segunda-feira, 5 de agosto de 2019

“Zás! Estava de volta. Foi a sensação mais gloriosa que alguma vez tive”



O título deste artigo é uma frase dita por T.C., um caso do acervo de casos clínicos de Oliver Sacks, que um dia foi atingido por um raio quando telefonava de uma cabine telefónica perto de um lago. Foi atingido na cara e projetado pelo ar. 

Então começa a contar que se lembra de ter olhado à sua volta e ver o seu corpo estendido no chão. “Disse para mim mesmo ‘merda, estou morto!”. Viu algumas pessoas a correr para o corpo e uma mulher, que estivera fora da cabine à espera de poder usar o telefone, debruçada sobre ele tentando reanimá-lo. Sentiu-se a flutuar numa luz branca azulada e viu os seus filhos percebendo que eles estavam bem, e ele com uma sensação de bem-estar e de paz. 

T.C. soube que tinha regressado ao seu próprio corpo porque sentiu dores – dores provocadas pelas queimaduras que sofrera na cara e no pé esquerdo, os pontos de entrada e saída da descarga elétrica que o seu corpo sofrera. 

Duas semanas mais tarde, já se sentindo com forças, apesar de alguns problemas de memória, regressou ao trabalho. O que aconteceu a seguir ainda o deixou mais espantado: a vontade insaciável, que nunca tinha tido, de ouvir música para piano. A música que gostava de ouvir era rock. E então, na sequência do seu súbito desejo de ouvir música para piano, T.C. começou a ouvi-la na sua cabeça. Uma música interminável que nunca se esgotava. Quando queria que parasse tinha que a desligar com esforço. 

Assim, três meses depois de ter sido atingido pelo raio, T.C., que antes era um homem jovial e um bonacheirão dedicado à família, não dedicava o tempo livre a mais nada a não ser à música. Passou a acreditar que lhe fora concedido um dom especial depois de ter passado por uma transformação. Até ali nada crente em deuses, depois da sua experiência de quase morte tornou-se mais espiritual e crente na reencarnação. 

Para quem seja um duro de ouvido a nível musical, como eu, olha para esses grandes talentos musicais como se fossem uns extraterrestres. A propensão para a música aparece na infância, sendo visível e determinante em todas as culturas, e provavelmente remonta aos começos da nossa espécie. E, no entanto, a música é das propriedades humanas mais misteriosas, dado que, na perspetiva da evolução dos processos biológicos de causa e efeito, não se sabe para que serve. É algo muito diferente do que se vê noutros animais, como por exemplo o canto dos pássaros. Assim como todas as artes, é possível que a música faça parte daqueles excessos em que a vida é pródiga. 

A capacidade para apreender a música pode ser afetada nos dois sentidos: num extremo conduzindo a uma incessante repetição de melodias que ficam no ouvido, como acontece em certos ataques epiléticos; e no extremo oposto ser praticamente anulada por outro tipo de lesões cerebrais. 

As pessoas com ouvido absoluto, como um Mozart, conseguem imediatamente, sem pensar, saber o registo exato de qualquer nota, sem reflexão ou comparação com uma referência externa. Conseguem fazer isto não só com qualquer nota que ouçam, mas com qualquer nota que imaginem ou ouçam na cabeça. A precisão do ouvido absoluto é variável, mas estima-se que a maioria das pessoas que o têm consigam identificar mais de setenta tons na zona média da amplitude auditiva, e que cada um destes setenta tons tem, para elas, uma quantidade singular e característica que o distingue em absoluto de qualquer outra nota. Para a maioria de nós, uma capacidade destas de reconhecer tons auditivos como um sexto sentido, parece uma coisa sobrenatural, porque é um sentido que nunca poderemos vir a ter. Mas para quem nasce com ouvido absoluto, é uma coisa perfeitamente normal. Até acontece, se ouvirem uma peça familiar de música na tonalidade errada, ficarem muito perturbadas. 

O ouvido absoluto é particularmente interessante porque ilustra todo um outro reino de perceção, de propriedades que a vida tem, algo que a maioria de nós nem consegue imaginar. Mas a natureza vital é muitas vezes traiçoeira, não dando beleza sem senão. Existe uma maior prevalência de associação de ouvido absoluto com cegueira precoce. Estima-se que cerca de metade das pessoas com ouvido absoluto nasce cega, ou cega muito precocemente. 

Uma outra bizarria são as sinestesias musicais, como por exemplo ver cores associadas a sons musicais. Um verdadeiro sinesteta pode envolver qualquer um dos sentidos numa junção instantânea de sensações, como cada intervalo musical ter o seu próprio sabor. As sinestesias podem ser mais frequentes do que as estimativas que são feitas, dado que a maioria das pessoas que as têm muitas vezes não chegam a averiguar que aquilo que lhes acontece não acontece aos outros. Acham que as sinestesias que possuem fazem parte da normalidade. Essas pessoas e nós só ficamos a saber se lhes perguntarmos. O caso de Paulo D.G. é engraçado porque um dia na escola, quando estava distraído a olhar para o espaço, o professor perguntou-lhe para onde ele estava a olhar. E ele respondeu que estava a contar as cores até sexta-feira. A turma inteira desatou a rir, e a partir daí guardou estes assuntos para si próprio. Só mais tarde se veio a interessar pelo fenómeno da sinestesia depois de um colega lhe ter falado nisso. 

De todas as formas de sinestesia, a sinestesia musical com efeitos de cor, é uma das mais comuns em músicos profissionais, e provavelmente a mais dramática. E a variabilidade é quase infinita. Para muitos músicos a cor faz parte da música, não se trata de nada adicional que venha a despropósito. E em certos casos de compositores, a cor faz parte integral do processo criativo. 

As técnicas atuais de imagens do cérebro através de Ressonância Magnética Funcional e Tomografia de Emissão de Positrões, mostram inequivocamente a ativação simultânea ou co-ativação de duas ou mais áreas sensoriais do córtex cerebral de sinestetas. 

Só nos primeiros anos deste século V.S. Ramachandran e E.M. Hubbard contribuíram com grande engenho experimental para o estudo da sinestesia. Por exemplo, conseguiram fazer a distinção entre a sinestesia genuína da pseudo-sinestesia. Mas o mais notável foi ter-se verificado a existência de sinestesias também para conceitos e ideias. Desde a descrição dos primeiros casos de sinestesia que a palavra significa fusão de sentidos, porque se pensava que só existia ao nível sensorial. Mas há pessoas que fazem este tipo de junções noutras categorias, uma união de ideias em vez de sensações: certos dias da semana serem masculinos e outros serem femininos; certos números serem maus e outros serem bons. Para estes sinestetas, não se trata de caprichos nem de fantasias, mas sim de correspondências fixas. 

A explicação para estes fenómenos que acabei de descrever reside no grau pouco habitual de transativação entre áreas do córtex sensorial que são, na maioria de nós, funcionalmente independentes. Consiste num excesso anatómico de ligações neurais entre diferentes áreas do cérebro. Parece que é assim que nascemos, tal como acontece com outros animais. Mas depois na primeira infância dá-se um grande desbaste, aquilo que outros autores, como por exemplo Baron-Cohen, designam por “poda de sinapses entre neurónios”. Toda a observação comportamental dos bebés sugere que os sentidos do recém-nascido estão fundidos, longe de estarem bem diferenciados como na vida adulta. Em vez disso estão misturados entre si numa confusão sinestésica. 

A partir daqui se abrem novas perspetivas para o estudo do fenómeno da perceção. Que combinações adequadas de perceções são necessárias para reconhecer plenamente o mundo externo e os seus conteúdos? Que tipo de combinação certa de sensores é preciso reunir para que possamos ter aquela epifania, quando damos uma dentada numa bela maçã vermelha acabada de ser colhida da macieira numa refrescante manhã de um solarengo dia de agosto. Supõe-se que nos indivíduos com sinestesia, uma anomalia genética impede a eliminação completa da hiperligação que existe à nascença e que deveria ser cortada, mas que persiste na vida adulta um maior ou menor remanescente do labor embrionário da criação. Sabe-se que é na adolescência, um estádio do nosso desenvolvimento chave em muitas coisas, que se dá o rito de passagem para vida adulta. Mas não se sabe ainda se isto se deve a mudanças hormonais, ou a reorganizações cerebrais independentes, ou a um movimento direcionado com determinação, regido por formas mais abstratas de pensamento.

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