quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Povo eleito, ou termo de identidade e residência?

Desde a Antiguidade que a ideia de raça e a proclamação de que os judeus são um “povo eleito” enfurece outros povos e nações. Sobretudo os fundamentalistas e ortodoxos, na medida em que cultivam o desprezo e até a abominação do “estrangeiro”. São exemplos famosos os casos de Espinosa e de Freud, indivíduos tão estranhos como insuportáveis. Se consultarmos a História do Império Romano do Oriente, já nessa altura os judeus exasperavam governantes e vizinhos pelas suas formas idiossincráticas não apenas doutrinárias como de práticas de vida já nessa altura vistas como bizarras. Assim, a singularidade dos judeus alimentou suspeitas, teorias da conspiração, e coisas ainda mais graves como o ódio. Controvérsias à parte, a verdade é que o “caso judaico” perdura num arrasto civilizacional com mais de três milénios. Podemos epigrafá-lo com a fórmula desmedida que vem da tradução menos literalista do Génesis 22,18: “Farei a tua descendência tão múltipla como as estrelas do céu, como as areias das praias do mar. E na tua descendência todas as nações da Terra serão abençoadas”.

Um caso famoso de antissemitismo foi o caso Dreyfus em França, escândalo político que dividiu a França por muitos anos nos finais do século XIX. Centrava-se na condenação por alta traição de Alfred Dreyfus, de ascendência judaica, em 1894. Tratava-se de um oficial de artilharia do exército francês acusado de um processo fraudulento conduzido a portas fechadas. Dreyfus estava na verdade inocente, cuja condenação se baseava em documentos falsos. Quando os oficiais de alta patente franceses perceberam isto, tentaram ocultar o erro judicial. Este caso foi acompanhado por uma onda de nacionalismo e xenofobia que invadiu a Europa no fim do século XIX. Ele era um dos raros judeus do estado-maior francês. O zelo dos seus defensores foi imediatamente atribuído a uma conspiração judaica.

As profundas razões que estavam por trás desse antissemitismo conspirativo assentavam nos habituais problemas económicos e financeiros. O ataque ao poderio da alta finança ou dos grandes bancos transformava-se sistematicamente num ataque àqueles judeus identificáveis com a classe capitalista. Noutros setores da vida económica os judeus também serviam de bode expiatório. Por exemplo, em Viena, os alfaiates judeus que tinham vindo da Galícia auferiam salários muito inferiores aos dos sues colegas vienenses. Ora, quando os tempos difíceis chegaram, que ciclicamente acontecem sempre, a “culpa” do desemprego foi atribuída aos judeus. Nos campos e áreas rurais, os agricultores pediam dinheiro emprestado a prestamistas judeus. Depois nos anos agrícolas maus detestavam os judeus por sere implacáveis na cobrança das dívidas. Contudo, o ódio ao judeu capitalista, ou a competição económica direta entre judeus e cristãos nas cidades, ou o antissemitismo rural baseado no medo que os camponeses crivados de dívidas sentissem do prestamista judeu, não eram os únicos fundamentos do antissemitismo económico. Também havia o antissemitismo daqueles que nunca tinham na vida visto um judeu. Léon Blum, que fez uma carreira brilhante à frente do Partido Socialista, era um judeu francês assimilado. Pois apesar disso, a direita era sarcástica com dichotes, tais como: “volta para Jerusalém, malandro…”.

Foi na Rússia, todavia, que o antissemitismo se manifestou sob a forma de violência física. Neste país, no início do século XX, vivia um quinto da população judaica do mundo inteiro, cerca de cinco milhões de pessoas acantonadas em áreas delimitadas da Rússia Ocidental. Desde a última década do século XIX que se passaram a verificar repetidos pogroms contra eles. Estes ataques eram deliberadamente organizados, quer por civis, que pela polícia, no intuito de desviar as atenções do descontentamento com o regime czarista. Foi na Rússia que surgiram os famigerados Protocolos dos Sábios de Sião, fomentado por fanáticos movidos por ódio racial, para provar a existência de uma conspiração judaica de nível mundial.

Daí que, quando se dialoga com o judeu ortodoxo acerca da sua identidade, se desencadeie uma discussão tão conturbada: seja pelos mitos; seja pelos rituais arcaicos; seja pela propaganda de cariz tribal. É claro que a demência homicida desencadeada ao longo de toda a monstruosa história dos pogroms e expulsões, massacres e dispersão, deportações e Shoah, tornou praticamente impossível e indefensável qualquer discussão despida de paixão.

A genética populacional mostra-nos hoje sem erro que não há país nenhum onde os habitantes possam reclamar por um qualquer critério de raça pura. Hoje todos somos fruto de uma grande miscigenação ao longo de milénios. Todos somos filhos de migrantes. Por isso é um disparate brutal toda a loucura do tribalismo invertido que vai dos paranoicos inquisidores aos esbirros fascistas.

A identidade é mais produto do discurso do que da genética. É produto de um pacto entre o ser e o sentido por intermédio da linguagem cujo eixo está centrado na palavra. Foi assim que os judeus gravaram palavras escritas a letras de fogo ditadas por Moisés no Monte do Sinai, sopradas da sarça ardente pelo vento. A Bíblia tem sido o seu passaporte ao longo de séculos de deslocações e de exílio. Gramatical e metafisicamente, o hebraico não dissocia passado, presente e futuro. A flexão do futuro pertence ao presente. Foi essa a verdadeira literalidade, e o verdadeiro paradoxo do messianismo.

Pegando no termo de identidade de Espinosa, excomungado pelas autoridades religiosas de Amesterdão por ateísmo, embora ele se reconhecesse como um panteísta, ainda assim ele se considerava anos mais tarde, na sua última morada em Haia onde vários filósofos como um Leibniz o iam visitar para dois dedos de conversa, enquanto cidadão do mundo, descendente de judeus imigrantes vindos de Portugal, ia polindo as lentes para satisfazer encomendas de cientistas que em toda a Europa estavam a fazer a revolução científica da modernidade. Quando ele afirmava que era judeu, os outros perguntavam-lhe que “eu” era esse, que ego estaria implícito nessa afirmação. E então ele respondia, com orgulho, que era uma verdade evidente por si própria.

Jean-Paul Sartre, na sua ironia desconcertante, afirmou que é o antissemita que define o judeu. Ou seja, o judeu é uma abstração estipulada de fora com conotação e estigma. Mas a verdade ortodoxa diz que o judeu é alguém que observa as várias centenas de instruções, prescrições, proibições, rituais e normas de dieta e indumentária que regula a vida quotidiana entre um e outro Sabat. Em resumo, essencialmente, de certo modo, é a observância que pesa mais do que a crença.

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