sexta-feira, 2 de abril de 2021

Os caminhantes de Santiago


«Por muito que Henrique Maximiliano tentasse sacudir dos pés a poeira, nem por isso se livrava de ser o filho de um homem que elevava ou baixava o custo das mercadorias e fazia empréstimos aos príncipes. A mãe encheu-lhe os bolsos de vitualhas e entregou-lhe, às escondidas, o dinheiro para a viagem. Não esquecera os belos escritos, trazia os bolsos cheios de pequenos volumes forrados de pele de cabrito, sacados de antemão, à conta da futura herança, da biblioteca de seu tio, o cónego Bartolomeu Campanus, que colecionava livros. De vez em quando, nalguma quinta isolada, uma viúva caridosa oferecia-lhe do seu pão e do seu leito. Trocava gracejos com aqueles com quem cruzava e ia-se informando do que se passava de novo. A partir da etapa de Lá Fère, precedia-o, no mesmo caminho, um peregrino, à distância de umas cem toesas. Caminhava depressa. Aborrecido por não ter com quem falar, Henrique Maximiliano estugou o passo: “Rezai por mim em Compostela” pediu, jovial, o flamengo. “Acertais, para lá me encaminho”. Virou a cabeça debaixo do capuz de burel, e Henrique Maximiliano reconheceu Zenão. “Salve, ó primo!” saudou, cheio de alegria, Henrique Maximiliano
[De “A Obra ao Negro”, Marguerite Yourcenar]




Santiago é uma atração dos caminhantes e andarilhos de todos os tempos, tendo criado uma rota para trilhar: O Caminho de Santiago. 
O Caminho de Santiago é uma rota milenar seguida por milhões de peregrinos desde o início do século IX, quando foi descoberto o sepulcro do Apóstolo Santiago o Maior. Desde então, pessoas das mais diversas procedências percorrem os Caminhos que conduzem à Catedral onde se veneram as relíquias do Santo Apóstolo, dando origem a um fenómeno que se mantém e reforça de dia para dia. Os Caminhos de Santiago são por isso um denominador comum da cultura europeia pelo que estes itinerários, que são espaços públicos de convergência e harmonia, devam ser respeitados e promovidos. Neles, qualquer caminhante se sente um cidadão do mundo, o que lhe dá a oportunidade de perspetivar as suas convicções num sentido universal de abertura e de tolerância.

As peregrinações a Santiago de Compostela a partir de Portugal intensificam-se no Século XII com a independência do país, assumindo assim, particular relevo a estrada real Porto/Barcelos/Ponte de Lima/Valença onde confluem quase todas as demais, reforçando este percurso como a espinha dorsal dos caminhos portugueses de Santiago. O Caminho Português de Santiago, faz uso de trajetos antigos que cruzam bosques, campos agrícolas, aldeias, vilas e cidades históricas assim como, cursos de água através de pontes, algumas deixadas pelos Romanos desde o tempo da ocupação do Império. O Caminho é ainda marcado por capelas, igrejas, conventos, alminhas e cruzeiros, nos quais não falta a imagem do Apóstolo Santiago. Por aqui tem passado uma multidão de gente anónima: caminheiros, viajantes, almocreves, mercadores, feirantes e romeiros. É provável que também gente eclesiástica e da nobreza.  

O Liber Sancti Jacobi, também referido como Codex Calixtinus ou Códice Calixtino, que existe no Arquivo da Catedral, é um manuscrito iluminado do século XII que chegou a ser roubado 
por um eletricista, ex-funcionário da Catedral de Santiago de Compostela, tendo, contudo, sido recuperado em 2012. É conhecido do grande público pelo seu livro V, que se constitui no mais antigo guia para os peregrinos que faziam o Caminho. Inclui conselhos, descrições do percurso e das obras de arte nele existentes, assim como usos e costumes das populações que viviam ao longo da rota. Os demais livros do códice contêm sermões, narrativas de milagres e textos litúrgicos diversos relacionados com o Apóstolo. 




O caminho do peregrino é uma coisa muito boa, mas é estreito. Porque a estrada que nos leva à vida é estreito; por outro lado, a estrada que leva à morte é largo e espaçoso. O caminho do peregrino é para aqueles que são bons: é a ausência de vícios, o impedimento do corpo, o aumento das virtude, perdão para os pecados, o pesar para o penitente, o caminho dos justos, amor dos santos, fé na ressurreição e a recompensa dos abençoados, uma separação do inferno, a proteção dos céus. Afasta-nos de comidas saborosas, faz a gordura gulosa desaparecer, evita a volúpia, constrange os apetites da carne que atacam a fortaleza da alma, limpa o espírito, leva à contemplação, torna modesto o arrogante, eleva os humildes, ama a pobreza. Odeia a repreensão dos que se movem por ganância. Ama, por outro lado, a pessoa que dá ao pobre. Recompensa aqueles que vivem na simplicidade e fazem boas ações; e, por outro lado, não arrasta aqueles que são avarentos e iníquos das garras do pecado.

Tendo-se convertido no terceiro centro de peregrinação da cristandade, só superado por Roma e Jerusalém, a partir do século XI ou XII chegavam a Compostela peregrinos vindos dos mais diversos pontos da Europa: Occitânia, Navarra, Aragão, Catalunha, Britânia, Alemanha, Escandinávia...

[De “A Obra ao Negro”, Marguerite Yourcenar - continuação]

No romance “A Obra ao Negro”, Marguerite Yourcenar põe Henrique Maximiliano Ligre na estrada, a caminho de Paris, por pequenas etapas, depois de ter deixado a casa paterna em Bruges. E numa encruzilhada do Caminho encontra-se com um filósofo/cientista/místico: Zenão, que, por acaso, ainda é seu primo. Estamos no tempo de Francisco de Valois, rei de França por pouco tempo – Francisco II (10 julho 1559 – 5 dezembro 1560), que tendo nascido a 19 de janeiro de 1544, morre a 5 de dezembro de 1560, com 16 anos. Era filho de Henrique II de França e de Catarina de Médici. O Imperador Romano-Germânico era Carlos V, que havia partido para sempre em 21 de setembro de 1558.
Henrique Maximiliano imaginava, para lá das montanhas couraçadas de neve: planícies ruivas, cidades cinzeladas como cofres regurgitantes de oiro, jardins cheios de estátuas, salas cheias de manuscritos raros; mulheres vestidas de seda afáveis para o grande capitão; toda a espécie de requintes de mesa e de deboche e, sobre as mesas de prata maciça, em ânforas de vidro de Veneza, o brilho macio do malvasia.
Ao passar por Dranoutre, onde seu pai possuía uma casa de campo, persuadiu o feitor a deixá-lo trocar o cavalo que levava, que já coxeava, pelo mais belo animal que havia na cavalariça do banqueiro. Vendeu-o mais tarde em Saint-Quentin, em parte porque essa magnífica montada aumentava como que por magia as contas somadas na ardósia dos taberneiros, em parte porque equipagem tão rica o impedia de saborear a seu bel-prazer as alegrias do caminho. Para fazer render o seu pecúlio, que se lhe escapava por entre os dedos mais depressa do que imaginara, comia juntamente com os carreteiros o toucinho rançoso e o grão dos albergues mais miseráveis e dormia à noite sobre a palha, perdendo, contudo, de bom grado, em rodadas e ao jogo, o dinheiro assim economizado com melhores pousadas. 
“O cónego Campanus passou o Inverno todo em Bruges, à vossa espera; em Lovaina, o magnífico reitor arranca os pêlos da barba com a vossa ausência; e eis-vos agora aqui, numa curva do caminho, como sei lá quem. Porque correis como um mendigo as estradas da França? Estás mascarado, de tolo” 
Notou Henrique Maximiliano, observando com curiosidade o hábito do peregrino.
“Pois estou” admitiu Zenão. “Mas já andava cansado de todo aquele restolho dos livros. Prefiro soletrar um texto com vida: mil e um algarismos romanos e árabes; caracteres que tanto correm da esquerda para a direita, como os dos nossos escribas, como da direita para a esquerda, como os dos manuscritos do Oriente. Emendas, que são a peste ou a guerra. Rubricas traçadas a sangue vermelho. Signos por toda a parte e, aqui e além, manchas ainda mais estranhas que signos... Que trajo há mais cómodo para se passar despercebido?... Os meus pés deambulam pelo mundo como insetos na penumbra de um saltério.” 
“Mas porquê ir a Compostela? Não vos estou a ver sentado entre monges obesos a cantar com voz fanhosa.” 
“Que tenho eu a ver com esses madraços, com esses vitelos? Mas, o prior jacobita, de Leão, é amante de alquimia. Trocou correspondência com o cónego Bartolomeu Campanus, nosso bom tio, esse pobre idiota que às vezes se aventura, inadvertidamente, inadvertidamente, até aos limites interditos."
Henrique Maximiliano, então, cuspindo para a estrada os últimos caroços, disse: 
“A paz está pela hora da morte, irmão Zenão. Os príncipes disputam-se as terras como os bêbados nas tabernas disputam a comida. Aqui, na Provença, este bolo de mel; acolá, o Milanês, uma empada de enguias. De tudo isto hão de tombar umas migalhas na minha boca."
“Ineptíssima vanitas” tornou secamente o jovem clérigo. “Ainda ligais assim tanta importância ao bafo saído da boca dos outros?” “Tenho dezasseis anos” escusou-se Henrique Maximiliano. “Dentro de quinze, já se poderá ver se por acaso serei igual a Alexandre. Dentro de trinta, saber-se-á se valho ou não o defunto César. Pois irei eu passar uma vida inteira a medir pano numa loja da Rua das Lãs? Trata-se de ser ou não ser um homem.”
“Tenho vinte anos” calculou Zenão. “Se tudo correr pelo melhor, tenho à minha frente cinquenta anos de estudo, antes que este meu crânio se transforme em caveira. Ide procurar heróis e devaneios em Plutarco, irmão Henrique. A questão, para mim, é ser mais do que um homem.” “Vou para as bandas dos Alpes” declarou Henrique Maximiliano. “E eu” disse Zenão “para o lado dos Pirenéus.”
Calaram-se. A estrada plana, ladeada de choupos, apresentava, à sua frente, um fragmento do livre universo. O aventureiro do poder e o aventureiro do saber caminhavam lado a lado.
“Vede” prosseguiu Zenão “Para lá desta aldeia, há outras aldeias, para lá desta abadia, outras abadias, para lá desta fortaleza, outras fortalezas. E no interior de cada castelo de ideias, de cada pardieiro de opiniões sobrepostas aos pardieiros de madeira e aos castelos de pedra, a vida empareda os loucos e abre uma fresta aos sábios. Para além dos Alpes, há a Itália. Para além dos Pirenéus, a Espanha. De um lado, a terra de Giovanni Pico della Mirandola, do outro, a de Avicena. E, mais além ainda, o mar, e, para lá do mar, na outra borda da imensidão, a Arábia, a Morávia, a Frigia, as duas Américas. E, por toda a parte, vales onde se recolhem os simples, rochas onde se escondem os metais, cada um dos quais simboliza um momento da Grande Obra, engrimanços colocados entre os dentes dos mortos, deuses cada qual com a sua promessa pessoal, multidões em que cada homem se apresenta como centro do universo. Quem pode haver tão insensato que se deixe morrer sem ter dado, pelo menos, uma volta à sua prisão? Como vedes, irmão Henrique, sou na verdade um peregrino. Longo é o caminho, mas eu sou jovem."
“O mundo é grande” disse Henrique Maximiliano. “O mundo é grande” repetiu Zenão com ar grave.
Separaram-se na encruzilhada mais próxima. Henrique Maximiliano escolheu a estrada principal. Zenão seguiu por um atalho. De repente, o mais novo dos dois voltou atrás, até junto do camarada; e, pondo a mão no ombro do peregrino, disse:
“Lembrais-vos, irmão, de Wiveline, aquela menina pálida que outrora defendíeis sempre que nós, crianças maldosas, lhe beliscávamos as nádegas, à saída da escola? Pois ela ama-vos; pretende-se ligada a vós por um voto; ainda há bem pouco recusou as ofertas de um almotacé. A tia esbofeteou-a e pô-la a pão e água, mas ela persistiu na sua. Diz que espera por vós até ao fim do mundo, se for preciso.” Zenão, estacou e perpassou-lhe no olhar de indeciso, que logo se desvaneceu, como uma nuvem de vapor ao contacto com as brasas. “Paciência” disse ele. “Que há de comum entre mim e essa tal rapariguinha das bofetadas? Há alguém à minha espera. Vou até lá.” E fez-se de novo ao caminho. “Quem é?” perguntou Henrique Maximiliano, estupefacto. “O prior de Leão, esse desdentado?” Zenão virou-se: “Zenão” disse. “Eu mesmo.”

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