sexta-feira, 9 de agosto de 2019

“Português Suave” – revisitando Agostinho da Silva na “vontade de ser Portugal”



A vontade de ser Portugal, ou de se fazer Portugal, nunca ninguém soube ao certo das razões de ser Portugal. É possível que haja outras hipóteses para além daquelas já apresentadas: a vontade de certo número de barões, não senhores feudais, mas sujeitos que não queriam ser mandados por outros senhores; ou a vontade de empurrar os mouros mais para sul. Por que não admitir outra hipótese mais metafísica, digamos assim. Nós sabemos pouco da máquina da História. Sã Bernardo, o abade de Claraval tinha não apenas preocupações religiosas, talvez as políticas fossem as mais importantes. Estamos na dificuldade de saber que coisa é a vontade de um homem, ou se essa vontade não é mais do que o fenómeno visível de uma outra vontade. 

          Não há nada seguro, mas sabemos que acontece: aquilo que os políticos gostam de chamar carisma pode efetivamente galvanizar outros homens. Atribuir movimentos de gente à vontade de um homem é também outra hipótese, veja-se o caso de um Hitler. Para o movimento político São Bernardo criou um grupo de frades soldados: os templários. Uma tropa para limpar a Europa do que ainda cá ficara de muçulmano, e desimpedir os acessos aos lugares sagrados do Oriente.
          É uma hipótese como outra qualquer admitir que Bernardo de Claraval, como tinha boas relações com a Casa de Borgonha, e como aconteceu que uns cavaleiros vieram para o Noroeste da Península fazer a tal limpeza de que já falei, é provável que quando um desses cavaleiros veio para o Porto Calem, Bernardo tenha admitido que ele não teria de vir só pelo espírito de aventura, mas para levar por diante uma ideia mais gloriosa que o Santo tinha na cabeça. Tudo hipóteses!
          Então quanto às origens de Portugal palpamos nas trevas, não temos segurança nenhuma. Tinha muito pântano que os frades de Alcobaça ajudaram a secar. Os frades de Alcobaça são de São Bernardo. E os seus frades militares ajudaram a fazer Portugal. De resto a terra portuguesa era o que é hoje, rende pouco, dá poucas possibilidades. O mar sim, o mar era bom, não só dava o que era preciso para alimentar, como, porque tinha muitos e bons portos, muita navegação se acolhia aí. A navegação que vinha do Mediterrâneo lá para cima, para o norte da Europa, acolhia-se em Portugal.
          Se o país rendia pouco como era, renderia menos com areia. Uma coisa que havia a fazer era pôr uma fortaleza que impedisse o avanço da areia. Foi o que D. Dinis mandou fazer, plantar pinheiro para impedir a vinda da areia, e ainda dava o pinhão manso, a resina, e, quem sabe, a madeira. É evidentemente uma plantação ambígua.
          Um parente meu, de quem sou muito amigo, diz-me que não sabe quem é. Eu pergunto-lhe: você não é fulano? Ele diz, sou; onde é que mora? Rua tal; que idade tem? Tanto. Sabe tudo a respeito dessa pessoa e, quando acaba de expor a sua própria biografia, diz: mas não sei quem sou. Este homem põe um problema metafísico extraordinário. Que hipótese é que eu ponho para esse esquecimento? Aquele homem podia ter sido outras coisas, foi desde criança encaminhado naquele sentido, ou ele próprio se encaminhou e criou uma personagem que era o senhor Fulano. O que aconteceu foi que esse meu amigo se dedicou inteiramente a uma das pessoas que podia ter sido, mas que agora não tem mais significado. Ele precisaria de tirar dentro de si outro heterónimo com o qual se entretivesse. Mas é tarde! Agora já não dá. 

Perguntado a Agostinho da Silva, se não foi um erro os portugueses não terem aproveitado Colombo 
          Os portugueses já sabiam como se chegava à Índia. E sabiam que por ali não se chegava à Índia mais depressa. De maneira que acharam, para o que eles queriam, era pura perda de tempo. O que os portugueses queriam era chegar às especiarias para temperarem os europeus. Sim, talvez não fosse preciso produzir tanto cravinho em Zanzibar ou tanta canela lá no oriente, se não fosse preciso temperar muita coisa no mundo. Talvez os portugueses sejam uma gente tão especialmente interessante que seja necessária para temperar o mundo. Quando se diz que houve um objetivo económico nos Descobrimentos, é evidente que houve. Mas havia outras coisas que eram importantes: ver como era o mundo. Mas para isso faziam-se despesas e era preciso pagá-las. E por outro lado era preciso que agente se divertisse na vida. O Sérgio tem razão, que empresa desastrosa! Portugal só perdeu dinheiro com aquele negócio! 
O Velho do Restelo então teve razão. Somos pobres e vamos ficar mais pobres. 
          O essencial é que havia dois partidos em Portugal. O partido da terra e o partido do mar. Quem venceu foi o partido do mar. Mais ou menos pela mesma altura, na China deu-se o fenómeno contrário: quem venceu foi o partido da terra, e eles destruíram a sua marinha e fecharam as portas. Não tinha havido nada dos Descobrimentos com o Velho do Restelo. Não se tinha dado o mar pronto ao homem. A grande arma chinesa foi a cultura. Os mongóis ficaram mansinhos num instante, nem era preciso pôr muralhas nem coisa nenhuma, foi uma despesa inútil. Porque é que a cultura chinesa fez isso e a cultura portuguesa não fez? Já viu as ligações fantásticas que há de um lado e do outro do mundo? Os portugueses tiveram o seu império e foram lá até à China dar-lhes notícias. E agora todo o mundo ficou admirado com o acordo dos portugueses em relação a Macau.
          Esta economia é imoral. Se a pessoa tiver escrúpulos, não fica rico, sabe como é? É tirar ao próximo o máximo que for possível. Quando um operário que trabalhava numa fábrica de fazer pasta de dentes lembrou ao patrão que se podia tirar mais dinheiro daquilo alargando o buraco por onde saía a pasta, a pessoa sem dar por isso gastava mais pasta. Esse sujeito usou de quê? Fraude? Desonestidade completa! Nós vivemos do mal que existe. Se os industriais farmacêuticos fizessem Te Deum, missas solenes todos os dias para a doença sair completamente do mundo como é?
          Está um homem à porta da barraca a fumar o seu cigarrinho, talvez não de tabaco, mas de outra erva qualquer fumável, com pouco mais lá dentro que a máquina de café, absorto na paisagem gozando a vida. Passa um americano, ou um americanizado e pergunta: “Então a terra dá?”. Resposta: “A terra não dá nada, é uma miséria.”. Afirma o outro: “Prantando dá!”. Resposta: Ah! Prantando dá! Dá sim senhor!” Pergunta: “O senhor é doente?” Resposta: “felizmente não sou doente, posso trabalhar, posso fazer qualquer coisa, ainda ontem andei que tempos!” Pergunta: “Mas o senhor nunca tem vontade de trabalhar?” Resposta: “Ah muitas vezes, mas reajo sempre.” 
Ora aqui está um ponto interessante. Não é que o português não goste de trabalhar. Se ele gosta do trabalho, trabalha. Mas tem de lhe agradar o trabalho. Se não lhe agradar não trabalha. A economia do país era uma economia de ajuda mútua, uma economia de convivência, de cooperação. As pessoas se juntavam, se associavam sem grandes formalismos, cultivavam em comum e depois repartiam o produto. Por conseguinte aquilo era comunitarismo agro-pastoril, e talvez até marítimo. Ponto número um: era uma economia em que o domínio não era o lucro. Segundo ponto: aprendiam pela experiência. Terceiro ponto: uma política constituída por uma série de municípios, com os seus forais, com as suas constituições particulares, de várias origens, com os seus costumes marcados ali. 

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