a outra fé. Eu tinha abandonado uma forma sem tomar outra, e tinham-me tornado como o caixão de Maomé da nossa lenda, com a consequente sensação de intensa solidão na minha vida, e um desprezo, não pelos outros homens, mas por aquilo que eles fazem. Este distanciamento ocorre, por vezes, com os homens exaustos por um esforço físico e isolamento prolongados. O corpo continua a funcionar mecanicamente, enquanto a mente racional os abandona e, de fora, os olha criticamente, perguntando a si mesma o que fez e porquê aquele traste inútil em que habitou. Por vezes, os dois eus travam conversas no vácuo; e então a loucura está próxima, como creio que se aproximaria do homem que conseguisse ver as coisas simultaneamente através dos véus de dois costumes, duas culturas, dois ambientes

Houve de novo uma pausa no meu trabalho, e de novo tive tempo para pensar. Até Faiçal, e Jaafar, e Joyce, e o exército chegarem, pouco podíamos fazer, além de pensar; contudo, pensar, devemos reconhecê-lo, era um processo essencial. Até então, a nossa guerra tivera uma única operação planeada – a marcha sobre Aqaba. Aqueles movimentos acidentais dos homens e das ações de que havíamos assumido o comando davam-nos cabo da cabeça. Fiz o voto de, a partir daquela altura, antes de tomar uma decisão, saber sempre antecipadamente para onde ia e quais as rotas a percorrer.

Em Wejh, a Guerra do Hejaz estava ganha: depois de Aqaba, terminara. O exército de Faiçal pagara as suas responsabilidades árabes, e agora, sob o comando do general Allenby, comandante-chefe adjunto, o seu papel seria participar na libertação da Síria. A diferença entre o Hejaz e a Síria era a diferença entre o deserto e a terra semeada. O problema que se nos deparava era um problema de carácter – aprendermos a tornar-nos civis. A aldeia do Wade Musa era o nosso primeiro ponto de recruta de camponeses. A menos que nos tornássemos camponeses também, o movimento de independência não poderia prosseguir.

Era vantajoso para a revolta árabe que se impusesse aquela modificação quase no início do seu crescimento. Esforçáramo-nos em vão por semear terrenos baldios, para fazer crescer a nacionalidade num lugar cheio da certeza de Deus, aquela certeza perniciosa que proibia todas as esperanças. Entre as tribos, a nossa crença só poderia ser como a erva do deserto – uma bela e rápida aparência de Primavera que, ao fim de um dia de calor, secava coberta de poeira. Os objetivos e as ideias tinham de ser traduzidos em expressão material. Os homens do deserto estavam demasiado separados para expressarem os primeiros; demasiado pobres em bens materiais, demasiado afastados da complexidade para apoiarem as segundas. Se quiséssemos prolongar a nossa duração, teríamos de conquistar as terras cultivadas, chegar às aldeias onde os tetos ou os campos conservavam os olhos dos homens voltados para baixo e para o que estava próximo e iniciar a nossa campanha como iniciáramos.

Tínhamos os pés na sua fronteira meridional. Para leste, estendia-se o deserto dos nómadas. A oeste, a Síria era limitada pelo Mediterrâneo, desde Gaza a Alexandreta. A norte, era limitada pelas povoações turcas da Anatólia. Dentro destes limites, a terra estava bastante emparcelada por divisões naturais. Destas, a primeira e a maior era longitudinal, a acidentada cordilheira de montanhas que, de norte a sul, separava uma faixa costeira de uma ampla planície interior. Estas regiões tinham diferenças climáticas tão acentuadas que quase formavam dois países, duas raças, com as suas respectivas populações. Os sírios da costa viviam em casas diferentes, alimentavam-se e trabalhavam de maneira diferente, e o seu árabe diferia, na inflexão e no tom, daquele que falavam os homens do interior. E gostavam pouco de falar do interior, como se se tratasse de uma terra selvagem, onde dominassem o sangue e o terror.

A planície interior encontrava-se geograficamente subdividida em diversas faixas pelos rios. Estes vales continham as safras mais estáveis e mais prósperas de todo o país. Os seus habitantes eram um reflexo deles: contrastavam, do lado do deserto, com as populações estranhas e instáveis da fronteira, que se deslocavam para leste ou para oeste conforme as estações, viviam de expedientes, atacadas pela seca e pelos gafanhotos ou pelos ataques dos Beduínos; ou, se nada disto as conseguisse destruir, pelas suas próprias incuráveis quezílias sangrentas.

A Natureza dividira, pois, o país em zonas. Os homens, aperfeiçoando a Natureza, deram aos seus compartimentos uma maior complexidade. Cada uma destas divisões principais em faixas, de norte a sul, era atravessada e dividida artificialmente, por meio de muralhas, em diversas comunidades. Era necessário reuni-las nas nossas mãos para a ação ofensiva contra os Turcos. As oportunidades e as dificuldades de Faiçal residiam nessas complicações políticas da Síria que ordenámos mentalmente, como num mapa social.

No extremo norte, o mais afastado de nós, a fronteira da linguagem acompanhava, naturalmente, a estrada que ia de Alexandreta a Alepo, até se encontrar com o caminho-de-ferro de Bagdad, ao longo do qual subia o vale do Eufrates; mas havia enclaves de expressão turca a sul desta linha, nas aldeias turcomanas a norte e a sul de Antioquia, e entre os arménios que se haviam introduzido no meio delas.

Além disso, uma das principais componentes da população costeira era a comunidade de Ansarianos, os discípulos de um culto da fertilidade, puramente pagã, xenófoba, descrente do islamismo, atraída por vezes para o lado dos cristãos graças a perseguições comuns. Esta seita, de importância vital, estava apegada às tradições do clã quanto a sentimentos e a política. Um Nosairita nunca trairia outro e dificilmente deixaria de trair um não-crente. As suas aldeias estavam situadas em pequenas manchas ao longo dos montes principais até ao desfiladeiro de Trípoli. Falavam árabe, mas viviam ali desde o início da cultura grega na Síria. Mantinham-se geralmente afastados dos negócios e deixavam em paz o Governo turco, numa esperança de reciprocidade.

Havia colónias de cristãos sírios misturadas com os Ansarianos; e na faixa do Orontes houvera algumas sólidas comunidades de arménios, inimigas dos Turcos. No interior, perto de Harim, encontravam-se os Drusos, de origem árabe; e alguns circassianos provenientes do Cáucaso. Estes eram inimigos de todos. A nordeste deles encontravam-se os Curdos, que se haviam fixado umas gerações antes e se estavam a casar com árabes e a adotar a sua política. Odiavam sobretudo os cristãos nativos; e a seguir a estes, odiavam os Turcos e os Europeus.

Se se fizesse um corte da Síria, do mar ao deserto, um pouco mais para sul, começar-se-ia por encontrar colónias de circassianos muçulmanos, perto da costa. Na nova geração falavam árabe e constituíam uma raça engenhosa, mas beligerante, muito hostilizada pelos seus vizinhos árabes. Para o interior ficavam os Ismaelitas. Estes imigrantes persas tinham-se tornado árabes ao longo de séculos, mas reverenciavam entre si um Maomé que, em carne e osso, era o Aga Khan. Consideravam-no um magnífico soberano, que honrava os Ingleses com a sua amizade. Evitavam os muçulmanos, mas disfarçavam mal a sua animosidade sob um verniz de ortodoxia.

Além deles, podiam observar-se as estranhas paisagens das aldeias tribais de árabes e cristãos, chefiados por xeques. Pareciam ser cristãos muito sólidos, diferentemente dos seus irmãos lamurientos dos montes. Viviam como os sunitas que os rodeavam, vestiam-se como eles e mantinham com eles as melhores relações. A oriente dos cristãos, encontravam-se comunidades muçulmanas pastoris; e, no limite final dos terrenos cultivados, havia algumas aldeias párias de ismaelitas, procurando a paz que os homens não lhes concediam. Para lá deles, os Beduínos.

Um terceiro corte através da Síria, outro grau mais abaixo, passava entre Trípoli e Beirute. Em primeiro lugar, perto da costa, estavam os cristãos libaneses; na sua maior parte, maronitas ou gregos. Era difícil desenredar as políticas das duas Igrejas. À primeira vista, uma delas devia ter sido francesa e a outra russa; mas uma parte da população, em busca de riqueza, estivera nos Estados Unidos, e aí se desenvolvera uma tendência anglo-saxónica, não menos vigorosa por ser espúria. A Igreja grega orgulhava-se de ser a da Síria antiga, autóctone, de um intenso regionalismo que seria mais suscetível de se aliar à Turquia do que de suportar o domínio irremediável de uma potência romana.

Nas encostas mais elevadas dos montes aglomeravam-se povoações dos Metawalas, maometanos xiitas de ascendência persa. Eram gente suja, ignorante, sombria e fanática, que se recusava a comer ou a beber com infiéis; consideravam os sunitas tão maus como os cristãos; seguiam apenas os seus próprios sacerdotes e notáveis. A força de carácter era a sua virtude, uma virtude rara na volúvel Síria. Nos cumes dos montes havia aldeias de camponeses cristãos, que viviam em paz com os seus vizinhos muçulmanos como se nunca tivessem ouvido os protestos do Líbano. A oriente destes encontravam-se camponeses árabes seminómadas; e depois havia o deserto.

Um quarto corte, um grau para sul, passaria perto de Acra, cujos habitantes, a começar pela costa, eram antes de mais árabes sunitas, depois drusos e depois Metawalas. Nas margens do vale do Jordão viviam colónias, terrivelmente desconfiadas, de refugiados argelinos, diante de aldeias judaicas. Os judeus eram de diversos tipos. Alguns deles, estudiosos hebreus de estilo tradicionalista, tinham criado um padrão e um estilo de vida adequado à região, ao passo que os que chegaram depois, muitos dos quais de influência alemã, tinham introduzido hábitos estranhos, culturas estranhas e casas europeias (construídas graças a doações) naquela terra da Palestina, que parecia demasiado pequena e demasiado pobre para poder retribuir devidamente os seus esforços; mas a região tolerara-os. A Galileia não demonstrava a aversão profundamente arreigada aos colonos judeus que constituía uma característica desagradável da vizinha Judeia.

Nas planícies orientais (altamente povoadas de árabes), estendia-se um labirinto de lava estalada, o Leja, onde os homens sem lei da Síria se congregavam havia inúmeras gerações. Os seus descendentes viviam em aldeias indisciplinadas, a salvo dos Turcos e Beduínos, dedicando-se à vontade às suas quezílias mutuamente destrutivas. A sul e a sudoeste deles abria-se o Hauran, uma enorme região fértil, povoada por camponeses árabes belicosos, autossuficientes e prósperos.

A leste destes encontravam-se os Drusos, muçulmanos heterodoxos seguidores de um sultão egípcio completamente louco. Sentiam pelos Maronitas um ódio terrível, que, quando encorajado pelo Governo e pelos fanáticos de Damasco, se manifestava por meio de grandes matanças periódicas. Não obstante, os Drusos eram detestados pelos árabes muçulmanos e, por sua vez, desprezavam-nos. Estavam em permanente hostilidade com os Beduínos e preservavam na sua montanha manifestações do feudalismo cavaleiresco do Líbano dos tempos dos seus emires autónomos.

Um quinto corte, à latitude de Jerusalém, começaria por alemães e judeus alemães, de expressão alemã iídiche, ainda mais intratáveis que os judeus da era romana, incapazes de aceitar o contacto com quem não fosse da sua raça, alguns deles camponeses, na sua maioria comerciantes, constituindo a mais estrangeira e menos caritativa parte de toda a população da Síria. À sua volta concentravam-se os seus inimigos, os sombrios camponeses da Palestina, mais estúpidos que os do Norte da Síria, interesseiros como os Egípcios e desprovidos de tudo.

A leste deles ficava a profundeza do Jordão, habitada por escravos escuros; e, em frente dela, grupos sucessivos de dignas aldeias cristãs que constituíam, a seguir aos seus correligionários agrícolas do vale do Orontes, os exemplos menos tímidos de nossa fé original naquele país. Entre elas, e a leste delas, viviam dezenas de milhares de árabes seminómadas, preservando o credo do deserto, receosos e sujeitos aos seus vizinhos cristãos. Nesta região disputável, o Governo otomano implantara uma linha de imigrantes circassianos do Cáucaso russo. Estes só conseguiam conservar as suas terras pela força da espada e com a ajuda dos Turcos, aos quais eram, por necessidade, dedicados.

O Zaagi irrompeu em gargalhadas nervosas, ainda mais desoladas perante o sol quente e o ar transparente daquela tarde no planalto. Eu disse: «Que o melhor de vós me traga o maior número de turcos mortos», e corremos atrás do inimigo em fuga, abatendo de caminho todos os que tinham caído junto da estrada e imploravam a nossa piedade. Um turco ferido, meio nu, incapaz de se pôr de pé, sentou-se e começou a chorar, olhando para nós. Abdulla voltou a cabeça do camelo, mas o Zaagi, praguejando, adiantou-se e meteu três balas da sua automática no peito nu do homem. O sangue começou a jorrar com os batimentos do coração, cada vez mais lentamente.

Tallal vira o mesmo que nós. Soltou um gemido, como um animal ferido; depois, dirigiu-se para o terreno mais elevado e ficou aí, durante algum tempo, montado na sua égua, a tremer e a olhar fixamente na direção dos Turcos. Comecei a aproximar-me para falar com ele, mas Auda agarrou-me nas rédeas e deteve-me. Muito lentamente, Tallal tapou o rosto com o pano da cabeça; em seguida, pareceu subitamente tomar consciência de si mesmo, porque enterrou os estribos nos flancos da égua e partiu a galope, inclinado para a frente e oscilando na sela, direito ao corpo principal do inimigo.

Era uma longa cavalgada, ao longo de uma encosta suave, passando por uma depressão. Ficámos parados, como estátuas, enquanto ele avançava, e o martelar dos cascos da égua parecia-nos anormalmente elevado, pois parávamos de disparar, e os Turcos também. Ambos os exércitos esperavam por ele; e ele continuava a cavalgar, na tarde silenciosa, até se encontrar a curta distância do inimigo. Depois endireitou-se na sela e soltou o seu grito de guerra: «Tallal, Tallal», por duas vezes, com uma voz terrível. As espingardas e as metralhadoras inimigas entraram imediatamente em funcionamento, e ele e a sua égua, crivados de balas, caíram mortos entre as pontas das lanças.

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