terça-feira, 6 de agosto de 2019

A inteligência do polvo


A inteligência do polvo é surpreendente. E a consciência? Bem, muitos ainda devem estar lembrados daquele polvo, chamado Paul, um octopus vulgaris, que no Mundial de Futebol 2010, acertava no resultado dos jogos. Paul morreu de causas naturais em 26 de outubro de 2010 enquanto descansava. Quando chega a hora, o seu corpo desfaz-se aos bocados. Para as suas capacidades mentais, o polvo tem uma via curta demais.

Para alguns cientistas, o grau de inteligência cognitiva é tal que, a ideia de o polvo ter uma consciência não choca. Mas isto levanta um problema: que mecanismos estão então envolvidos na formação de uma consciência? Como o polvo está longe de ter um cérebro como nós, o modelo explicativo para a formação da consciência dele não pode ser concebido numa estrutura anatómica rígida de cérebro. É então de pressupor que a consciência precisa do resto do corpo para além do cérebro.

Não existe uma linha anatómica clara que nos permita dizer: “esta espécie é consciente; aquela espécie apenas é uma máquina insensata.” Nem faz sentido falar de consciência em outros animais, tendo como ponto de partida o nosso paradigma de “estado subjetivo interior”.

Vendo o exemplo do Reino Unido, que é de resto muito semelhante a outros países, a legislação governamental regula com mão pesada as experiências com animais vivos, para garantir que os procedimentos salvaguardem a ausência de dor no animal.

Ora, no Reino Unido, para além dos habituais mamíferos, também é incluído o polvo octopus vulgaris, um invertebrado como é sabido, muito abundante no ocidente que vai desde a costa sul de Inglaterra até ao litoral do Senegal, passando pelo Mediterrâneo. Mas mais, uma outra espécie de polvo – eledone cirrhosa – espécie típica portuguesa, não está incluída na lista da tal legislação protetora.




O polvo não tem um cérebro como os mamíferos. O sistema nervoso dos moluscos é formado por um conjunto de gânglios que se distribuem da cabeça até aos tentáculos, controlando várias funções. Mas os cefalópodes são os únicos moluscos em que os gânglios estão condensados de forma a funcionar como um cérebro centralizador. O que o caracteriza é a capacidade de armazenamento de memórias, e consequentemente, capacidade de aprendizagem.

Um polvo é, em primeiro lugar, um organismo com um vasto sistema nervoso e um corpo ativo e complexo. Tem capacidades sensoriais muito boas e capacidades extraordinárias no campo do comportamento. Se há alguma forma de experiência subjetiva que acompanhe a sensação e a ação num sistema vivo, ela existe em grande quantidade num polvo.

Os polvos, pelo menos os de algumas espécies dos mares da Austrália pouco profundos, têm um estilo oportunista e exploratório do mundo. São curiosos e gostam de novidade. E reconhecem o mesmo objeto ainda que transformado ou visto de outras perspetivas. É a chamada faculdade das “constâncias perpétuas”, que é uma proeza de outros invertebrados como as abelhas e algumas aranhas. Como elas, os polvos também são bons navegadores, não se perdem no regresso a casa, mesmo seguindo percursos diferentes no regresso.

O polvo tem um sistema nervoso diferente do nosso, em que a distribuição de neurónios pelos tentáculos é mais rica e de certo modo mais independente do comando central no cérebro. Usando a metáfora do jazz, o cérebro é o maestro e os membros os músicos. São executantes que recebem só instruções em bruto e muito gerais da parte do maestro, que confia que eles toquem qualquer coisa que se ouça. O contraponto não é entre o sistema nervoso e o corpo, mas entre o cérebro central e o resto do organismo, que tem a sua própria organização nervosa. O corpo é o seu próprio controlador até certo ponto, em vez de um corpo guiado pelo cérebro.

Quando se trata de camuflagem, os polvos são imbatíveis. Podem tornar-se completamente invisíveis a um observador a menos de um metro. Ajuda-os a circunstância de quase não terem partes rígidas, podendo assumir, praticamente, qualquer forma que queiram.

Os biólogos que estudam as genealogias dos animais ao longo da evolução darwinista dizem-nos que para encontrarmos o antepassado comum a polvos e a humanos temos de recuar no tempo até cerca de 600 milhões de anos, uma criatura achatada em forma de verme a partir da qual se bifurcou em duas linhagens: um ramo para a linhagem dos vertebrados, e o outro ramo para a linhagem dos cefalópodes. Pelo menos até há muito pouco tempo os biólogos achavam que para um animal ter uma inteligência acima da média entre os animais tinha de possuir um cérebro de tamanho significativo. E isso é o que acontece com os polvos, no ramo evolutivo dos cefalópodes, e com os humanos no ramo evolutivo dos vertebrados.

Durante algum tempo acreditou-se, com base no registo fóssil, que o grupo dos cefalópodes (polvos, chocos e lulas) apareceu pela primeira vez há 170 milhões de anos. A ideia de que os cefalópodes modernos irromperam de repente, e há relativamente pouco tempo, pode ser usada para sustentar a perspetiva de que os grandes sistemas nervosos dos cefalópodes apareceram numa espécie de acidente evolucionário único, a que se seguiu alguma diversificação. É como se fosse um excesso de inteligência de acaso, tanto mais em animais com uma vida tão curta e tão associal.




Mas estas ideias baseadas nas provas fósseis, e ainda por cima pouco seguras em animais de corpo mole, mudaram com a entrada em cena dos estudos genéticos. E é assim que as estimativas em relação a ancestralidades estão todas a mudar. Assim, os polvos não aparecem há 170 milhões de anos, mas sim há 275 milhões. Atrasar esta divisão 100 milhões de anos não é brincadeira nenhuma num paradigma científico que se reclama do rigor e da exatidão. Os cenários que se colocam nas conjeturas evolutivas são naturalmente muito diferentes, já para não falar também na ecologia dos oceanos.

Em 2015, foi sequenciado o primeiro genoma do polvo. Dos genes podemos deduzir novas informações sobre como os sistemas nervosos são construídos. E o que é interessante é que as ferramentas genéticas a nível molecular para a construção dos sistemas nervosos do homem e do polvo são as mesmas. A perspetiva mais recente é de que não foi por acaso que os sistemas nervosos complexos dos polvos evoluíram da forma como evoluíram.

A inteligência em vertebrados e cefalópodes são experiências independentes na evolução da inteligência animal. O que se passou no ramo dos vertebrados entre os mamíferos e aves, passou-se no ramo dos cefalópodes entre polvos e lulas. A relação entre os polvos e as lulas parece ser bastante semelhante à relação entre os mamíferos e as aves. Há 320 milhões de anos, apesar de em corpos absolutamente diferentes, uns de um lado com esqueleto ósseo, outros sem esqueleto nenhum, desenvolveram-se cérebros de alta complexidade.

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