As instituições que deviam proteger-nos estão a alimentar uma cultura de impunidade – e não se vê quem esteja disposto a combatê-la e a travá-la. A bem dizer estas instituições parecem não ser bem instituições, mas sim corporações. E de entre as várias corporações que existem enquadradas por “Ordens”, estas corporações são das mais corporativas que há.
Isto é um pouco assim porque a nossa sociedade é também uma sociedade que convive bem, e confortável, com a mundividência da impunidade. Uma grande benevolência com a mentira e a aldrabice. José Sócrates é um corrupto, disse o juiz Ivo Rosa, porque vendeu a sua personalidade a Carlos Santos Silva enquanto Primeiro-Ministro. A bondade sobre o corrupto não devia ser-lhe útil, mas é. O que parece ser inútil é a indignação. As leis não deviam ter latitudes interpretativas tão alargadas.
A indignação diz-nos: “Prisão firme sem remorsos”. Ficamos a saber pelo juiz que o rendimento proveniente de atividade criminosa não paga imposto. Isso parece certo. Mas então os “1,7 milhões de euros cativos" deviam ser apreendidos e revertidos totalmente para o Estado. Agora, se o Estado devia entregar à Autoridade Tributária o imposto disso, é já uma história para burocratas. Ivo Rosa sustentou a existência de indícios mais do que suficientes para acreditar que Sócrates recebeu de forma ilegítima 1,7 milhões de euros de Carlos Santos Silva. "Corrupção passiva sem demonstração de ato concreto" […] ora bolas!
Diria que a disfunção está no burocrata, quando a sua razão de ser está na burocracia em si. Quando passa a trabalhar para os regulamentos e não para servir o cidadão com proficiência. Sendo os regulamentos e as normas apenas os meios, as coisas descambam quando passa a ser o fim e o principal objetivo. Passam a ser absolutos e prioritários. O funcionário se aliena e se condiciona, perdendo a capacidade do bom senso.
A necessidade de documentar e de formalizar todos os atos e comunicações, pode conduzir ao excesso de formalismo. Como tudo dentro da burocracia padronizado pela rotina passa a ser corriqueiro, o funcionário geralmente acostuma-se a uma completa pasmaceira alimentada pela repetição daquilo que faz, pelo rame-rame. O que passa a proporcionar-lhe uma completa segurança a respeito do seu futuro. Logo, qualquer mudança significa uma ameaça à sua segurança, sendo, portanto, altamente indesejável.
Ao contrário do que se passa nas profissões liberais, e de prestadores de serviços independentes, os burocratas com o tempo desumanizam-se. O cidadão é um número, um dado estatístico. Até prova em contrário é um adversário, quando não um inimigo. Daí, exorbitar a sua função, justificada pelo cargo e não pela sua utilidade, que a nível interno o que prevalece é a categoria hierárquica mais elevada, independentemente da sua competência ou do seu conhecimento sobre o assunto.
Como a burocracia enfatiza a autoridade hierárquica, torna-se necessário um sistema de signos que indique a todos, quem é quem manda. E quem manda o mais, manda o menos. Surge a tendência à utilização intensa de símbolos de status para demonstrar a posição hierárquica dos funcionários: diferentes tamanhos de mesas e poltronas; localização na sala junto da janela; lugar no parque de estacionamento, etc.
Por tudo isso os conflitos com o público são enormes. O funcionário está completamente voltado para dentro da organização, para as suas normas e regulamentos internos, para as suas rotinas e procedimentos. A burocracia fecha-se ao cidadão, um absurdo na medida em que é essa a sua razão de ser.
«23 de junho de 1986: Burocracia. Os ministros do governo são demasiado velhos. Os oficiais do partido estão preservados com naftalina. Estamos num lodaçal. É aí que estamos.Chernobil devera-se a uma profunda irresponsabilidade, ao hábito calcificado de não ver além das tacanhas obrigações técnicas de cada um. Tudo se devera ao quase monopólio da informação, e do controlo sobre a energia atómica, por parte dos principais cientistas/burocratas intocáveis.»[ Mikhail Gorbachev -De memórias e apontamentos ]
Sem comentários:
Enviar um comentário